Wednesday, March 07, 2007

A ACTUALIDADE DE PROUDHON

Pierre-Joseph Proudhon é certamente o pensador social mais eclético e o mais profundo que a frança e o mundo já forneceu… Adorado por uns, desprezado por outros, quase sempre recuperado, a sua obra não pode causar indiferença. É verdade que o pensamento proudhoniano atacou todos os aspectos da vida social: política, económica, sociológica e jurídica. Esta propensão à universalidade, amplificada por uma real acuidade analítica, atribuem-lhe um tom e uma dimensão de actualidade da qual ele nunca se separou.
Esta actualidade do pensamento proudhoniano coloca a sua força na sua faculdade para fornecer respostas concretas e claras aos problemas que assolam a sociedade desigualitária. “As ideias proudhonianas, malditas e anatemizadas da frente, empuradas de viva força, filtrarão cada vez mais e introduzir-se-ão ao viés na sociedade moderna(…). A ideia prática, ele tem-na (…). Ela triunfará talvez cem anos depois da sua morte” (1). É o que Saint-Beuvre escreveria em 1865, nas vésperas do desaparecimento de Proudhon. Bernstein, acusado pelos amigos marxistas de querer restituir vida a Proudhon, não se declarava: “Não sou eu que ressuscito o autor de A Capacidade política das classes operárias, mas a realidade de hoje em dia” (2). Em 1966, Georges Gurvitch, sociólogo, actor e testemunha da Revolução russa, constatava: “Cem anos depois da sua morte, a actualidade de Proudhon impõe-se tanto a Leste como a Oeste” (3). Algumas destas referências não teriam mais, ao lado de inúmeras obras que lhe são consagradas que uma coloração idolatrária se a grande parte dos problemas e das soluções provocadas pelas crises na França, na Europa, no terceiro mundo e actualmente nos países de Este, não se colocassem em termos e em temas fundamentalmente proudhonianos.
Um dos traços essenciais do pensamento de Proudhon a saber, o seu refúgio do dogmatismo tanto económico como político, induzindo a abertura ao diálogo real, a procura do outro (social e pessoal) como protagonista… revela um pluralismo ideo-realista oposto a todo o totalitarismo ou integrismo instituído em dogma. Formalmente, isso constitui um trunfo essencial!
Correlativamente a este pluralismo ideo-realista, o federalismo autogestionário que desenvolve apoia-se na diversidade antinómica e solidária que funde a realidade social, económica, política e pedagógica. Especificar e tornar autónoma, coordenar e solidarizar, para federar e tornar “unidos”, eis expostos os movimentos antinómicos e a dinâmica do “método sérial” utilizado por Proudhon.
Compreende-se então de que modo as estruturas que ele propõe são visionárias e, de algum modo, bem adaptadas. Na hora em que todos os problemas que se colocam são em termos de equílibrio - dinâmico e susceptível de evolução – entre as forças centrífugas de liberdade e das formas centrípedas de ordem, todas as respostas avançadas por Proudhon, nos domínios sociológicos tão diversos e estreitamente encaixados parecem incontornáveis. Este aspecto fundamentalmente do pensamento libertador de Proudhon, ajusta-se à superioridade formal que lhe confere a sua rejeição do “dogmatismo religioso”, atribuído à sua obra e ao anarquismo anti-capitalista e anti-estadista uma actualidade tanto conceptual como prática.

