Wednesday, December 27, 2006

Do Princípio Federativo - Selecção de Textos

O Princípio Federativo de Proudhon permanece como um dos pilares do pensamento anarquista em geral e representa o culminar dum processo proudhoniano que se iniciou em 1839. O livro é importante porque é o primeiro - e permanece o principal - daqueles que trataram o Federalismo não somente, enquanto sistema de ultrapassagem de soberanias, mas como princípio geral de organização da sociedade.
I
A ordem política repousa fundamentalmente em dois príncipios contrá­rios, a AUTORIDADE e a Liberdade: o primeiro iniciador, o segundo deter­minante; este tendo por corolário a liberdade de pensamento, aquele a fé que obedece. Contra esta primeira proposição, não penso que uma só voz se possa levantar. A Autoridade e a Liberdade são tão antigas no mundo como a raça humana: nascem connosco, e perpetuam­se em cada um de nós. Notemos apenas uma coisa, a que poucos leitores atenderiam: estes dois princípios formam, por assim dizer, um par cujos dois termos, indissolu­velmente ligados um ao outro, são contudo irredutíveis um ao outro e per­manecem, independentemente do que façamos, em luta perpétua. A Auto­ridade supõe necessariamente uma Liberdade que a reconheça ou a negue; a liberdade por seu lado, no sentido político do termo, supõe igualmente uma autoridade que lide com ela, a reprima ou a tolere. Suprima­se uma das duas, a outra não faz mais sentido: a autoridade, sem uma liberdade que discuta, resista ou se submeta, é uma palavra vã; a liberdade, sem uma autoridade que a equilibre, é um contra­senso.
II
Deste modo, ao desenvolvimento do estado autoritário, patriarcal, mo­nár­quico ou comunista, opõe­se o desenvolvimento do estado liberal, contratual e democrático. E como não há limite natural à extensão da monarquia, o que em todos os tempos e em todos os povos tem sugerido a ideia de uma monarquia universal ou messiânica, também não há tão pouco limite natural à extensão do estado democrático, o que sugere igual­mente a ideia de uma democracia ou república universal. Como variante do regime liberal, assinalei a ANARQUIA ou governo de cada um por si próprio, em inglês self­government. Como a expressão de governo anárquico implica uma espécie de contradição, a coisa parece impossível e a ideia absurda. Não há no entanto que retomar aqui senão a linguagem: a noção de anarquia, em política, é tão racional e positiva como qualquer outra. Consiste em que, reduzidas as funções políticas às funções industriais, a ordem social resultaria da simples existência de transacções e trocas. Todos poderiam então dizer­se autocratas de si próprios, o que é o extremo oposto do absolutismo monárquico.
III
Que a democracia multiplique tanto quanto quiser, com os funcioná­rios, as garantias legais e os meios de controlo, que cerque os seus agentes de formalidades, chame sem cessar os cidadãos à eleição, à discussão, ao voto: queira ou não queira, os seus funcionários serão homens de autori­dade, o nome está dado; e se entre esse pessoal de funcionários públicos se encontrar um ou alguns encarregados da direcção geral dos assuntos, esse chefe, individual ou colectivo, do governo, é o que o próprio Rousseau chamou príncipe; por pouco não é um rei. Pode­se fazer observações análogas sobre o comunismo e sobre a anarquia. Não existiu nunca um exemplo de uma comunidade perfeita; e é pouco provável por alto que seja o nível de civilização, de moralidade e de sabedoria que o género humano atinja, que todos os vestígios de governo e de autoridade desapareçam. Mas, ao passo que a comunidade continua a ser o sonho da maioria dos socialistas, a anarquia é o ideal da escola eco­nómica, que tende francamente a suprimir toda a instituição governa­mental e a constituir a sociedade somente sobre as bases da propriedade e do trabalho livre.
IV
Todas as variedades de governos de facto, por outras palavras, todas as transacções governamentais experimentadas ou propostas desde os tempos mais recuados até aos nossos dias reduziram­se a duas espécies princi­pais, que chamarei pelas suas designações actuais, Império e Monarquia constitucional. Isto exige uma explicação. Sendo a guerra e a desigualdade da sorte desde as origens a condição dos povos, a Sociedade divide­se naturalmente num certo número de classes: Guerreiros ou Nobres, Padres, Proprietários, Mercadores, Nave­gantes, Industriais, Rurais. – Onde a realeza existe, forma uma casta pró­pria, a primeira de todas: é a dinastia. A luta de classes, o antagonismo dos seus interesses, a ma­neira como esses interesses se ligam, determina o regime político, conse­quentemente a escolha do governo, as suas inumeráveis variedades e suas variações mais inumeráveis ainda. Pouco a pouco todas essas classes se reduzem a duas: uma superior, Aristocracia, Burguesia ou Patriciado; uma inferior, Plebe ou Proletariado, entre as quais voga a Realeza, órgão do Poder, expressão da Autoridade. Se a Aristocracia se une à realeza, o governo daí resultante será uma monarquia temperada, actualmente dita constitucional; – se é o povo que se alia com a autoridade, o governo será um Império, ou demo­cracia autocrática.
