Wednesday, January 31, 2007

PROUDHON E KANT - A ANTINOMIA PROUDHONIANA

Proudhon conheceu Kant em boa hora, e melhor que Hegel. Ele mantinha-se em correspondência sempre 1 com Tissot, que era então o especialista e o tradutor. Perto de 1839-1840, ele crê nas suas cartas a Bergmann e a Pérennès, lê “todos os dias 2”. Ele falará com respeito da “dialéctica fundada por Kant” e até ao início daquele será para si ”o venerável Kant 3”. Num artigo da Voz do Povo, de 5 Novembro de 1849, ele declara-o “também marcável mais para a sua profunda piedade do que pelo incomparável poder da sua reflexão 4”, e diz ainda na Justiça: “aquele que nenhum filósofo nunca igualara, o imortal Kant 5”.
Tal estima, mais suave do que aquela que ele tinha por Hegel, não o impede de falar para o criticar. Desde 3 Março de 1842, ele escrevia a Tissot: “Eu impaciento-me de vos ver tão obstinado, e ele faz com que eu vos arranco a Kant6. Ele começava então a preparar a sua primeira grande obra, com o sentimento que o seu pensamento chegava à maturidade e que ele vinha fazer enfim uma obra séria e positiva. Ele redigia nas disposições do espírito anti-kantiano. “ A minha metafísica está feita, escreve ele a Flenry a 3 de Abril de 1842; é qualquer coisa de curioso e de extraordinário, que vai colocar-me todos os Kantistas sobre os braços 7”. E pouco depois, a 23 Maio, a Ackermann: “Eu nego pura e simplesmente toda a psicologia e toda a metafísica de Kant8.” A Criação da Ordem aparecia em Setembro de 1843. Proudhon fala do “impasse onde a crítica de Kant tinha lançado os espíritos”, e ele marca, numa atenção prejorativa, que as categorias kantistas, “sistematizadas, eu diria quase cristalizadas num quadro imóvel, são independentes uma da outra, sem nenhuma ligação, sem génese9”.
Mas o que ele censura sobretudo em Kant, no fundo, será o não ser demasiado fiel a si mesmo. Isso será querer reconstruir depois de ter destruído, de ter tentado reintroduzir uma metafísica que a sua crítica tinha tornado impossível, e ter continuado a tentar o seu pensamento em direcção a um Absoluto que esta crítica teria eliminado sempre. “Fazendo profissão de livre pensamento”, Kant não retrocedeu menos “nos dados de experiência aos sonhos do absoluto”. Ele tinha, na Razão pura, “revolucionado a metafísica”: “De qual direito vem ele, na sua Razão prática, afirmar todo um mundo de absolutos, contra partida do mundo fenomenal, e postulado da consciência e da liberdade1?”.
Nós teremos de ver se não é precisamente isso mesmo, ou alguma coisa semelhante, que constitui a aventura intelectual de Proudhon. Constatemos somente pelo instante que estas aproximações confirmam à sua maneira a influência exercida sobre si pelo kantismo. Influência sobretudo negativa, e de ordem muito geral. Ele tinha uma aversão instintiva perante todo o sistema e de toda a ontologia. Num artigo do seu jornal o Povo, artigo redigido sob a forma de Carta aos cidadãos redactores do Popular, ele escreve, a 21 Março de 1849: “Do sistema, eu não sei; eu repugno formalmente a suposição. O sistema da humanidade só será reconhecido no fim da humanidade… O que me interessa, é reconhecer o seu caminho, e, se eu posso, assimilá-la 2”. E a 20 Agosto de 1852, abrindo-se a Boutville um projecto de revista no qual ele devia ser o director:
Apesar dos secretários, invejosos ao excesso do seu dogma e das suas fórmulas, não admitem, como os teólogos, que a verdade que eles fazem e nos termos que eles escolhessem, nós procuraremos as nossas ideias na expressão espontânea das instituições, das escolas e dos pensadores. Existe lá, parece-me, para uma revista revolucionária, uma oportunidade imensa de sucesso 3.
A leitura de Kant tinha fornecido a Proudhon a justificação racional deste espírito espontâneo. Na Revolução social, ele dá uma expressão mais teórica, adoptando uma posição na qual poder-se-à marcar a semelhança, mas também a diferença com a das famosas Teses sobre Feuerbach que são como a carta do marxismo:
Depois do Novo Orgão e a Crítica da razão pura, não existe, não pode lá haver um sistema de filosofia. Se é um verdade que deve ser reputada adquirida, depois os esforços recentes de Fichte, de Schelling, de Hegel, dos eclécticos, dos neo cristãos, etc., estão lá. A verdadeira filosofia, é em saber como e porquê nós filosofamos, de várias formas e sobre que matérias nós podemos filosofar, a qual especulação filosófica recorrer. Do sistema, nada existe, e é uma prova de mediocridade filosófica, do que procurar hoje uma filosofia4.
Proudhon foi portanto marcado, profundamente marcado pela crítica kantiana, como a imensa maioria dos pensadores do seu século, sobretudo “graças a esta transmissão surda que se faz por mil canais diversos5, mas sem se tornar ele próprio kantiano6. O seu agnosticismo teórico é menos radical, pois até a Crítica da razão pura não o desejava. De resto, ele não está no meio do mundo um filósofo da escola. Também não foi difícil revelar as inferioridades técnicas. Ter-se-ia uma grande injustiça, contudo, de ter pretexto para tratar o seu pensamento com desdém. O seu procedimento fundamental ora todo concreto, todo indutivo. Era uma reflexão sobre os dados da experiência comum e da vida jornaleira, sem deixar de ser sustentada pela realidade social. Ele estimava que toda a filosofia, mesmo aquela que se cria dedutiva, não fez nunca, bem ou mal, “ao sintetizar a experiência 1 e que, por ter oportunidade de fazê-lo bem, ele quer dar conta. Ele não ia da teoria à prática, mas da prática à teoria, e a sua teoria permanecia mesmo prática. É isso que ele explica a um dos seus correspondentes, Huet, a 25 Dezembro de 1860:
Bordas, como Decartes, Leibnitz, mesmo Kant, parecia-me ter ido além da filosofia especulativa à filosofia prática: ele passa pela metafísica para ir à moral, e ele não duvida que esta marcha não seja seguida nos séculos seguintes. No cristianismo, a teologia dogmática precede também a teologia moral; a religião está inteiramente fundada neste dado. Eu, por outro lado, apanhei de imediato a ideia moral, a justiça, o facto de consciência (eu não tomo aqui significado no sentido puramente psicológico), e uma vez em possessão do direito, da ideia moral, eu sirvo-me como que de um critério para a metafísica. A minha filosofia prática antecede a minha filosofia especulativa, ou pelo menos serve-lhe de base e de garantia.
E Proudhon compara o seu método “ao de Jesus e ao de Sócrates”, que ele opõe ao “idealismo de Platão” e à “teologia do Santo Paulo 2”. Quaisquer que sejam as suas comparações, vê-se que este método, tão inimigo que ele foi com a abstracção metafísica, era o oposto de um empirismo. Ele era igualmente elogiado pelo positivismo de Auguste Comte e do materialismo histórico de Marx. Apesar de Proudhon detestar o significado, ele era também, de alguma forma, um “idealismo”. E não seria impossível de encontrar-lhe um parente com o moralismo de Kant3:
Para mim, diz ele, a moral existe por si mesma; ela não revela nenhum dogma, nenhuma teoria. A consciência está junto da faculdade principal do homem, o poder soberano, ao qual os outros servem de instrumentos e de serventes… Isso não é metafísica, nem poesia, nem outra teodicidade onde eu deduzo as regras da minha vida e da minha sensibilidade; é ao contrário do ditado da minha consciência que eu deduzirei sobretudo as leis do meu entendimento4.
Contudo, é certo que os históricos de Proudhon insistem no comum mesmo falando da sua dependência em favor do kantismo. Constatando que a dialéctica proudhoniana está fundada sobre a noção de antinomia, eles acreditam poder acrescentar que é Kant que lhe terá fornecido esta noção. Assim desde já Karl Marx, sobre Proudhon “primeira maneira”:
Nos capítulos que ele mesmo considerava como os melhores, ele imita o método antinómico de Kant, o único filósofo alemão que ele conhecia então pelas traduções, e ele deixa uma forte impressão que para si, como para Kant, as antinomias só se resolvem “para além” do entendimento humano, ou seja, que o seu entendimento é incapaz de os resolver1.
Negligenciamos a ironia final. Permanece a afirmação inicial, em seguida retomada, e que tinha desde logo formulado Saint-René Taillandier em 1848: “Proudhon serve-se de instrumento de Kant, a antinomia2.” Proudhon parece ter dito primeiro. Ele não escrevia a Tissot, a 13 Dezembro de 1839: “Ao ler as antinomias de Kant, eu tinha visto não a prova da fraqueza da minha razão, nem um exemplo de subtil dialéctica, mas uma verdadeira lei da natureza e do pensamento 3?”
Todavia, há que olhar de perto, que este texto contém outra coisa para além de confissão que se crê ler nele. Ele prova que desde 1839, ano vivido sob o signo de Kant, Proudhon compreendia-o, ou interpretava-o livremente, à sua maneira, que não era nada kantiano. Ele poderá bem escrever a 2 Julho de 1846, a Ackermann: “Eu faço o sistema das antinomias da Sociedade, um pouco como Kant tinha feito a crítica das antinomias da razão 4”; ele poderá ainda, respondendo a Renouvier na Justiça, dizer que esta filosofia teria de se ter dado para “analisar este fenómeno do entendimento que desde Kant é apelidado de antinomia e sobre o qual, eu o confesso, tudo ainda não parece ter sido dito5: não é menos verdade - e estes dois textos têm um testemunho - que a sua antinomia não é certamente a de Kant, e que ele tem perfeita consciência. Ele não tem junto a si, em resumo, que o emprego de um significado kantiano, para designar um fenómeno mais vasto do que aquele que Kant aplicava, e desde logo mais ou menos conhecida antes dele. A sua referência é, por outro lado, a invocação de um patronato, a indicação de uma insuficiência, a qual se propõe remediar. Não é por rudeza de escrever que, na sua carta a Ackermann, ele fala uma vez crítica e outra sistema, e confessará que as “antinomias da sociedade” na qual Proudhon quer fazer o sistema, não são a mesma coisa que as “antinomias da razão”, na qual Kant faz a crítica.
De uns para outros, a carta a Tissot tinha desde já colocado em relevo as diferenças essenciais, que são duas. As antinomias kantianas são, não no ser, mas na razão; as de Proudhon estão na razão e no ser. As antinomias kantianas aparecem como um esforço de pensamento, elas marcam um resultado negativo, um insucesso, elas são uma espécie de muro no qual finalmente a razão se choca; para Proudhon, as antinomias são as leis do pensamento em marcha, elas acompanham-no em todo o seu percurso, modelam-na, e fornecem-lhe um método.