ANTI-ESTADISMO E SOCIEDADE “POLÍTICA”
Proudhon é obrigado a negar simultaneamente “duas coisas idênticas: a exploração do capital e a opressão do Estado”. Para ele o que se designa na política autoridade é análogo, equivalente ao que se chama em economia política, propriedade (…) (4). A negação de uma arrasta simultaneamente a outra. O socialismo, ciência e protesto sociais, é ao mesmo tempo protesto contra o Poder e o Capital! A “democracia”, segundo Proudhon, é a “abolição de todos os poderes”, desligada da sociedade para dominar esta mesma sociedade. “A exploração do homem pelo homem é o roubo, o governo do homem pelo homem é a servidão.” (5)
Demonstrou por uma análise detalhada de todos os mecanismos que o Estado é um instrumento de opressão. No seu fundamento social o Estado é despótico, absolutista e opressivo, do mesmo modo que ele é nas suas consequências sociais usurpador e explorador. A centralização hierárquica dos poderes públicos, força coerciva, é utilizada por “uma gente oficial contra a sociedade real” (6). O que Proudhon nega no Estado-usurpador, é a alienação do poder social e a “mais-valia” estadual.
O Estado-servidor dos democratas consiste em “mudar o pessoal do governo” e a “tomar o poder das mãos dos seus mestres sem mudar nada nas estruturas” (7). Os termos permanecem efectivamente imutáveis. O poder “colectivo” permanece alienada e a “autoridade extrema e arbitrária” toma o lugar da “autoridade imanente e intransferível dos cidadãos livres e dos grupos sociais autónomos”, constituintes da sociedade pluralista e real. Daí resulta a noção de interesse público, distinto de interesse popular. Uma casta burocrática cria-se então e, com ela, chegam o despotismo e a corrupção. “Então aparece nos governos mais populares a alienação tipo do poder social: a gente oficial que explora a sociedade real.” (8)
“O socialismo governamentalista, diz-nos Proudhon, pretende empregar o governamentalismo contra o capitalismo (…), conservando o poder como ele o tinha tomado (…), quer fazer parar a alienação capitalista pela alienação estadista, atacando o abuso e o absolutismo pelo absolutismo. Falta apanhar a conexão íntima do governamentalismo e do capitalismo, os democratas socialistas mais convencidos arriscam-se a conduzir os povos emancipados do capital no impasse do estadismo. Ora, entre a propriedade-roubo, o capitalismo explorador, o Estado usurpador e o governamentalismo explorando, não há uma diferença de natureza mas de poder.” (9) Com quase setenta anos de avanço, Proudhon assinalava desde já perfeitamente o desvio prático do marxismo-leninismo e colocava-se cauteloso contra a provável deriva conceptual do comunismo autoritário e estadual.
Para ele, “mais autoridade, nem no Estado nem no dinheiro” tornava-se na palavra de ordem social libertadora garantida contra todas os desvios, abusos e impasses inerentes ao socialismo estadista. Precisava a contradição profunda minando o colectivismo autoritário desde a sua origem: “Vós demandais ao governo abolir a exploração do homem pelo homem. Não duvidais que o Estado é uma nova forma de exploração (…) e o governamentalismo uma concentração de poderes que matam “ (10).
Todos os partidos que se afeiçoam ao poder, enquanto poder, e quaisquer que sejam as suas origens, não são mais que variedades do absolutismo. “Em vez de ensinar o povo a autogerir-se, a auto-administrar-se, (…) exigem-lhe o poder e usurpam a sua força social: (11). O povo, uma vez deposto do poder, não pode mais fazer frente às invasões deste poder. É a eterna mistificação da qual os proletariados abusam…
Antítese do federalismo, o centralismo unitário é totalitário, concentracionário e uniformisante. Resulta da absorção e da integração forçada dos grupos naturais, funcionais ou geográficos, numa “autoridade central, única e indivisível”. O comunismo autoritário – o socialismo estadista – não mudou em nada o funcionamento de instituição despótica. Apoiou-a no príncipio da “soberania popular”, mas é a boa e a bem da autoridade que lhe assegura a sua subsistência!
Organizado assim como instrumento de exploração e de dominação, o Estado de origem proletária oprime tudo como o Estado fascista! Proudhon recusa no Estado, “a força justificando a força, o antagonismo primário utilizado não como instrumento de produção e de liberdade social, mas como instrumento de dominação e de destruição de toda a autonomia” (12). Os grupos sociais são supostos “naturalmente desiguais, antagonistas e na impossibilidade de agir por eles próprios” (13). O Estado despótico coloca-se como instrumento de arbitragem. Tem “por príncipio a necessidade, através da força, como objectivo impedir a revolta pela força ” (14).
Proudhon deduz mesmo que, quando toma a sua origem numa revolução popular, o governo é por essa natureza contra-revolucionário. Politicamente e juridicamente, a força coerciva do Estado torna-se sujeição pública e “razão de Estado”. Justificação da razão do Estado, a religião da força conduz a uma “teoria de arbitragem e do fatalismo” e a uma prática impondo como dogma “uma hiérarquia eterna” (15). O segredo do fatalismo político está todo contido nestes três termos: o príncipio de fatalidade e o príncipio de antagonismo tomado como base social, e a razão de Estado tomada como lei do governo. E, como explica Proudhon, assiste-se à substituição de homens por outros homens, de ídolos por outros ídolos. A classe trabalhadora, que “se impõe ao capital, submete-se graças à inépcia dos seus dirigentes à conservação da autoridade” (16). O governo não está lá para servir o povo, mas este último está lá para servir os seus governantes!