V
O povo, devido à sua própria inferioridade e à sua miséria, formará sempre o exército da liberdade e do progresso; o trabalho é republicano por natureza: o contrário implicaria contradição. Mas, devido à sua ignorância dos seus instintos primitivos, da violência das suas necessidades, da impaciência dos seus desejos, o povo inclina­se para as formas sumárias de autoridade. O que ele procura, não são garan­tias legais, das quais não faz qualquer ideia e não concebe o poderio; não é em absoluto uma combinação de mecanismos, uma ponderação de forças, das quais não sabe que fazer: é um chefe em cuja palavra possa acreditar, cujas intenções sejam suas conhecidas e que se devote aos seus interesses. A esse chefe, ele dá uma autoridade sem limites, um poder irresistível. O povo, olhando como justo tudo o que julga ser­lhe útil, tendo en conta que ele é o povo, ri­se das formalidades, não faz caso algum das condições impostas aos depositários do poder. Predisposto à desconfiança e à calú­nia, mas incapaz de uma discussão metódica, não acredita em definitivo senão na vontade humana, não tem esperança senão no homem, não tem confiança senão nos seus semelhantes, in principibus, in filiis hominum); não espera nada dos princípios, que só eles os podem salvar; não tem a religião das ideias.
VI
Os Gregos e os Romanos, que nos legaram as suas instituições com os seus exemplos, chegados ao momento mais interessante da sua evolução, afun­daram­se no desespero; e a sociedade moderna parece chegada por sua vez à hora da angústia. Não acrediteis na palavra desses agitadores que gritam: Liberdade, Igualdade, Nacionalidade; eles não sabem nada: são mortos que têm a pretensão de ressuscitar os mortos. O público escuta­os um instante como faz com os bobos e os charlatães; depois vai­se, com a razão vazia e a consciência desolada. Sinal certo de que a nossa dissolução está próxima e que uma nova era vai começar, a confusão da linguagem e das ideias chegou ao ponto em que qualquer um se pode proclamar à vontade republicano, monárquico, democrata, burguês, conservador, divisionista, liberal, e tudo isto à vez, sem temer que alguém o convença da mentira nem do erro.
VII
O contrato político não adquire toda a sua dignidade e moralidade se­não com a condição 1º de ser sinalagmático e comutativo; 2º de estar contido, quanto ao seu objecto, dentro de certos limites: duas condições que se supõe existirem no regime democrático, mas que, ainda aí, não são quase sempre senão uma ficção. Pode­se dizer que numa democracia representativa e centralizadora, numa monarquia constitucional e censo­rial, ainda mais numa república comunista, à maneira de Platão, o con­trato político que liga o cidadão ao Estado seja igual e recíproco? Pode dizer­se que esse contrato, que tira aos cidadãos metade ou dois terços da sua soberania e o quarto do seu produto, esteja encerrado nos seus justos limites? Seria mais verdade dizer, o que a experiência confirma dema­siadas vezes, que o contrato, em todos esses sistemas, é exorbitante, one­roso, pois que ele é, para uma parte mais ou menos considerável, sem compensação; e aleatório, pois que a vantagem prometida, à partida insuficiente, nem sequer é assegurada. Para que o contrato político possa cumprir a condição sinalagmática e comutativa que sugere a ideia de democracia; para que, encerrando­se em limites correctos, ele continue vantajoso e cómodo para todos, é preciso que o cidadão, entrando na associação, 1º tenha tanto a receber do Estado como o que lhe sacrifica; 2º que conserve toda a sua liberdade, soberania e iniciativa, menos o que é relativo ao objecto especial para o qual o con­trato foi feito e para o qual se pede a garantia do Estado. Assim regulado e compreendido, o contrato político é o que eu chamo uma federação. FEDERAÇÃO, do latim foedus, genitivo foederis, quer dizer pacto, contrato, tratado, convenção, aliança, etc., é uma convenção pela qual um ou mais chefes de família, uma ou mais comunas, um ou mais grupos de comunas ou Estados, se obrigam recíproca e igualmente uns en relação aos outros para um ou mais objetos particulares, cuja carga incumbe então especial e exclusivamente aos delegados da federação
VIII
Em resumo, o sistema federativo é o oposto da hierarquia ou centrali­zação administrativa e governamental a qual distingue, ex aequo), as democracias imperiais, as monarquias constitucionais e as repúblicas uni­tárias. A sua lei fundamental, característica, é esta: Na federação, os atributos da autoridade central especializam­se e restringem­se, dimi­nuem de número, de intermediários, e se ouso assim dizer, de intensidade, na me­dida em que a Confederação se desenvolve pela acessão de novos Estados. Nos governos centralizados, ao contrário, os atributos do poder supremo aumentam, estendem­se e imediatizam­‑se, colocando na competência do príncipe os assuntos das províncias, comunas, corpora­ções e particulares, na relação directa da superfície territorial e do número da população. Daí essa sobrecarga sob a qual desaparece toda a liberdade, não só comunal e provincial, mas mesmo individual e nacional.