Sabe-se que Kant fala de antinomias na Crítica da razão pura, na secção da “Dialéctica transcendental”, que trata da cosmologia racional. No seu esforço em vias de construir esta cosmologia, o entendimento chega a quatro antinomias, ou seja, a quatro pares de teses contraditórias: parece-lhe igualmente exigido, segundo o ponto de vista sobre o qual ele se coloca, que o mundo seja finito e infinito; que tudo no universo seja composto de pares simples e que nenhum elemento seja simples; que o mundo dependa de uma causa livre e que não haja tal causa; enfim, ele coloca invencível um ser necessário que, não menos invencível, o repugna. Estas antinomias são o signo que o entendimento funciona fora do seu domínio e, não criticando sobre o real, não opera somente nas demarcações “dialécticas”, ou seja, ilusórias. Tal é uma das veias por onde se encontra condenada a metafísica como ciência, e fundado o agnosticismo em relação ao mundo transcendente.
A antinomia segundo Proudhon é outra coisa. Ela é sobretudo no espírito, porque ela é primeiramente sobretudo no ser, sobretudo na natureza, sobretudo no mundo físico e no mundo social. Porque as leis do mundo, e “a moral humana é parte integrante da ordem universal[1]”: um tal marxismo toma o seu mais estóico ou mais tomista que kantista. “O homem e as coisas, diz ainda Proudhon, a civilização e o universo, e reino moral e o reino da natureza” formam, provavelmente, “um todo homogéneo, solidário”, e “mais cedo ou mais tarde” deve aparecer como consequência ”a identidade das duas razões, a minha e a do mundo2”. Compreende-se também que o significado de antinomia, que não pertence a Kant como uma parte da teoria do conhecimento, resume junto de Proudhon toda uma visão do universo, visão à qual ele faz constantemente alusão nas suas obras, e onde ele mantém a fé exprimida e defendida com tanto calor como de clareza:
Nada subsiste, diziam os antigos sábios, tudo muda, tudo flui, tudo se forma. Por conseguinte, tudo se tem e se encadeia; ainda por conseguinte, tudo é oposição, balança, equilíbrio no universo. Não existe nada, nem ao redor, nem dentro desta dança eterna; e o ritmo que a comanda, forma pura das existências, ideia suprema à qual nenhuma realidade não saberia responder, é a concepção mais alta que possa atender a razão1.
A esta concepção da realidade das coisas responde uma lógica que lhe está acordada. Segundo esta lógica, bem diferente daquela que se aprende nas classes, “o dilema, reputado como o mais forte dos argumentos”, não tem mais valor que aquele que lhe é dado. Ele não deve ser mais olhado “como uma arma de má fé, o punhal do brigadeiro que vos ataca no ombro”, tanto que ele não foi “rectificado pela teoria da antinomia, forma mais elementar e composição mais simples do movimento 2”. Efectivamente, não existe de um lado a verdade e de outro, o erro, pelo menos nesta forma de dizer muito inadequada:
O que é o erro? Uma mutilação da verdade. O mal? Uma inversão do bem. A injustiça? A negação da equivalência entre pessoas, serviços e produtos. Qual a proporção particular na filosofia da natureza e da humanidade talvez chamada verdade? Nenhuma; a oposição, o antagonismo, a antinomia manifestam, sobretudo. A verdadeira verdade é: 1º no equilíbrio, coisa que a nossa razão concede maravilhosamente, e que constitui a mais elevada e a mais fundamental das suas categorias, mas que não é nenhum beneficio; 2º no conjunto, que nós não saberíamos nunca abraçar3.
Prevê-se ainda todo o sentido do título que Proudhon dá a uma das suas obras: Sistema das contradições económicas. Estas não são aos seus olhos um caso particular, o caso próprio ao Mundo da economia, um fenómeno que se reencontra em todas as partes do ser e em todos os domínios da ciência. Eles verificam uma lei universal. Será preciso associar, escreve ele mesmo a Charpentier, “as contradições da filosofia, da política, da religião e do direito4.” De resto, acrescenta, “este significado de contradição não deve tomar-se no sentido vulgar de um homem que se diz e se deduz. Ele agita-se ao contrário de uma oposição inerente a todos os elementos, a todas as forças que constituem a sociedade, e que faz com que estes elementos e estas forças se combatam e se destruam se o homem, por sua razão, não encontra o meio de os compreender, de os governar e de os manter em equilíbrio…”
Será portanto em vão censurar Proudhon, como o fez por exemplo Arthur Desjardins, as suas perpétuas contradicções5. Como todos os que reflectiram ao longo de um período bastante longo, é-lhe chegado, em alguns assuntos, de mudar de notícia, ou pelo menos do ponto de vista, e de deslocar o acento que ele colocava sobre as coisas. Ele próprio é uma espécie de acusado, ou justificado, à noite da sua existência, respondendo a Clerc, um oficial retratado dos seus discípulos, que era o comovente da sua obra sobre a Guerra e a Paz. Ele esforça-se para fazer notar ao seu correspondente “esta mobilidade perpétua da verdade, que os meios filósofos tomam por um engano, seja da natureza ou da Providência, seja do nosso próprio entendimento, e que não é outro senão a incessante revelação e polimorfo da mesma verdade”. Apesar de admirável, desde logo, esta nossa verdade seja o preço de um longo trabalho e que ela exige ensaios em diferentes sentidos? “Ela tem diversas faces, seguidamente ela parece contradizer-se; é porque nós somos muito mais expostos ao deformar querendo colocar-vos sempre de acordo, do que dizendo bem, cada dia e sobre cada coisa, o que nós pensamos e o que nós queremos.” Também Proudhon confessa que não quer nunca “um autor sujeito a contradizer-se, dotado para o fazer de boa fé e não por disparate”, e no que lhe diz respeito, pessoalmente, ele inquieta-se pouco com as contradições, aparentes ou mais, que podem reencontrar-se nas diversas publicações1. Este razoado é de boa psicologia. É suficiente para nos assegurar que Proudhon não nos remete à escola dos sofistas, “que apoiavam, no geral, o pró e o contra com uma benevolência igual2.” Mas, por outro lado e mais que psicologia, ele agita-se aqui na metafísica. Novo Heraclito, Proudhon professa uma concepção agnóstica do universo e da sociedade, na qual crê que um pensamento muito preocupado de coerência não seja suficiente a dar uma ideia falsa. “Ele poderia muito bem fazer com que a sociedade fosse governada por regras todas diferentes daquelas indicadas e chamá-la como de costume de sentido comum3.” Toda a coisa tem uma “dupla face”, e é necessário desconfiar das razões muito simples, que arriscam sempre esclarecer uma em detrimento de outra. Se não se tomar consciência, “mais um homem tem precisão nas ideias e rectidão no coração, ele corre risco de ser simplório e absurdo”. Os intelectuais estão todos lá, mais ou menos, como o povo; ora “o povo ama as ideias simples, e ele a razão: infelizmente esta simplicidade que ele procura só se reencontra nas coisas elementares, e o mundo, a sociedade, o homem são compostos de elementos irredutíveis, de princípios antitéticos e de forças antagónicas 4”. Com efeito, “todos os nossos mal-entendidos políticos, religiosos, económicos, etc”, não vêem eles “da contradição inerente às coisas 5”?
Contradição real, ou ainda “antinomia natural 6”, que ele não confunde com a contradição lógica pura e simples. Esta é estéril como um nada, o outro é fecundo como a vida. A primeira é análoga, em resumo, á identidade morna de toda a verdade pluralidade. “O mundo moral como o mundo físico descansa sobre uma pluralidade de elementos irredutíveis e antagónicos, e é da contradição destes elementos que resultam a vida e o movimento do universo 1”. Esta frase da Teoria da propriedade é uma daquelas que definem melhor o pensamento de Proudhon. Pode-se comentá-la numa página da Justiça:
Ele agita-se para saber se todas as espontaneidades nas quais se compõe a criação, acordam entre si ou se combatem; se, seja pela lei da sua constituição, seja por ordem superior, elas formam uma ronda de perfeito amor ou se elas se entregam a uma batalha imensa; se a ordem, quem sabe, e se descobre nesta mistura, proveniente do concerto de instrumentos acordados como os tubos de um orgão, ou se não é acima de tudo um efeito de equilíbrio entre forças antagónicas. Quanto a mim, minha opinião não seria duvidosa: o que torna a criação possível, a oposição dos poderes. É ter uma ideia muito falsa da ordem do mundo e da vida universal do que fazer uma ópera. Eu vejo sobretudo as forças em luta; eu não descubro nenhuma parte, eu não posso compreender esta melodia do grande Todo, que acreditava entender Pitágoras[2].
Tal era bem a ideia na qual as Contradições económicas proponham uma primeira e desde logo uma vasta aplicação. Tal será ainda ideia da última grande obra da maturidade, a Guerra e a Paz. Ela resume-se no significado de Escritura citado em exergo: “O Eterno é um guerreiro”. Para o instante nós não a julgaremos, nós somente constataremos a permanência e a força através da obra de Proudhon. Acima de tudo, afirma-se a mesma ideia de luta universal. A Guerra e a Paz desenvolve-a ex professo, como o sujeito a trazia:
O jogo das forças não se assemelha à dança das musas… É preciso que elas se entrechoquem, que elas se entre devorem, nesta condição somente elas produzem… A guerra tem raízes profundas, a pena ainda entrevista, o sentimento religioso, jurídico, estético e moral dos povos. Poder-se-à mesmo dizer que ela tem a sua fórmula abstracta na dialéctica. A guerra, é a nossa história, nossa vida, vossa alma por inteiro. Ainda uma vez mais, é tudo. Falam-nos em abolir a guerra, como se ela agitasse concessões e as alfândegas. E não se vê que se faz abstracção da guerra e das ideias que lá se associam, nada permanece, absolutamente nada, do passado da humanidade, e nem um átomo para a construção do seu futuro… A guerra abolida, como vós concebeis a sociedade?... No que é que se torna, a sua cesta eterna, o género humano[3]?
A simples aproximação destas últimas passagens sofrerá sem dúvida em mostrar o quanto artificial é a oposição que alguns intérpretes estabeleceram entre a Justiça e a Guerra e a Paz. De um lado e de outro, e pelo mesmo facto como “uma das categorias da razão 1”. Desde já, prevê-se por isso que, não só a dialéctica transcendental de Kant, a dialéctica proudhoniana não saberia assemelhar-se à dialéctica de Hegel ou de Marx. Disse-mo muito bem: “Ler Proudhon, é viver com ele na angústia da contradição2.” Se existe aqui uma semelhança, ela é, num contexto também mais diferente que possível, com Kierkegaard. Em relação às ambições do pensamento hegeliano, o pensamento do místico dinamarquês e daquele do socialismo francês têm uma significação paralela.
Contudo, a angústia da contradição não é nenhum desespero ou uma demissão sem apelo. Nem tão pouco o que Kierkegaard, Proudhon dizem aqui no seu último significado.