UMA VIA PARA O SÉCULO XXI

Proudhon teria dito tudo contra o perigo de uma democracia autoritária, declarava Emmanuel Mounnier (17). Gurvitch apresenta-o como o primeiro inspirador dos soviéticos russos criados nos primeiros tempos. Acrescenta que o poder destes sovietes não durou mais que alguns meses e foi suprimido sob a influência conjugada de Trosky e de Estaline… com a benção de Lenine (18). Proudhon é apresentado como o fundador do sindicalismo, e prefigura nas suas obras o que será a Carta de Amiens defendendo nomeadamente o príncipio essencial da autonomia operária (19).
Unir esta actualidade teórica e prática indiscutível à realidade sociológica dos anos 1990 não representa em si um grande esforço, uma dificuldade.É simplesmente o fim lógico dos acontecimentos e situações que, sob a forma de uma vaga de fundo, balançava o comunismo autoritário dos seus pontos de ancoragem. A Leste como a Oeste, as ideologias autoritárias desacreditadas estão neste ponto sufocadas pois elas não pareciam dar mais a ilusão do possível. Deixamos aos marxistas cómicos a preocupação de nos tentar explicar à força de dialéctica mediatizada que o que se passa neste momento no interior do bloco comunista representa uma “ultrapassagem integrada do próprio marxismo” (17). Aos intelectuais e politólogos ocidentais (ainda completamente descontaminados) abandonamos o terreno da literatura do arrependimento.
Consideramos que este comunismo que agoniza a Leste não tem grande coisa a ver com o comunismo original, libertário. Os que ergueram os regimes estadistas, burocráticos e ditatoriais, desde Janeiro de 1918, fizeram-no conscientemente. Tiveram a vontade de impôr ao povo o seu próprio sistema servindo-se do aparelho de repressão, da força brutal… Desde esse momento, a revolução em termos ideológicos e de um ponto de vista ético, estava confiscada, senão mesmo morta! O absolutismo marxista-leninista reunia-se aos feitos do absolutismo czarista. Os novos “czares vermelhos” validavam a posteriori pelos seus actos as premonições proudhonianas sobre a incapacidade estadista em manter um percurso revolucionário. O estalinismo tão criticado – com justa razão – não faz mais que reforçar a repressão desde logo bem empenhada e erguerá a “polícia ideológica” no lugar do funcionário fora de horas…
Todos estes povos que conseguiram sofrer durante décadas esta prevaricação ideológica, este esmagamento sociológico, esta vida quotidiana ao abatimento, com um formidável medo da opressão, estes povos portanto, vomitam o comunismo autoritário. Por momentos, viram-se em direcção à sociedade de consumo ocidental que parece representar a liberdade. Mas o liberalismo não é a liberdade, quando muito “a do lobo no rebanho”.
O caminho traçado por Proudhon, com quase século e meio, enaltecendo a autogestão, o federalismo, o auxílio mútuo e o pluralismo parece bem ser o único que tinha alguma hipótese de nos fazer sair da rotina. Os jovens e os trabalhadores a Leste, que desejam rejeitar tanto o capitalismo do Estado como o capitalismo simplesmente, não se enganarão. As sociedades injustas, opressivas… já as conhecem! Então Proudhon pode reaparecer diante da cena social… lugar que só tinha deixado devido à obstinação hegemónica dos autoritários reunidos. Neste contexto, é verdade, Pierre-Joseph Proudhon é de uma ardente actualidade.
No momento de concluir, duas ideias vêm-me ao espírito. A primeira faz-me vislumbrar Proudhon não como um visionário, um profeta, menos ainda como um homem munido de uma presciência… Desenvolveu um sistema de pensamento rigoroso, científico, alternada por uma constante tomada na ordem do real, do quotidiano. Neste sentido o socialismo libertário de Proudhon é científico sem que contudo este qualificativo, no meu espírito, lhe atribue qualquer virtude especial. Não, mas simplesmente, parece-me honesto dar a Proudhon e aos anarquistas que o seguiram (Bakounine, Kropotkine, Malatesta, Pelloutier e muitos outros…) esta justiça que as ideias que eles defendem só estão em perfeita harmonia com as aspirações sociais profundas dos povos que desejam libertar-se.
A segunda, na linha directa da primeira, conduz a interrogar-me sobre o futuro próximo: o XXI século não se abre para uma escolha por sua vez desesperada e clara, a barbaridade ou… o socialismo libertário de Proudhon e dos anarquistas? A resposta pertence aos povos que se libertam da mesma maneira que pertence a cada um de nós… Então, dedicar-se à tarefa hoje em dia é talvez redescobrir os pensadores anarquistas (incluindo e em primeiro lugar Proudhon) e integrar todos os seus contributos nas nossas lutas actuais.