IX
Em 1789, a prova do federalismo não tinha ainda sido feita; a ideia não estava em absoluto adquirida: o legislador revolucionário não tinha por­tanto nenhuma conclusão a tirar. Era preciso que as confederações, só elas, que palpitavam em alguns cantos do Antigo e Novo Mundo, anima­das de um espírito novo, aprendessem, antes de mais, a andar e a definir­se, que o seu princípio fecundado desenvolvendo­se mostrasse a riqueza do seu organismo; era preciso ao mesmo tempo que, sob o regime novo da igual­dade, uma última experiência fosse feita do sistema unitário. So­mente sob estas condições a Filosofia podia argumentar, a Revolução concluir, e, generalizada a ideia, a República dos povos sair finalmente do seu misticismo sob a forma concreta de uma federação de federações.Os factos parecem hoje dar asas às ideias; e podemos, parece, sem pre­sunção nem orgulho, por um lado arrancar as massas aos seus funestos símbolos, e por outro dar aos homens políticos o segredo dos seus enga­nos.
X
Sendo o povo a colectividade que encerra toda a autoridade e todo o direito, o sufrágio universal, para ser sincero na sua expressão, deverá tanto quanto possível ser ele próprio indiviso, quer dizer que as eleições deverão fazer­se por escrutínios de lista: apareceram mesmo em 1848 unitaristas que pediam que não houvesse senão uma só lista para os oitenta e seis departamentos. Deste escrutínio indiviso surge assim uma assembleia indivisa, deliberando e legislando como um só homem. Em caso de divisão do voto, é a maioria que representa, sem diminuição alguma, a unidade nacional. Desta maio­ria sairá por seu lado um Governo indiviso que, possuíndo os seus poderes da Nação indivisa, é chamado a governar e administrar colectiva e indivi­samente, sem espírito local nem interesse paroquial. É assim que o sistema de centralização, de imperialismo, de comunismo, de absolutismo, todas estas expressões são sinónimas, deriva do idealismo popular; é assim que no pacto social, regulado à maneira de Rousseau e dos jacobinos, o cida­dão se demite da sua soberania, e que a comuna, acima da comuna o departamento e a província, absorvidos pela autoridade central, não são mais que agências sob a direcção imediata do ministério.
XI
A ideia de federação é certamente a mais alta à qual se elevou até aos nossos dias o génio político. Ela ultrapassa de muito longe as constituições francesas promulgadas desde há setenta anos não obstante a Revolução, e cuja curta duração tão pouco honra o nosso país. Ela resolve todas as dificuldades que suscita o acordo da Liberdade e da Autoridade. Com ela não temos mais de recear afundarmo­nos nas antinomias governamentais; de ver a plebe emancipar­se proclamando uma ditadura perpétua, a burguesia manifestar o seu liberalismo levando a centralização ao exa­gero, o espírito público corromper­se nesse deboche da devassidão copulando com o despotismo, o poder regressar incessantemente às mãos dos intriguistas, como lhes chamava Robespierre, e a Revolução, segundo as palavras de Danton, ficar sempre para os mais pérfidos. A razão eterna finalmente é justificada, o cepticismo vencido. Não se acusará mais da infelicidade humana a falha da Natureza, a ironia da Providência ou a contradição do Espírito; a oposição dos princípios aparecerá finalmente como a condição do equilíbrio universal.
XII
Por mim, a quem uma certa imprensa tentou abafar a voz, tanto por um silêncio calculado, tanto pela mascarada e a injúria, posso colocar este desafio aos meus adversários: Todas as minhas ideias económicas, elaboradas desde há vinte e cinco anos, podem resumir­se nestas três palavras: Federação agrícola­in­dus­trial. Todas as minhas concepções políticas se reduzem a uma fórmula idên­tica: Federação política ou Descentralização. E como não faço das minhas ideias um instrumento partidário nem um meio de ambição pessoal, todas as minhas esperanças actuais e de futuro são expressas por este terceiro termo, corolário dos dois outros: Fede­ração progressiva. Desafio quem quer que seja a fazer uma profissão de fé mais clara, de maior alcance e ao mesmo tempo de uma maior moderação. Vou mais longe, desafio qualquer amigo da liberdade e do direito a repeli-­la.
XIII
Em resumo, quem diz liberdade diz federação, ou não diz nada; Quem diz república, diz federação, ou não diz nada; Quem diz socialismo, diz federação, ou ainda não diz nada.