NOTAS


1 Sem verdadeiro valor de amizade: a Ackermann, 9 Setembro 39, e a Pérennès, 16 Dezembro (t. 1, p. 150 a 164).
2 A Pérennès, 16 Dezembro 39: “As minhas jornadas passam-se entre Reid e Kant” (t. 1, p. 163).
3 Justiça, t. 3, p. 231.
4 Reproduz como prefácio à 3ª Edição das Confissões de um revolucionário.
5 Justiça.
6 T.2 , p.22 . Desde de já, a 16 de Dezembro de 39, ele confia a Pérennès um projecto de uma “ incrível audácia” ; o “nunca colocar na reforma “, e resume assim a moral Kantiana : “ Eu sou obrigado porque sou obrigado, o que não é nada bem demonstrativo”(t.1, p.163).
7 T. 2, p. 26.
8 T. 2, p. 46.
9 Criação da ordem, p. 262 e 269.
1 Justiça, t. 3, p. 231.
2 Misturas (Euvres, t. 17).
3 T. 4, p. 340.
4 Revolução Social, p. 141-142.
5 Renouvier, As escolas contemporaneas da moral em França, na Crítica filosófica, t. 1 (1873-74), p. 41.
6 Numa nota da Justiça, ele resume, por outro lado desajustadamente, a capacidade da obra de Kant, dizendo: Kant tem “dado às gerações modernas “ uma “iniciação anti-absolutista, anti-religiosa” (t. 6, p. 52).
1 Filosofia popular, 4: “A metafísica do ideal não aprendeu nada com Fichte, Schelling, Hegel: quando estes homens, nos quais a filosofia se honra com bom direito, imaginam-se deduzir à priori, não fazem, por seu desconhecimento, sintetizar a experiência” (Justiça, t. 1, p. 198).
2 T. 10, p. 257.
3 Também assim, numa certa medida, com a moral tradicional no cristianismo. Cf. Yves de Montchevil, Deus e a vida moral, em Construir, VI, nomeadamente p. 42-46.
4 Justiça, t. 4, p. 492 e 493: “…A noção do justo estando toda na fé, nos meus olhos, ideia e sentimento, e sendo o sentimento a primeira manifestação e a força principal da minha alma, o lar da minha liberdade, em redor da qual eu não encontro vergonha e miséria, parece-me lógico derrubar o ensino que eu tinha recebido desde a infância, e, em vez de fazer depender o meu dever e o meu direito de estado mais ou menos precário da minha razão, de subornar pelo contrário a minha razão, as minhas opiniões, no sentimento que eu tive do meu dever e do meu direito.”
1 No Social-Democrata; Janeiro de 1865 (Miséria da filosofia, nova ed., p. 247).
2 Loc. cit., p. 302.
3 T. 2, p. 232.
4 T. 2, p. 207.
5 Justiça, t. 3, p. 452.
[1] Justiça, t. 2, p. 389. “Espécie que, apesar algumas dissonâncias, mais aparentes que reais, que a ciência deve aprender a conciliar, as leis de uma são as leis de outra.”
2 Justiça, t. 4, p. 431-32: “Então, a ideia de uma harmonia universal na minha alma: eu digo-me (a mim próprio) que entre o mundo da natureza e o mundo da justiça, lei, força, substância, tudo é idêntico; assim, como a ordem é perfeita entre as esferas que percorrem o espaço, a proporção imutável entre os elementos nos quais se compõe toda a criatura, ele deve estar mesmo entre os homens. E o facto vem de imediato confirmar a hipótese. A economia, a política, a organização do atelier, a Razão pública, resolvem um sistema de ponderações ou de balanços: nesta analogia de legislação entre o Cosmos e o Anthrôpos aparece a identidade do espírito que os acima, latente no primeiro, livre no segundo.”

1 Filosofia do progresso, prefácio (obras, t. 20, 1868, p. 14). Pode-se comparar esta ideia do ritmo universal à ideia bergsoniana do movimento puro; A percepção da mudança, no Pensamento e no Pensamento, p. 185: “Existem mudanças, mas não existem, sob a mudança, coisas que mudam, etc.”
2 Filosofia do progresso, primeira carta (ibid., p. 31-32).
3 Teoria do imposto (Obras, t. 15, 1868, p. 226-227).
4 24 Agosto 56 (t. 7, p. 116-117).
5 Op. cit., t. 1, p. 53: “Até ao seu último fôlego, ele não deixará de contradizer-se.” Mesmo M. René Gonnard, História das doutrinas económicas, p. 491: “Proudhon está perto de uma contradicção.”
1 A M. Clerc, 4 Março 63 (t.12, p. 338-39 e 342).
2 Desjardins, t. 1, p. 82.
3 Teoria da propriedade (1866), p. 207. A Villiaumé, 24 Janeiro 56: “Tudo na sociedade é primeiro um paradoxo.” (t. 7, p. 13).
4 Teoria do imposto, p. 234.
5 Miséria, t. 2, p. 397. Cf. p. 258: “É estranho, porque eu passo a minha vida a demonstrar esta contradicção da nossa natureza, quer seja eu acusado de contradicção!”
6 Cf. França e Reno (nova edição, 1868), p. 124: “É uma contradicção pura. Se fosse uma antinomia natural, teria lugar uma balança: mas não, não existe nada.”
1 Teoria da propriedade, p. 213; cf. p. 229. Teoria do imposto, p. 234: “Quem diz o organismo, diz complicação; quem diz pluralidade, diz contrariedade, oposição, independência. O sistema centralizador é muito bom em grandeza, simplicidade e desenvolvimento; só lhe falta uma coisa; é que o homem não se tem mais, não se sente, não vive, não existe.” Confissões, p. 316: “Qualquer transformação que eles tenham que subir, os elementos (governo, propriedade, etc) subsistirão sempre, pelo menos na sua virtualidade; afim de imprimir sem parar o mundo, pela sua contradicção essencial, o movimento.” Cf. Miséria, t. 2, p. 323: “Como conceber um bem que a dor não irrita, não estimula?”
[1] Justiça, t. 3, p. 212.
[1] Guerra e Paz, p. 71-72, etc.; cf. p. 55.
1 Op. cit., p. 33; e p. 38: “A guerra, como o tempo e o espaço, como o bom, o justo e o útil, é uma forma da nossa razão, uma lei da nossa alma, uma condição da nossa existência.”
2 Augé-Laribé, no “que é a propriedade?” p. 118. Cf. Torsten Bohlin, Kierkegaard, p. 87: “Kierkegaard acentua muito e sem parar o carácter combativo da vida e da personalidade. A tese de Héraclito sobre a discórdia engendava todas as coisas passadas na concepção kierkegardiana do dever e das condições vitais da personalidade.”

EDITORIAL 3


Neste tempo quente de Verão não se espere que se fale de bom tempo, porque esse que tudo domina e controla, não está bom de modo algum, como iremos ver. Um relatório editado pelas Nações Unidas chegava a conclusões bombásticas: numa frase lapidar vociferava que os ricos estão mais ricos e os pobres mais pobres. Isto a partir da análise de 175 países onde se concluiu que 840 milhões de pessoas passam fome.Há outros 800 milhões sem nenhumas condições de assistência médica para além de 1000 milhões de analfabetos.
Ora se estes dados só por si são suficientes para nos deixar revoltados com a situação social e política que possibilita este estado de coisas há ainda outros dados que este relatório apresenta e que ninguém porá em causa vindo donde vêm.
Pelas contas dos técnicos da ONU seriam necessários oitenta mil milhões de dólares para acabar com a fome e dar condições mínimas a todos os pobres do mundo. Número verdadeiramente assombroso, sobretudo se for mencionado como um dado absoluto. Mas se dissermos que a fortuna dos 7 homens mais ricos do mundo chegava e sobrava para pagar este valor exorbitante que pensar disto?
Estes dados são demasiado importantes para termos qualquer tipo de dúvidas sobre a situação aviltante que o mundo capitalista criou e continua a criar apesar dos discursos altissonantes de justiça social, direitos humanos e outros quejandos vazios de sentido porque não há comparticipação na realidade social onde vivemos e onde sentimos.
Já fora do relatório também podemos mencionar que no caso português há um dado fundamental a reter: De 96 para 97 as fortunas portuguesas aumentaram em 13% e as mais ricas famílias portuguesas possuem, e isto é um valor por baixo, dois mil milhões e não é de dólares é de contos. Para esses, naturalmente que este tempo de Verão está óptimo.
Deve ser também por esta situação que há algumas semanas apareceram cartazes da oposição maioritária que diziam “85-97 Portugal no pelotão da frente”o que mostra bem a ligação umbilical com o partido do governo e que a questão da moeda única favorece determinantemente os negócios das famílias mencionadas anteriormente.
Por tudo isto é patético os sentimentos românticos e aí sim utópicos que encontramos no poeta do partido governante, que pensa que os valores que preconiza alguma vez poderão ser encontrados numa organização, que priveligia e incentiva aquilo a que temos vindo a fazer referência neste editorial. Parece que há pessoas bem mais utópicas que os anarquistas, apesar de continuamente ouvirmos argumentação contrária.
Mas também já estamos habituados.

EDITORIAL 2


Poder-se-ia falar duma certa euforia que está a atacar alguns sectores da sociedade europeia devido a um conjunto de vitórias eleitorais que a chamada esquerda conseguiu embolsar. Algumas trapalhadas “bem intencionadas” com que se pretende gerir a realidade capitalista. O caso mais significativo, para além da França, onde o Partido Socialista voltou ao poder após um curto interregno e sobre o qual não é necessário, para já, tecer outros comentários visto que ainda está bem presente o que foi a sua triste governação, é a Grã-Bretanha, onde o Partido Trabalhista voltou também ao poder, mas somente dezoito anos após a sua última estadia. Não deixa de ser curioso que pequenos apartes podem nestas coisas desempenhar um papel mais do que importante.
Lembramo-nos bem que durante toda a campanha eleitoral falou-se muito em partido das pessoas e muito pouco em partido dos trabalhadores. O actual primeiro ministro inglês repetidamente falava no “new Labour”e não, simplesmente, no “Labour party”. A realidade encarregar-se-à de mostrar que se trata dum partido “no Labour”.Talvez por isso, o “nosso” primeiro ministro tenha vindo a correr a dizer que entre o partido Trabalhista e o partido Socialista, havia “identidade de pontos de vista”.E isto apesar da Inglaterra continuar a vender aviões à Indonésia. Talvez por isso o primeiro ministro “trabalhista” seja sócio da Amnistia Internacional. Algumas trapalhadas “bem intencionadas” com que se pretende gerir a realidade capitalista.
No nosso pequeno mundo há a destacar a aprovação do imposto directo sobre a Educação, vulgo propinas, possibilitando a que estudantes oriundos de meios pobres possam assim com a maior das facilidades,
levarem a cabo os seus estudos, o que está de acordo com a gratuitidade do ensino presente na Constituição.Tenha-se em atenção a rapidez com que esta lei irá ser implementada por oposição à lei da semana de trabalho de 40 horas, que após mais de seis meses de existência, continua a levantar interpretações divergentes entre trabalhadores e entidades patronais, e agora até serve de justificativo para se fecharem empresas. O sistema judicial é um dos pilares mais importantes do sistema capitalista e da sua lógica. Veja-se como na Madeira a ditadura Jardineira põe e dispõe e volta a trocar os dados, em relação aos clubes de futebol, apesar da fúria legítima e sincera dos sócios. O sistema judicial está omnipresente sem interferir. Interfere, para condenar os crimes dos skinheads não percebendo que a situação merece e necessita uma atitude substancialmente diferente. Algumas trapalhadas “bem intencionadas” com que se pretende gerir a realidade capitalista.
Mas a grande bomba política das últimas semanas foi a chamada “crise política” que girou à volta da então provável apresentação da lei do financiamento local. Sabemos perfeitamente da hipocrisia subjacente ao acto da oposição maioritária, que nunca apresentou nos dez anos anteriores semelhante proposta, e se voltar a ser poder, fará naturalmente ouvidos moucos, justificando-se com uma alteração da conjuntura. Mas sabemos também da hipocrisia do governo que com a sua atitude extremada, de ou tudo ou nada, querer inclusivamente, com a ameaça de eleições antecipadas, jogar o seu futuro político. Porque é isso que está em jogo. Porque é isso que verdadeiramente interessa ao governo. Isso e só isso. O que está em jogo com a lei do financiamento local, é monetariamente falando cerca de cento e cinquenta milhões de contos. Não é mais do que o valor do descalabro entre as previsões iniciais do custo da Expo 98 e o valor presente. Algumas trapalhadas “bem intencionadas” com que se pretende gerir a realidade capitalista.
O que incomoda o Estado, este ou qualquer outro, independentemente do primeiro ministro ser do tipo ectomórfico ou do presente tipo endomórfico, é que com a transferência de poderes, nomeadamente económicos, para os municípios, fica com o seu poder alterado no status quo dos diversos poderes, e isso representa um risco que o Estado considera demasiado elevado, independentemente da cor partidária que o habita...