NOTAS

1- Jean Bancal - Proudhon, pluralisme et autogestion, ed.Aubier-Montaigne, Paris, 1970, tomo II, p.217.

2 - Id., ibid., p.216.

3 - Jacques Langlois - Défense et actualité de Proudhon, Petite Bibliothèque Payot, Paris, 1976, p.37.

4 - P.-J. Proudhon - Les Mélanges (título dado a três volumes da obra em vinte e seis volumes de Proudhon), ed.Lacroix, Bruxelles, 1867-1870, tomo III, p.53. As “Les Mélanges” representam uma recolha de artigos aparecidos no Representante do povo, o Povo, a Voz do povo, o Povo (1850), assinados por Proudhon.

5 - P.-J. Proudhon - Les Confessions d`un révolutionnaire pour servir à l`histoire de la Révolution de février, ed.Garnier, 1849, cap.2, p.34.

6 - Id., ibid.

7 - Les Mélanges, op.cit., tomo III, p.21 e seguintes.

8 - Ibid.

9 - Les Confessions, op.cit., cap.15.

10 - Les Mélanges, op.cit., tomo III, p.77, in La Voix du peuple, 11 Janeiro 1850.

11 - Les Confessions, op.cit., cap.1, p.34.

12 - Proudhon - pluralisme et autogestion, op.cit., tomo I, p.226.

13 - Ibid.

14 - Les Confessions, op.cit.

15 - P.-J. Proudon - de la Justice, “L`Etat”, 2ª Edição, Bruxelas 1860, pp.183-186.

16 - Les Mélanges, op.cit., tomo III, p.11.
17 - Emmanuel Mounier - Communisme, anarchie et personalisme, ed. Du Seuil, Paris, 1966, p.138 e seguintes.

18 - Proudhon - pluralisme et autogestion, op.cit., tomo II, p.225.

19 - Daniel Guérin - L`Anarchisme, éd.Gallimard, coll. Idées, Paris, 1965.