EDITORIAL 1


O aval de mais de meio milhão de contos do Ministério das Finanças à U.G.T. veio mostrar às claras e pela primeira vez, aquilo que todos nós já sabíamos há muito. O sindicalismo, este sindicalismo, não tem rigorosamente nada a ver com o processo histórico que se desencadeou a partir de finais do século passado e durante os primeiros tempos do nosso século, e em que os sindicatos eram uma força real de oposição e de combate em relação ao poder estabelecido, cujo ponto alto se deu com a C.G.T. anarco-sindicalista, de 1919 a 1927.
Espantoso nisto tudo foi a sinceridade do Ministro que gere o nosso dinheiro, nas afirmações que proferiu perante a comunicação social, no sentido de que sem este aval a U.G.T. poderia entrar em falência, e o governo não poderia aceitar de modo nenhum essa situação.Estas declarações mostram determinantemente que a central sindical actua como parceiro de peso, na gestão governativa corrente...
Alguns incautos podem estar a pensar que em relação à Intersindical a situação é diferente, devido às suas explícitas ligações com o Partido Comunista e com a histórica aversão que existe entre estes e os “democratas” que nos governam ou governaram. Não esquecer no entanto, que a C.G.T.P. também não tem as mãos limpas. Recebe milhares de contos para fazer formação profissional e independentemente da gestão correcta desse dinheiro e do pagamento dessas dívidas ao Estado, objectivamente está a fazer papel de subsidiária estatal. Na verdade os nossos sindicatos têm muito pouca eficiência como grupos de pressão, quer pelas divisões que existem entre eles, quer fundamentalmente pelas cada vez maiores relações que mantêm com o poder, quer através de protocolos, contratos de vário tipo, ou ligações umbilicais, ideologicamente falando.
Mudando de assunto, ou talvez não, importa fazer uma breve reflexão sobre a questão da violência, tendo em conta toda uma série de acontecimentos que têm ocorrido um pouco por todo o país, uns mais publicitáveis outros menos. Alguns “especialistas” opinam, no sentido do seu incremento estatisticamente falando, enquanto que outros preferem referir-se dum ponto de vista qualitativo, no sentido de certos crimes que há anos eventualmente teriam menor expressão, ao contrário do que acontece actualmente.
Esta foi a tese dum douto sábio sociologo ex-judiciária e estudioso destas matérias que, novidade das novidades, advertiu que a situação tende a piorar nos próximos anos, na sequência do que aconteceu com outros países mais “desenvolvidos” hoje que há vinte ou trinta anos atrás. É explícita a inerência da violência manifesta e silenciosa nas relações humanas, no entanto a história mostra o incremento expoencial da violência nas sociedades capitalistas desenvolvidas, tendo unicamente como resposta, igualmente o incremento da violência por parte do aparelho judicial e policial. Violência com violência se paga. Assim vai o mundo, como diria Gastão.
Último tópico a considerar e a merecer uma maior atenção oportunamente: o movimento dos Sem-Terra no Brasil. Nunca este movimento estaria a dar os brados que ultimamente nos têm chegado se estivesse a ser enquadrado por sindicatos com as características dos nossos. Trata-se dum movimento espontâneo de camponeses saturados com a situação de miséria em que vivem e em que não têm nada a perder a não ser os grilhões que os prendem aos grandes proprietários de terras que os exploram. Situação explosiva que terá obrigatoriamente desenvolvimentos. Basta para isso a persitência, com a acuidade necessária que a situação exige, por parte deste movimento reinvidicativo sem enquadramento partidário. Pelo menos até ver.

Tuesday, January 30, 2007

O ANTAGONISMO DE CLASSES NO SEIO DA GRANDE REVOLUÇÃO


1 - Introdução. Nós e a Revolução Francesa.

Os homens dos finais do século XX acabaram de fazer duzentos anos de idade. Se para a duração média em termos físicos, da vida de cada um de nós, é muito tempo, no conjunto da história da humanidade mesmo se tormarmos em conta só o período a partir da consciencialização racional da realidade que unanimemente se considera que se deu a partir da Grécia Antiga do século VI a.c. é manifestamente pouco.
Na realidade o que somos como cidadãos, como seres sociais, como políticos no sentido aristotélico do termo devemo-lo à Revolução Francesa. A maneira como nos comportamos no tecido social, a maneira como amamos e odiamos o nosso semelhante devemo-lo à Revolução Francesa. Devemo-lo à Revolução porque os antagonismos de classe onde ainda hoje nos movimentamos foram criados há duzentos anos com a queda do "Ancien Régime" e com a abolição dos privilégios feudais. Todas as revoluções posteriores inclusive a Revolução Russa de 1917 (eu diria fundamentalmente essa) lhe são subsidiárias.

2 - Os intervenientes e a dualidade de poderes

Os intervenientes n' "A Grande Revolução" como lhe chamou Kropotkine são vários (1). Ouçamo-lo: "Duas grandes correntes prepararam e fizeram a Revolução. Uma, a corrente de ideias - a onda de ideias novas sobre a reorganização política dos Estados - vinha da burguesia. A outra, a da acção, vinha das massas populares - dos camponeses e dos proletários nas cidades, que queriam obter melhorias imediatas e tangíveis para as suas condições económicas. E quando estas duas correntes se encontraram num fito a princípio comum, quando durante certo tempo se prestaram mutuamente auxílio, deu-se então a Revolução." (2)
Como nos diz Kropotkine, em todo o decorrer da Revolução Francesa se pôs, de certo modo constante e antagónico, a questão das formas do poder popular. Foi, aliás, a própria burguesia que por necessidade ideológica se apropriou da noção de soberania popular. Isso aconteceu fundamentalmente devido a dois motivos: primeiro porque o conceito de soberania popular opôs-se à soberania de direito divino; segundo porque a burguesia necessitava do concurso do povo para fazer a sua revolução em 1789 (3)

3 - A influência na Revolução dos filósofos burgueses.

A crítica ao Absolutismo foi feita durante uma parte do século XVII e todo o século XVIII pelos mais importantes filósofos da época como John Locke, Montesquieu e Rousseau cujas obras influenciaram directamente os burgueses mentores da Revolução como é o caso de Robespierre.
"De há muito que os filósofos do século décimo oitavo tinham minado as bases das sociedades cultas da época, nas quais o poder político, assim como uma imensa parte das riquezas pertenciam à aristocracia e ao clero. Proclamando a soberania da razão, predicando confiança na natureza humana e declarando que esta, corrompida pelas instituições que no decurso da história impuseram ao homem a servidão, reencontraria, todavia, todas as suas qualidades quando reconquistasse toda a sua liberdade, os filósofos tinham aberto à humanidade novos horizontes." (4)
Mas a ideia de soberania popular era uma ideia força que o povo poderia um dia voltar contra a burguesia. Esta, desde o início, deu pelo perigo, tentou precaver-se, esforçou-se por limitar o alcance do princípio, a fim de que o cidadão comum não fosse levado a interpretá-la num sentido prejudicial à ordem burguesa.(5)
Ora a burguesia moderna, se tinha necessidade de proclamar contra o absolutismo que todo o poder emana do povo, não podia admitir que o povo pretendesse exercê-lo. É o que se conclui das seguintes palavras de Kropotkine: "(no 14 de Julho) A Revolução alcançou a sua primeira vitória. É esta a versão comum, que se repete em todas as festas da República; todavia não é de todo exacta. Verdadeira no rápido enunciado dos factos principais, não diz o que é preciso dizer sobre o papel do povo na sublevação, nem sobre as verdadeiras relações entre os dois elementos do movimento: o povo e a burguesia. Na insurreição de Paris, nas vésperas de 14 de Julho, houve como em toda a Revolução, duas correntes separadas de origem diversa: o movimento político da burguesia e o movimento popular. Em certos momentos ambos se uniram, nos grandes dias da Revolução, para uma aliança temporária, e alcançavam as grandes vitórias sobre o antigo regime. A burguesia, porém, desconfiava sempre do seu aliado de momento - o povo. Foi o que se deu em Julho de 1789. A aliança conclui-se contra a vontade da burguesia, que logo no dia seguinte a 14 e até durante o movimento se apressou a organizar-se para por um freio ao povo revoltado." (6)
Foi preciso arranjar uma solução.

4 - Democracia directa versus regime parlamentar

Os republicanos ingleses do século XVIII enxertaram a noção de soberania do povo numa instituição que, na origem, nada tinha a ver com ela. O parlamento nascera em Inglaterra, do desmembramento do regime feudal. Era o resultado de um compromisso entre a aristocracia e a burguesia. Deste parlamento fizeram os republicanos ingleses a expressão da soberania do povo. Assim, o pensamento burguês julgava ter encontrado um mio inofensivo de arrastar consigo o povo no assalto ao Absolutismo. Em teoria, todo o poder emanava do povo; mas, na prática, negava-se-lhe o direito de o exercer ele próprio.
Rousseau, representante intelectual da burguesia do século XVIII e apesar disso, chegou a fazer a crítica do regime parlamentar que de certa maneira, antecipa as de Proudhon e Marx. No entanto nega-se a tirar a conclusão lógica da necessidade da democracia directa. Robespierre, discípulo de Rousseau e apesar de afirmar que "os delegados do povo não devem ser déspotas acima da lei" manteve-se irredutivelmente hostil à democracia directa o que se compreende imediatamente dos seus discursos não obstante a sua constituição de 1793.
Mas sucedeu o que não podia deixar de suceder: a rude lógica popular passou por cima de todos os obstáculos destinados a desviá-la do seu rumo. Fez ela própria a dedução de que tinham tentado impedi-la. Do subtil raciocínio de Rousseau e de Robespierre aproveitou só o que lhe interessava, e não fez caso do resto. Tinham-lhe enchido os ouvidos de que o povo era o soberano, que a soberania era inalienável e não podia ser representada. (7)
Daí concluiu o povo que tinha o direito permanente de exercer ele próprio essa soberania, de se fazer ouvir quando muito bem entendesse, de atacar os seus delegados desde que estes não lhe dessem satisfação. e até de lhes tomar o lugar.
Adversários da soberania popular haviam posto a burguesia de sobreaviso, desde o início da Revolução, contra a interpretação radical que certamente dela tiraria o homem da rua.
De facto, as objecções dos pensadores burgueses contra a democracia directa foram transtornadas pela lógica popular. Perante o espanto da burguesia revolucionária, os "sans culottes" opuseram, vezes sem conta à dita soberania da assembleia parlamentar, a verdadeira soberania do povo, exercendo-se nos próprios locais onde o povo se reunia: nas secções, nas comunas, nas sociedades populares.(8)

5 - A comuna e a Revolução

As comunas traduziram imediatamente no dia a dia, a vontade da vanguarda revolucionária. O sentimento de serem os instrumentos mais eficazes e os intérpretes mais autênticos da Revolução conferiu-lhes a audácia de disputar o poder a uma Convenção que no entanto respeitavam.
À cabeça da Revolução não era, no entanto, só a capital. A necessidade de exprimir a vontade de vanguarda popular, não só de Paris mas de toda a França, de um modo que o regime parlamentar não podia garantir, muito mais directo e frequente, fez surgir espontaneamente a ideia de uma federação das comunas em torno da Comuna parisiense. (9)
A partir dos finais de 1793, a burguesia não deixou de reforçar o poder central, a fim de impedir qualquer tentativa de federação entre as comunas ou as sociedades populares.
Desmentia-se assim a afirmação dos filósofos burgueses que proclamavam a democracia directa impossível nos países mais extensos, devido à impossibilidade material de reunir numa só assembleia o conjunto dos cidadãos: espontaneamente, a Comuna descobrira uma nova forma de representação, mais directa e mais flexível que o sistema parlamentar e que reduz os inconvenientes deste ao mínimo. Entretanto a burguesia empenhava-se em afirmar que a democracia de tipo comunal era uma forma regressiva e não progressiva relativamente ao regime parlamentar e considerava que os partidários da Comuna tinham como objectivo ressuscitar o passado.
Ora o objectivo deste novo poder não era de modo algum voltar ao parcelamento de tipo feudal, mas era a expressão da unidade da nação bem superior àquela realizada à força primeiro pelo absolutismo depois pelo regime representativo e pelo centralismo burguês.
Foi esse federalismo revolucionário da comuna de 1793, manifestado durante a Revolução Francesa, que inspirou os de Proudhon e Bakunine e enfim da Comuna de Paris de 1871.

Notas:

(1) Ver o excelente livro de Pedro Kropotkine de 1909 A Grande Revolução com tradução portuguesa de 1913 em dois volumes. Vivo agradecimento ao companheiro Moisés Ramos pela cedência desta obra.

(2) Kropotkine,Pedro - A Grande Revolução, Guimarães ed. 2 vols., Col.Sociológica, Lisboa, 1913, Pág.7.

(3) A propósito desta obra de Kropoktine é interessante notar que o historiador marxista português Hernâni Resende na obra Igualitarismo Agrário e Socialismo Utópico na Transição do Feudalismo para o Capitalismo em França no século XVIII (livros Horizonte, col. Dialéctica, Lisboa, 1979, págs.51-73) tece alguns comentários que do nosso ponto de vista libertários não podem deixar de ser considerados imprecisos o que não é para admirar tratando-se dum marxista... Nomeadamente põe uma questão importante que é "qual a especificidade intrínseca do igualitarismo que ele (kropotkine) integra no comunismo agrário? " (Esta questão surge a propósito das revoltas campesinas durante a Revolução Francesa) pergunta essa para a qual não encontra resposta (ou não que encontrar). Sendo Kropoktine anarquista a resposta à questão não é tão difícil de descortinar...

(4) Kropotkine, Pedro - A Grande Revolução, Pág.6.

(5) Ver quanto a este e outros aspectos os escritos de Proudhon sobre a Revolução Francesa reunidos por Daniel Guérin na obra Proudhon, Oui & Non, ed.Gallimard, Mayenne, 1978, págs.57-150.

(6) Kropotkine,Pedro - A Grande Revolução, Pág. 24.

(7) É necessário lembrar que o orgão da Federação Anarquista Francesa o "Le Monde Libertaire" - em todos os números deste ano tem publicado artigos sobre aspectos relevantes da Revolução Francesa. A este propósito chamo a atenção para os seguintes artigos:
a) Ruby, Christian - "Révolution Française - A l'Assaut de l'État?" in Le Monde Libertaire, Paris, nº 745, 30 Avril 1989, Pág.10.
b) Yves - "La Révolution Française et les Ouvriers" in Le Monde Libertaire, Paris, nº 749, 27 Avril 1989, Pág.10.

(8) A luta que pôs a Comuna à Convenção é riquíssima de peripécias por vezes trágicas mas sempre eloquente em relação ao antagonismo de classe. Não é possível aqui e agora por falta de espaço reflectir sobre essa luta. Talvez em próxima ocasião.

(9) Estima-se o número das comunas espalhadas por toda a França em cerca de 44.000.

(10)Proudhon - Confessions d'um Révolucionnaire, Marcel Rivière, Paris, Pág. 403.

OS TRIBUNAIS E O ESTADO

Nos sistemas políticos ocidentais, os juízes são independentes. Mas independentes de quê? A resposta que geralmente se dá é que são independentes do governo no poder, perante o qual não se encontram obrigados. Pelo menos aqui, aplica-se o conceito da separação de poderes. E neste sentido específico, a noção de independência judicial tem inegáveis méritos.
Todavia, a noção da independência judicial exige uma análise mais pormenorizada, já que tende a obscurecer outros aspectos importantes do papel dos juristas nestes sistemas.
Um desses aspectos é que os juízes dos tribunais superiores e inferiores também não são nem podem ser independentes do rol de influências, nomeadamente, origem de classes, educação, situação de classe e tendência profissional, que contribuem para a formação da sua visão do mundo.
Notamos já, a este respeito, que a s elites judiciais, como outras elites do sistema de Estado, provêm na sua maioria das camadas média e superior da sociedade. Aqueles que têm uma origem diferente, terão ingressado naquelas camadas quando chegam a ocupar a cadeira de magistrados. Além disso, a tendência conservadora inerente à sua situação de classe é reforçada pelo facto de os juízes em muitos destes sistemas, serem recrutados na magistratura, cujas disposições ideológicas se moldam tradicionalmente segundo padrões conservadores. Nos países do capitalismo avançado, os juízes são indivíduos de tendências conservadoras quanto à organização económica, social e política da sociedade.
Acresce que os governos, que geralmente têm a seu cargo a nomeação e a promoção dos juízes, tendem a favorecer precisamente tendências conservadoras. Não obstante o preconceito ideológico dos magistrados, é um facto que advogados radicais têm atingido posições de relevo na magistratura. No entanto, não geralmente com a simpatia do poder que os nomeia. O mesmo acontece com juízes de tribunais inferiores que suscitaram a crença de serem movidos por impulsos reformadores. Particularmente os juízes de tendências liberais, têm conseguido lugares de destaque no sistema judicial de países como os Estados Unidos. Mas esses constituíram sempre uma minoria, embora o seu liberalismo, por mais admirável que seja, não deva ser tomado por hostilidade às instituições económicas e sociais da sociedade capitalista. O liberalismo desses juízes está contido na estrutura do capitalismo. Eles próprios teriam achado grotesca a ideia de que poderiam sentir qualquer predilecção por um sistema diferente. Tudo isto se aplica aos juízes liberais de todos capitalistas.
É óbvia a razão da importância destas tendências ideológicas - elas afectam o desempenho das funções judiciais. Os juízes não são máquinas de vender lei, nem prisioneiros indefesos de uma estrutura legal fixa, nem meros expoentes da lei. No sistema legal de todos estes países há lugar para o critério judicial na aplicação da lei e para a criatividade judicial. A infinita variedade dos problemas sociais e situações legais faz o critério de um elemento inevitável no processo judicial.
Ao interpretarem a fazerem as leis desta maneira, os juízes não podem deixar de ser profundamente afectados pela sua visão do mundo, a qual, por seu turno, determina a sua atitude para com os conflitos que nele ocorrerem. Podem também ver-se exclusivamente guiados por valores e conceitos que se elevam acima de considerações mundanas de interesses de classe e outros interesses específicos. Todavia, na sua aplicação concreta, estes exemplos vão por vezes patentear uma posição e um preconceito ideológico distintos e identificáveis, na maioria dos casos de um tipo marcadamente conservador. Palavras com "os juízes deviam empenhar-se no princípio de que o objectivo da sociedade e de todas as suas instituições é alimentar e enriquecer o desenvolvimento de espírito de cada ser humano" são, infelizmente, sujeitas a interpretações diversas e contraditórias; não são de algum modo garantia contra qualquer tipo de preconceito, apenas uma capa para ele.
Os próprios juízes estão por vezes conscientes dos seus preconceitos. "O espírito da época, tal como se nos revela, é muitas vezes o espírito do grupo em que, por nascimento, educação, ou ocupação profissional, nos situamos." Palavras de um juiz americano. Esta consciência é acompanhada de um desejo autêntico de vencer partidarismos. Falta saber se chega...
Porém, regra geral, o êxito de tal objectivo depende do impacto social que provoca. Quanto menos crucial for a textura social das questões em jogo, quanto menos afectadas forem as relações entre capital e trabalho, quanto menos afectadas forem as relações entre capital e trabalho, quanto menos em causa estiver a segurança do Estado e a segurança da ordem social, mais probabilidades há de vencer partidarismos. Além disso, os preconceitos são menos evidentes em períodos de relativa acalmia social, do que em período de conflito social agudo.
Nos caso em que as questões em jogo têm ou parecem ter influência directa, ou mesmo indirecta, na constituição da ordem social, particularmente em épocas de crise, os juízes não estão dispostos a reconhecer a sua parcialidade, nem tão pouco eles desejam evitar uma parcialidade que os seu instinto ou a atitude mental lhes dizem ser o seu dever.
Quando se condenam jornalistas por desprezo do tribunal porque se recusarem a revelar as suas fontes os tribunais parecem aderir à proposição de que o mais dever de cidadão é para o Estado. tais sentimentos têm desde sempre movido as elites judiciais. Um dos exemplos extremos deste século da parcialidade judicial, em qualquer sistema político, foi o flagrante preconceito dos juízes alemães durante a República de Weimar a favor de criminosos e vândalos da extrema-direita, por um lado, e contra a extrema-esquerda, por outro. É no entanto de duvidar que estes juízes sentissem que estavam a trair o seu dever judicial. Pelo contrário, é mais provável que eles julgassem que o cumpriam ao revelar grande tolerância para com os homens que combatiam a subversão comunista, e estrema severidade para com aqueles que, aos olhos dos juízes, eram os agentes da subversão.
Trata-se sem dúvida de um caso extremo. Mas a verdade é que nos países de capitalismo avançado os juízes têm-se mostrado contra todos os dissidentes de esquerda. Quanto mais acentuada a dissidência, mais agressiva a hostilidade judicial. Neste capítulo, o critério judicial tem sido utilizado para apoiar, e não para obstruir, as tentativas que os governos e as legislaturas têm feito para aplacar ou suprimir opiniões e actividades dissidentes. É verdade que os tribunais têm por vezes ajudado a refrear a intolerância doutros sectores do sistema de Estado, e a importância deste facto não deve ser substimada. mais frequentemente, porém, particularmente em épocas de crise social, os juízes têm revelado uma predisposição para compartilhar o zelo da autoridade repressiva e para considerar como mal menor o subquente desgaste das liberdades cívicas.
Pode argumentar-se que há formas de legislação repressiva ou de acção executiva que pouco espaço deixam para o exercício do critério judicial - casos que o juiz, se decidir aplicar a lei, tem de aplicá-la com a severidade desejada por aqueles que a promulgaram. Mas a aplicação judicial da lei e a aceitação judicial dos esforços repressivos de governos e legislaturas não constituem simplesmente uma aplicação "neutra" da função judicial. Constituem, sim, um acto político de importante significado, que oferece a esses governos e legislaturas um elemento preciosos de legitimação. Onde não existe critério a única opção aberta aos juízes, face à repressão do Estado, é pedirem a demissão. Não é uma opção a que muitos juízes tenham julgado necessário recorrer. De qualquer maneira, há sempre uma certa medida de critério judicial, e, se é verdade que os tribunais o têm aproveitado algumas vezes em favor dos dissidentes, a regra geral tem sido aproveitá-lo para fortalecer a atitude do estado contra os dissidentes.
Isto integra-se no preconceito geral que os tribunais, preocupados com proteger a "sociedade" (isto é, sociedade onde existe desigualdade de classes), têm constantemente demonstrado a favor dos privilégios, da propriedade e do capital. Assim, a história do sindicalismo nos países capitalistas é também a história de uma luta interminável contra os esforços dos tribunais para impedir que os sindicatos defendam os interesses dos seus membros. Além de secundarem os esforços dos governos e das legislaturas contra os sindicatos, os tribunais tém inúmeras vezes tomado a iniciativa e procurado, através do exercício da criatividade judicial na interpretação dos estatutos, reduzir ou anular direitos sindicais e da classe operária que até governos e legislaturas conservadoras, sob pressão, tinham aprovado e promulgado.
É um facto que, à semelhança dos governos e dos interesses capitalistas, os juízes reconhecem que os sindicatos, longe de constituírem uma ameaça à "sociedade", podem na realidade contribuir consideravelmente para a sua "estabilidade", limitando o conflito social, em vez de exarcerbá-lo. Por consequência, as atitudes do poder judicial para com os direitos sindicais têm deixado de ser definidas em termos de uma hostilidade incessante que, de qualquer maneira, teria sido difícil sustentar sem expor os juízes a críticas prejudiciais.
Mesmo assim, os assalariados e as organizações para a sua defesa nunca estão inteiramente a salvo dos ataques do sistema judicial aos seus direitos. Talvez menos descaradamente do que no passado, mas de qualquer maneira provocando igual impacto, o critério judicial continua a ser uma ameaça permanente, não só ao "poder compensatório" que os trabalhadores conseguiram criar ao longo dos anos, como também à afirmação de militância desse poder.
Os tribunais têm sempre considerado um dos seus principais deveres para com a "sociedade" proteger os direitos de propriedade contra tentativas que o Estado tem sido forçado a fazer para limitar o âmbito de acção dos tribunais. O sector judicial não tem conseguido impedir a "interferência" do Estado nas liberdades dos possuidores de propriedade. Gradualmente, os juízes têm vindo a aceitar aquilo a que um jurista chamou a passagem do "liberalismo individualista" para o "colectivismo não sistemático". No entanto, os juízes não têm deixado de fazer tudo quanto está ao seu alcance para limitar e retardar essa transformação. Em nenhum outro campo têm eles sido guardiões mais vigilantes do "cidadão" contra o Estado.
Em resumo, o sector judicial comporta-se perante os conflitos da sociedade capitalista exactamente da mesma maneira de que qualquer outro sector do sistema de Estado. Os juízes têm estado profundamente envolvidos nesses conflitos. De todas as classes, tem sido a classe dominante aquela que menos se tem queixado da natureza e orientação desse desenvolvimento.

DA CRIATIVIDADE COMO IDEALIDADE ÀS CONDIÇÕES REAIS DA CRIATIVIDADE

"A tendência dos artistas e das pessoas vivamente interessadas pela criação artística, para aceitar o ponto de vista da "arte pela arte", nasce e reforça-se na sequência do desacordo irremediável que existe entre eles e o meio social que os rodeia."

Plekhanov

A dimensão da criatividade individual presente no produto cultural desenrola-se ela própria sobre o fundo mais vasto das condições gerais da criação num momento histórico determinado e para uma classe social determinada.
É assim, por exemplo, que a genialidade, apesar de incomensurável com a média geral (por isso mesmo é dita genialidade), se não pode definir exclusivamente em termos de incomensurabilidade. Ela é o excepcional, e por isso distinta, mas ela também guarda algo de comum e de comunicável, sem o que jamais conseguiria materializar-se. Por mais inovador que seja, o compositor, por exemplo, inscreve-se sempre numa tradição musical - que, sem dúvida, poderá revolucionar, por meio de novos temas, técnicas, concepções, etc - utiliza materiais diversos que ele próprio não criou inteiramente, uma linguagem, preocupações estéticas, morais ou políticas, etc.
A criação cultural nunca se desenvolve, pois, no vazio. Ela surge de e em condições bastante precisas, em diálogo com as quais se mantém ao longo da elaboração ou modelação em que consiste. Estas condições não se opõem, de modo algum, a uma perspectiva de criação; muito pelo contrário, constituem a sua possibilidade real.
Contrariamente a certas das tais evidências dominantes, a existência de condições não é um obstáculo insuperável para a criação, que a impeça de poder verificar-se. É, sim, possibilidade indispensável de criação. Só há criação, transformação a partir de determinadas condições dadas. Não querer reconhecê-lo é perder de vista qualquer possibilidade de vir a considerar a criação enquanto fenómeno social real, para a condenar irremediavelmente a um desterro para as longínquas paragens da unificação ou da mistificação.
Porém, uma vez arredada a teia obscurantista dos preconceitos que tendem a encarar a criação artística como um produto ex nihilo engendrado no céu limpo e "puro" da fantasia espiritual, indispensável se torna ainda mostrar o modo concreto por que, na verdade, ela é repetidamente levada a cabo no plano cultural das sociedades humanas.
O artista não é, de forma alguma, um ser estranho que paira acima, ou adiante, da sociedade. A sua condição originária é a de um ser social, como no fundo, a de todo e qualquer homem.
Se ele é ou se sente marginalizado, se se encontra "adiantado"relativamente à sua época, ou incompreendido no seu poder visionário, isso não significa que ele esteja fora ou além da sociedade. Significa, sim, que essa é a forma concreta de uma sua determinada maneira de se relacionar com ela.
Aliás, ainda restaria ver, para sermos concretos, se essa possível marginalização ou incompreensão era imposta pela própria sociedade (isto é, por um conjunto de condições objectivas, entre as quais avultam, necessariamente, as atitudes directa ou indirectamente assumidas pelas classes dominantes), ou se, por outro lado, era procurada pelo próprio artista; se correspondia de facto a uma situação real ou se, pelo contrário, não traduzia mais que uma forma subjectiva de procurar sentir-se, precisamente, criador ou genial.
Importa, de facto, nunca esquecer que os marginalizados e os incompreendidos nem por isso deixam de estar em relação dialéctica com a sociedade. Isto torna-se muito claro sobremaneira a viver, segundo ligações tortuosas e de diverso tipo, que podem ir desde a mesada paterna até aos chorudos lucros provenientes de uma actividade literária que, paradoxalmente, se enquadra perfeitamente nos objectivos pluralistas e liberais do sistema.
Algo de semelhante se poderia dizer também dos eventualmente denomináveis marginalizados indiferentes, aqueles que, no fundo, se podem dar ao luxo de se estar nas tintas para o sistema, ou seja, aqueles que, de algum modo, dele acabam por beneficiar, quer já directamente, quer sob a forma de certeza de um futuro assegurado logo que o desvario da marginalização passe.
Por conseguinte, parece ficar bem claro que toda a criação artística se dá dentro de condições bem determinadas, quer respeitantes à estrutura fundamental da sociedade em questão e ao lugar aí ocupado pelo criador, independentemente da forma como ele deliberada ou conscientemente assume esse lugar.
Falar de criação artística fora destas condições é pois, cair no idealismo de supor uma arte desencarnada ou uma casualidade mágica seja de que tipo for. Ou seja, é considerar o fenómeno artístico e a criação fora do seu contexto real e, portanto de uma forma mistificada e mistificadora.
Este artigo foi escrito sob a influência directa da última obra de Peter Hammill The noise de 1993: "And it's all on offer, guaranteed natural, quality control assured, in the Great European Department Store..."

PARA UMA ANÁLISE DO COMPORTAMENTO MILITARISTA


"Estive no exército durante quase cinco anos e não consigo ver com é que limpar metais, pavimentos e outras coisas que preocupam o sargento e fazer continência a todo o momento, marchar de roda como um grupo de coristas e pedir licença para ir aos sanitários possa fazer de alguém um homem. A verdade é que, quando se entra para a tropa, perde-se a liberdade, tanto física como mental, e apenas tem de se obedecer a ordens."

Um soldado das tropas regulares

Autoritarismo, militarismo e Conservadorismo sempre andaram de mãos dadas. Aquilo que certos psicólogos chamaram "a personalidade militar - industrial" tem a ver com alguém que foi talhado e tem um investimento emocional, no uso da força e da maquinaria de guerra para resolver os problemas do mundo. Estudos mostraram que o militarista é uma pessoa autoritária e relativamente preconcebida. É emocionantemente dependente, socialmente conformista e religiosamente ortodoxo. O seu interesse pelo bem - estar dos outros é relativamente baixo. É extremamente desconfiado com o novo e o desconhecido. Tais pessoas são também não criativas, não imaginativas, de espírito estreito, buscando a segurança, orientados para o prestígio, limitadas, ultramasculinas, anti-intelectuais, extrovertidas e socializadas severamente quando crianças.
Têm lacunas no que respeita à apreciação estética, complexidade de pensamento, independência, auto-expressão e altruísmo e um relativamente excesso de ansiedade. Finalmente, os militares profissionais situam-se mais abaixo em auto-estima do que qualquer outro grupo ocupacional.
Outros psicólogos, nomeadamente ingleses, realizaram estudos do que tem sido chamado "Síndroma do conservadorismo" em que chegaram a conclusões semelhantes. O síndroma inclui atitudes, tais como o dogmatismo religioso, o etnocentrismo, a intolerância de grupos minoritários, a inclinação para castigar, o anti-hedonismo, o conformismo, o convencionalismo, a superstição, a resistência ao progresso científico, e um gosto pelo militarismo. Por outras palavras, o síndroma dificilmente se destingue do conceito de autoritarismo já por nós estudada anteriormente.
Esta constelação de atitudes funciona como uma defesa do ego contra sentimentos de inferioridade e insegurança. Reflecte uma susceptibilidade generalizada para sentir uma ameaça ou ansiedade à face da incerteza. Funciona simplificando, ordenando, controlando e tornando mais seguro, tanto o mundo exterior, (através de processos perceptuais...) como o mundo interior (necessidades, desejos, sentimentos, etc).
É imposta a ordem sobre as necessidades e os sentimentos interiores, subjugando-os a códigos de conduta externa rígidos e simplistas (regras, leis, moral, deveres, obrigações, etc) reduzindo assim o conflito e desviando a ansiedade que acompanharia a consciência da liberdade de escolha entre modos de acção alternativos.
A um nível humano os exércitos assemelham-se ao grupo autoritário familiar. Tal como o carácter de uma família vitoriana de uma classe elevada proibia totalmente qualquer manifestação de agressão de uma criança para com os seus pais, mas encorajava a agressão organizada em determinadas actividades escolares como o boxe e certas tiranias organizadas, também no exército o mais leve vestígio de insubordinação (isto é, agressão para com um superior) é severamente punida, ao ponto de a agressão para com o inimigo ser encorajada e premiada. É óbvio que essa orientação da agressão está inteiramente de acordo com o fim das organizações militares. Justamente por isso, é obrigatório dar pouca rédea à agressão numa profissão cujos recursos e a solução para a maior parte dos problemas é a violência física. Os mais que muitos massacres que a História dá conta, mostram claramente como nas acções se pode perder rapidamente o controle da situação.
O que acontece é que o grupo militar dá incentivos poderosos para libertar impulsos proibidos, levando o soldado a experimentar actos proibidos anteriormente e que ele, de início, considerava moralmente repugnantes. Por essa razão, de um ponto de vista psicológico, o militarismo empenha-se em manter esse estado de coisas paradoxal em que o sentimento de ira pode estar totalmente separado da agressão, em que se exige de um soldado que elimine a sua agressão para com os seus superiores que ele talvez deteste, ao mesmo tempo que a desafoga sobre um inimigo hipotético em relação ao qual ele pode não ter nenhum sentimento hostil.
É uma situação com grandes probabilidades de ruptura. Por um lado há provas anedóticas de soldados que, no calor da batalha, dispararam, pelas costas, sobre os seus próprios sargentos e oficiais, ou que estando em fila a fazer fogo com espingardas - metralhadoras. se viraram para trás para perguntar qualquer coisa, sem se lembrarem de tirar o dedo do gatilho. Estes azares fazem lembrar que até as mais fortes defesas contra a agressão interdita podem ceder sob pressão. Por outro lado, há aquelas ocasiões embaraçosas, como as que se verificaram durante a guerra civil americana, quando os soldados se esqueciam de combater uns contra outros para acamaradar amigavelmente com o inimigo.
O exemplo clássico deste comportamento heterodoxo aconteceu no dia de Natal de 1914, quando as tropas inglesas e alemãs se juntaram em alegres convívios na terra de ninguém. Escusado será dizer que estes repreensíveis lampejos de humanidade foram rapidamente extintos pelos generais de ambos os lados. Felizmente (para os generais) não houve um prejuízo duradouro, mas o episódio fez ressaltar a necessidade dos tais aspectos de militarismo que garantem que a agressão não fraqueja quando se precisa de ódio.
É precisamente por o trabalho do soldado ser destruição e violência que se toma tão premente a necessidade de tomar precauções gerais contra a desordem. Aqui a igreja é chamada a uma posição paradoxal, como muitas outras posições paradoxais que a igreja católica tem tomado ao longo destes dois mil anos. O serviço activo traz consigo muitas privações. A boa comida, o lar, o conforto, a segurança, a vida em família, são, em diversos graus, sacrificados à luta contra um inimigo para com o qual muitos dos combatentes sentem pouco animosidade. É dentro deste contexto que eles são obrigados a violar o sexto mandamento. Se obedecem a este chamamento a um comportamento não cristão, são recompensados, se desobedecem, são punidos. Cabe aos capelães tentar a reconciliação. A sua função será tranquilizar o rebanho militar dizendo-lhes que, estando Deus do seu lado, é possível ignorar o sexto mandamento enquanto dura a guerra.
Como conseguem eles reconciliar isto com a consciência que terão de que, muito provavelmente, os soldados inimigos estarão a ouvir o mesmo discurso dos seus capelães, continua a ser um dos mistérios da mentalidade eclesiástica. Isto mostra entre outras coisas que a relação entre religiosidade, agressividade e autoritarismo são já fenómenos velhos.
De acordo com os resultados de estudos levados a cabo na década de 70, a falta de compaixão que caracteriza o militarismo é sempre acompanhada pelo conformismo moral, por um espírito fechado e pela falta de criatividade. No jornal inglês Observer de 10-11-69 surge um bom exemplo acerca da relação entre atitudes autoritárias e falta de compaixão. Cita-se uma carta escritas a um deputado conservador da época cujo autor "afirmando o seu acordo com as posições do deputado acerca do aborto, discorreu, ao longo de muitas páginas, acerca da santidade da vida humana, concluindo: P.S. Também estou de acordo consigo acerca do enforcamento".

Monday, January 29, 2007

Proudhon: Greves e Conflitos de Classes


Mais uma vez, Proudhon espanta-nos e, para alguns, faz mesmo escândalo. O combatente de todas as lutas sociais, o solitário que queria “reconstituir o partido da revolução” e não hesitou em aceitar “o direito da força”, é também aquele que tinha as greves como forma de “chantagem” ( ele escreve a palavra ). Generalizadamente, muito depois das fluctuações do assunto do valor dos conflitos de classe, ele acabará por prognosticar a formação de uma vasta classe média no seio da qual se inscreverão as oposições entre poderosos e proletários, como o conjunto dos antagonismos inerentes a toda a sociedade.
Não está então esta “pequena burguesia” estimatizada por Marx e os seus seguidores. Cabe a cada um julgar. Ainda lhe convêm fazê-lo sobre puzzle, depois de ter substituído as posições que nós vimos evocar no se contexto histórico. É o que eu me proponho a fazer aqui, mantendo-me bem informado pelas grandes linhas de um pensamento complexo e que talvez nunca tenha encontrado a sua expressão definitiva.
Comecemos pelos julgamentos de Proudhon sobre o príncipio e a prática das greves. Muito isoladas, com efeito, ao longo da sua obra – já que ele não evocou o assunto mais que duas vezes, com vinte anos de distância – as suas condenações não terão uma grande repercurssão no seio do futuro movimento operário. Elas exigem alguma atenção, para apanhar a argumentação do autor e evitar cair no anacronismo.
Isto não vem antes das Contradicções económicas (1846), já que o tema é abordado de forma significativa. Uma primeira vez incidentemente, na página 184 do I volume (1), ao longo do desenvolvimento sobre os efeitos do machismo que ameaça a seguinte afirmação: “Hoje, a aliança e as greves dos operários parecem ter acabado sobre todos os pontos da Inglaterra e os economistas reúnem-se com razão à volta da ordem, dizendo mesmo pelo bom-senso”. Deixemos de lado o que pode ter de litigioso a constatação, para sustentar somente o acordo naquilo que ele tem de peremptório. Encontra-se a justificação – senão mesmo a demonstração – nas páginas 323 e seguintes da mesma obra, a propósito desta vez da repercurssão da fiscalidade sobre o jogo da concorrência. Tentemos resumi-la.
Acabado de descobrir os economistas clássicos, Proudhon aponta os apostulados da teoria liberal para fazer aparecer as “contradicções”. É nesta perspectiva que lhe convêm interpretar a sua explicação da passividade complacente do poder político no grave conflito que tinha tido lugar, em 1844, aos mineiros da margem-de-Gier. Terminando o trabalho para obter um aumento de salário num sistema de concorrência livre garantida pela lei, argumenta ele, os mineiros tendem a falsear o mecanismo da formação dos preços. Desde logo, não seria de espantar que as autoridades tinham estado do lado dos empreendedores. Se, com efeito, estes cedessem diante da aliança operária, eles encontrariam-se em posição de inferioridade em relação aos seus concorrentes e todo o equilibrio do sistema seria destruído. Por vezes o aumento das mercadorias anularia certamente as vantagens arrancadas. O direito social não sendo reconhecido, só o incómodo dos feitos estava disposta a regular o mercado: “Já que o trabalho não é reconhecido, ele deve ser a escravidão: a sociedade não subsiste a este preco” ( Loc. Cit., p. 323).
Certamente, pode-se estar chocado com uma tal atitude, não sendo como uma opinião estritamente proudhoniana. Mas como não ver que ele se agita num raciocínio pelo absurdo, deliberadamente provocante segundo a maneira do autor? Colocando no extremo as consequências do liberalismo, Proudhon quer demonstrar o absurdo. E, consequentemente, justificar a sua substituição por um regime contratual que, sem conhecer as leis da economia, seria conforme a Jutiça. Isso chama-se plagiar o falso para chegar ao verdadeiro.
Admitimos frequentemente que, esta última interpretação lógica, dissimulam-se outros inconstantes mais ou menos conscientes. Intimamente, Proudhon é um “homem da ordem”, como o diz o título do seu ambicioso tratado dos anos precedentes ( não terá deixado de salientar também a expressão “regresso à ordem” na citação mais eloquente ). É por amor à ordem que ele se afirma revolucionário. Mais, o seu profundo respeito pelo trabalho possuí-o institivamente a ter como anti-social o facto de interromper a produção pela violência. Ele supõe que as rebeliões isoladas não são só vaidosas, mas geradoras do mal.
Não se saberia conhecer que as condições da época corrumpiam terrivelmente esta forma de ver. No estado de desorganização onde se encontrava a classe operária, as greves só podiam ser pontuais com as reivindicações limitadas para o aumento dos salários ou a quebra das subsistências. A ameaça do desemprego e a certeza da repressão sendo quase sempre a contrapartida. Evitar estas misérias suplementares aos que oprimiam desde logo o peso da fatalidade podia portanto, compreender-se. um dia viria no qual a educação permitia-lhe associar-se para enfim uma mudança durável da sua condição.
Sem dúvida estes argumentos não deixaram de ser contraditórios, no mesmo meio histórico, por aqueles para que toda a revolta é fonte de progresso, mesmo quando ela se consulidava por um insucesso. Constatamos que isso não era o ponto de vista de Proudhon, nas condições da Monarquia de julho. Muitos só esperavam então uma mudança de regime. Outros viam mais longe e procuravam os meios de uma transformação completa da sociedade. O debate está, para certos olhares, sempre aberto.
Ainda mais curioso segundo os critérios de hoje, é a obstinação de Proudhon a comandar a greve até a toda a sua última e célebre obra, intitulada por um acréscimo de paradoxo: Da Capacidade política das Classes operárias ( 1865, póstumo ). Todo o IX capítulo, está lá consagrado, explicitamente intitulado: “As alianças operárias, questão indissolúvel no regime económico-político actual” ( pp. 372, sq. ). Antes de expôr as teses, que permanecem rigorosamente na linha dos precedentes, são necessárias algumas palavras sobre as circunstâncias que ameaçaram a redacção destas páginas. Atraindo o período “liberal” do seu reino, Napoleão III tinha sugerido no seu discurso de abertura da sessão do Corpo legislativo de 1864, uma modificação de artigo do Código Penal proibindo as alianças – quer elas sejam patronais ou operárias – como é de natureza falsear as condições do trabalho. Este texto era, sabe-se, saída da lei Le Chapelier de 1791 que, não querendo conhecer os indivíduos, tinha abolido as corporações do Antigo Regime. O desejo de imperador equivalia bem entendido a uma ordem.
Uma primeira redação, bastante prudente, dos novos artigos foi modificada com a exigência de Morny por uma comissão na qual Emille Ollivier era o repórter. Ela foi de seguida adoptada por um voto de 2 de Maio de1864. O novo texto não iria até legalizar as alianças, mas fazia uma simples contravenção em vez do delito punido de penas pesadas que elas eram primeiramente. É portanto contra o que podia ser tido como um sucesso de oposição de esquerda, que Proudhon desencadeia.
De entrada ele ataca, denunciando o risco de “colocar questões ardentes onde, algum partido que se toma, os inconvenientes balancem sempre as vantagens” ( p.372 ). E deixar entender que os autores do projecto – entre os quais figurava o seu colaborador Alfred Darimon! – estão contentes em fazer um assalto de demagogia com o poder. Os trabalhadores, que se pretende ridicularizar, foram “nesta circunstância estranhamente mistificados pelos _____” ( ibid ). E Proudhon explica porquê, referindo-se directamente às suas demonstrações de 1846.
O ponto de vista não mudou sobre “a concorrência anárquica, que desde 89 é a base do nosso sistema económico”. Mas, já que “o direito económico, então como hoje, era a mesma __ do direito”, ( loc. cit., p. 375 ), Proudhon recusa-se não menos obstinadamente que antigamente a esta contradição inerente ao sistema resolvido pelos palliatifs, que segundo ele não são definitivamente os astutos. A greve deve portanto ficar ilegal para que o sistema possa funcionar e que os trabalhadores, deixando de ser nascidos de ilusões, compreendam que é ele que é preciso mudar. Tolerando mais ou menos as greves, alargava-se ainda o domínio da selva. E a Capacidade de retomar quase palavra por palavra a fórmula das Contradições segundo a qual: “Como o trabalho não será dado a conhecer como soberano, ele deve ser tratado como servo”. Na “caverna dos ladrões”, que é a sociedade actual, “… não há mais direito de aliança como não há direito de chantagem, de burla e de roubo (…); foi isto que o Corpo legislativo reconheceu implicitamente, reservando certos casos onde este pretendido direito de aliança seria considerado como abusivo, ou seja, onde a coligação reapareceria tal como era primeiramente, mal-feita e culpada” ( pp. 382-386, passim ).
Na leitura destas páginas, nas quais a violência ainda nós citámos, pode acusar-se o autor da fúria dialéctica, do maximalismo ou outros excessos, mas certamente não tomar partido a favor dos exploradores contra os explorados. Ás vezes, sobre este assunto, Marx não a fez. Colocando-se num terreno exclusivamente económico, ele crítica na Miséria da filosofia ( § 5, Pléiade, pp. 128, sq. ) a argumentação do “tudo ou nada” de Proudhon. Segundo ele, os aumentos de salários obtidos no fim de um conflito victorioso não arrebatam fatalmente uma subida dos preços. Pelo contrário, elas podem estimular, graças ao progresso técnico, o melhoramento da produtivodade. O que, tem à luz da experiência, está exactamente revelado. Como está também marcada segundo a qual, é falso que os incómodos do mercado não possam acomodar-se numa legalização da greve, já que esta foi autorizada em Inglaterra desde 1825 pela Acta do Parlamento sem que o sistema se arruine igualmente. Na realidade, escreve Marx, “Quanto mais a indústria moderna e a concorrência se desenvolvem, mais elementos existem que provocam e auxiliam as alianças; e imediatamente as alianças tornaram-se um facto económico, tomando o dia-a-dia mais consistente, elas não podem demorar em tornarem-se num facto legal” ( op. cit., p. 132 ).
Sem nenhuma dúvida, esta forma de raciocinio aparece-nos hoje, conforme a evolução dos bens sociais que a condenação sem apelo à qual ela responde ( como, bem entendido, algum desprezo ). Para dizer a verdade, a diferença dos pontos de vista explica-se em grande parte pelas situações respectivas da época, do movimento operário relativamente ao capitalismo na França e na Grã-Bretanha. Mas não é isso também porque o pragmatismo britânico tinha desde logo optado por uma estratégia reformista, que as análises marxistas tivessem podido recusar tudo tanto quanto os proudhonianos ainda que por outras razões?
Portanto, se se examina mais perto, a atitude de Proudhon perante as greves não é – apesar de uma formulação que data – tão “reaccionária” que ela é geralmente afirmada, e menos ainda em ruptura com o conjunto do seu pensamento. É preciso dizer-lhe que o estado de desorganização da classe operária francesa era a natureza justificar as suas colocações ao olhar contra os trabalhadores. Agitando-se mais particularmente da lei de 1864, que provocou o último diatribe da Capacidade, ele não estava clarividente de a ter por um poder enfranquecido, procurando ameaçar a esquerda pelas concessões menores. Denunciando-as como uma cilada, Proudhon não tinha intenção de prejudicar.
Isso não conduz a nada, e é todo o sentido desta mesma Capacidade, que ele não chama de seus desejos o tempo onde a classe operária, constituída num poder autónomo, liberar-se-à da sujeição que a esmaga. Mas, à muito tempo que as condições não serão realizadas, as insurreições dispersas só podem agravar o mal. Esta rejeição circunstacial traduz também uma concepção, não maléfica mas progressiva, da revolução. Marcada pela trágica experiência de 48-49, aquele que nunca recusou um combate este também essencialmente exposto à violência puramente destruidora.” Aos meus olhos ele não cometeu um grande crime, escreveu ele, como a excitação da guerra civil “( Cor.VI-181 ). Eis o que pode surpreender, e portanto este foi a sua posição constante.
Nesta perspectiva, efectivamente, e apesar dos golpes de cólera que são ilusão, Proudhon não variou. O único adjectivo que lhe parece digno de ser perseguido é a realização da justiça pelos meios conforme as suas exigências intrínsecas. Toda a acção deve, tanto quanto possível, ser orientada segundo este critério. Longe de querer suprimir os antagonismos pela dominação de um campo sobre outro, ele tenta a sua tensão pelo motor do progresso. A “balança” dos opostos, segundo a sua expressão faconita, é a dinâmica das sociedades. Bem diferente de uma conciliação medíocre, ela está só e capaz de contra carregar os princípios de degradação sem deixar a obra, opondo-se-lhe uma violência criadora.
Tal é a ideia directora deste grande livro, tão mal cumprida, A Guerra e a Paz, que esclarece as presentes reflexões. Os conflitos e as fontes de conflitos existem por todo o lado, e de uma certa maneira eles são produtivos. Pretender suprimi-los pela força é em vão: é preciso resolvê-los, no pleno sentido, ou seja, submetê-los à Justiça. Assim a guerra, em vez de ser a negação do direito, pode tornar-se a parteira. Ruptura de equilíbrio, ela só será superada pela instauração de um equilíbrio superior, menos injusto que o precedente. Os antagonismos só deixarão de existir com a morte, mas não é essencialmente fatal que eles terminassem aos conflitos irresoluvéis. O direito da força é o oposto do reino da força: é a regulação permanente da força pelo direito.
A mesma dialéctica da arbitragem aplica-se aos conflitos do trabalho e, mais globalmente, aos que resultam das contradições da economia. Produtos de um desiquilíbrio entre os interesses nos quais a legitimidade pode ser equivalente, eles não serão eliminados pela predominância de um grupo sobre outro, ou seja, só pela força. Isso seria vê-los renascer na primeira ocasião. Uma transacção é necessária entre as forças organizadas, segundo o direito existente ou o seu perfeccionismo para vir. Como a guerra, argumenta Proudhon, a greve onde o lock-out são os efeitos da ausência do direito, senão dito da lei do mais forte. É preciso romper esta fatalidade e não invertê-lo. Não se fará parar um incómodo uma injusta por um incómodo oposto, pois “Uma vez sobre a costa do arbitrário a Democracia operária, não mais que o despotismo, não saberia parar-se”. ( Capacidade, p. 397 ). A pseudo-legalização de um golpe de força não faz parar a ditadura, mas consolida-a.
Visões utópicas, apologia do reformismo medíocre face às esperanças de uma irresistível victória do proletariado? Que cada um decida. Delimitamo-nos em marcar que a tendência geral das nossas sociedades é sobretudo resolver os conflitos segundo o método proudhoniano, enquanto que só uma minoria falível pregue ainda uma “grande noite”, na qual ele parecia por vezes, agravar-se [1] , que Proudhon admitia, neste caso onde a opressão não oferecia nenhuma saída, o recurso à “resistência legal”: refúgio da conscripção, do pagamento de imposto, etc. Esta solução extrema não está bem próxima da “greve geral” que ________ proposera como arma suprema ­­do sindicalismo revolucionário? Lá, bem como noutros domínios, duas tradições distintas podem reclamar o mesmo título do autor da Capacidade. A não violência, o que não quer dizer a mais moderada, poderia ser a mais fiel.
Sobre os bens entre as classes sociais, e mais precisamente a “luta das classes” no sentido marxista do termo, a obra proudhoniana oferece uma diversidade de apreciações susceptíveis de ser interpretadas nos sentidos opostos. Eles têm, efectivamente, variado segundo as épocas e as circunstâncias, o seu autor parecendo conter esta questão como muitos mais conjuntural do que doutrinal, e menos ainda sociológica. No conjunto, portanto, os saltos de humor colocados à parte, estes julgamentos sucessivos e por vezes quase simultâneos, inscrevem-se na perspectiva de uma confrontação aberta na qual nós temos visto a aplicação no caso particular da greve.
“Nascido e elevado no seio da classe operária, surgiam-lhe ainda no coração e nos afectos, e sobretudo pela comunidade dos sofrimentos e dos desejos”, como ele o proclama comconvicção na sua carta de candidatura à Pensão Sucral, o Proudhon dos debates é fortemente hostil aos detentores do poder no geral, e, mais particularmente aos poderosos. O que o leva a diagnosticar que “na multidão das causas secretas que agitam os povos, ele não gosta dos poderes, mais regulares, menos desconfiáveis, que as exploso~es periódicas do proletariado contra a propriedade” ( Primeira Memória, p. 315 ).
Constatação empírica, contudo, na teoria. Desde as Contradicções ( nomeadamente I, 286 ), vê-se atrair, a propósito do imposto para o qual todos devem contribuir conforme os seus meios, o projecto de uma “transação” inscrita no contrato social. Se se compreende bem, ele agitaria-se para estabelecer entre as classes uma trave, e talvez uma cooperação, benéficas para todos. A simpatia do autor e as suas proposições têm, contudo, como principal objecto assegurar aos trabalhadores o lugar preponderante que sempre lhes foi recusado. A tomada de consciência dos seus interesses colectivos, confirmado pela ciência económica, deve ser o instrumento.
Vêem então as jornadas de 48 e as seguintes funestas. Proudhon, que tinha desde o inicio, julgado esta revolução improvisada como chegar ao insucesso, está consternada pela ausência da educação do povo, que o comanda a abandonar os demagogos. De onde o surpreendente “Elogio da burguesia” que abre a Ideia geral da Revolução, para alguns o mais subversivo dos seus escritos. A tese é que o elo da classe burguesa, que fez 89, deve prosseguir. É encabeçando a revolução social que ela confirmará o seu papel dirigente. Senão, um fim irremediável está-lhe destinado.
A mesma ideia, simplificada, reencontra-se na profissão da fé para as eleições da Assembleia nacional e de outros textos contemporâneos. Poderia-se lá ver uma um pouco ingénua, mas isso seria conhecer mal a inaptidão do nosso homem ao dissimular o seu pensamento. No estado depressivo onde se deixaram os insucessos dos anos precedentes, ele remete-se para um sobressalto das elites. Durante este curto período, como o justifica uma certa privada, Proudhon que não está desprovido de uma fórmula, coloca as suas esperanças na “conciliação das classes, símbolo da síntese das doutrinas” ( a Langlois, de 18-5-50, Cor., III-263 ). Este será o tema, dando o flanco a tantos ataques, da Revolução social demonstrada pelo golpe de Estado de 2 de Dezembro.
Bem entendido o cinicmo e a corrupção do Império não deixarão de enganar estes cálculos ainda que não tenha feito o comportamento do povo, o qual pelo menos não é culpado de nada. Então, apoiar-se no quê? O vasto inventário da Justiça estabelecerá a urgente necessidade da Revolução e os meios irrisórios dos quais ela dispõe, ora aqueles da sua força interna. Nos últimos meses da sua vida, reconfortado pelas permissas da criação de uma grande associação operária, Proudhon anuncia à burguesia que o “seu papel chegou ao fim” ( Capacidade, p. 101 ). Contudo, a pena lança este anatema, ele prossegue: “A distinção actual entre as duas classes, operária e burguesa, é um simples acidente revolucionário. Os dois devem absorver-se reciprocamente numa consciência superior”. Curioso vai e vem!
É a mesma esta anticipação que parece reajuntar a última aspiração de Proudhon. Sem dúvida, é-lhe permitido utilizar incidentemente a expressão de “luta das classes” ( Príncipio, p. 296, por exemplo ), mas no sentido muito geral e mesmo com uma espécie de repugnância. Então a noção de conflito encontra-se sobretudo na sua obra, na qual é como nós tinhamos sublinhado uma das passagens essenciais. Se a oposição das classes tinha tido para ele uma importância da mesma ordem, ele não teria deixado de se explicar.
A resposta às múltiplas questões que se colocam a propósito de Proudhon, acaba sempre na conclusão que o que ele rejeita mais a dominação do homem sobre o homem, de um grupo ou de uma classe sobre os outros, de uma verdade sobre a verdade contrária. Pode-se dizer sem razão de ser desmentido, que a sua vida foi consagrada a combater todas as formas de opressão quaisquer que elas sejam e de onde elas venham, compreendendo-se aí as da origem popular. “Eu só quero o Hércules plebeu do que o Hércules governamental”, declara ele na Guerra e a Paz ( p. 28 ), que deve ler-se em relação estreita com as suas duas obras testamentárias: a Capacidade e o Príncipio federativo.
Em definitivo, a única preocupação proudhoniana é a da Igualdade, condição da Liberdade e realização da Justiça. Se a Revolução devia acabar com a ditadura do proletariado ou com a supremacia de um qualquer partidário do diálogo social, ela seria incomparavelmente mais grave que a desordem anterior. Que se faça ou não reservas sobre tal ou tal posição, ela pelo menos, não deveria causar-nos problema.
1 - Todas as citações são feitas, salvo indicação contrária, depois da edição Rivière ( Bouglé-Moysset).
2 - Ver neste assunto, a comunicação original e documentada de Rainer Riemenschneider: “Da resistência legal: o príncipio federativo proudhoniano na época da Segunda República”, in Arquivos Proudnonianos, 1996, pp. 35, sq.