Friday, March 02, 2007

TESES SOBRE PROUDHON


I

A Filosofia consiste em fazer da vida um constante combate contra a ignorância.

Fazer filosofia é fazer o mundo. Fazer o mundo modificando-o. Só se toca o real transformando-o. O mundo é um todo organizado com sentido. Só então filosofar é interpretar, filosofar é criar, é construir. A filosofia tem um teor englobante. A pergunta que se coloca bem à nossa frente neste momento é a pergunta pelo como. Não posso compreender uma pessoa que não seja disciplinada.
O domínio político, o domínio ideológico, esmaga o nosso viver que naturalmente quer ser livre e não estar sujeito a categorias formais desta espécie. A filosofia, como eu a entendo, estabelece um fosso com o político. A filosofia é obra. Fazer filosofia implica realizar uma obra nem que isso seja a vida de um homem.
A obra de filosofia está de acordo com a frase latina: “Opus artificem probat”. A obra mostra o artífice. A primeira verdade ontológica é que a verdade do ser é limitado pelo seu corpo.
Um bilião de pessoas não sabe ler nem escrever. Dois biliões de pessoas não têm acesso a energia eléctrica. Mais de metade da população mundial não tem acesso a água potável. Três biliões de pessoas vive com dois dólares por dia. Um bilião e meio vive com um dólar. Vinte por cento da população mundial não ultrapassará a barreira dos 40 anos. Quase dois biliões é o valor anual, em contos, que os americanos gastam em cosméticos. Mais quinhentos milhões que a quantia estimada para que toda a população mundial pudesse ter acesso à educação básica.
Vinte por cento da população dos países ricos, que actualmente, consome oitenta e quatro por cento dos bens mundiais, tinha, em 1960, trinta vezes mais rendimentos que vinte por cento da população dos países mais pobres. Em 1997, esta diferença subiu para setenta e quatro vezes.
Segundo as contas oficiais seriam necessários cem mil milhões de dólares para acabar com a fome e dar condições mínimas a todos os pobres do mundo. Número verdadeiramente assombroso, sobretudo se for mencionado como um dado absoluto. Mas se dissermos que a fortuna dos 7 homens mais ricos do mundo chegava e sobrava para pagar este valor exorbitante, que pensar disto?
Estes dados são demasiado importantes para termos qualquer tipo de dúvidas sobre a situação aviltante que o mundo capitalista criou e continua a criar apesar dos discursos altissonantes de justiça social, direitos humanos e outras expressões vazias de sentido porque não há comparticipação na realidade social onde vivemos e onde sentimos.
II

O capitalismo em todas as suas vertentes é a matéria prima do estudo da Filosofia.

O capitalismo domina majestaticamente as nossas vidas a todos os níveis, e esse é sem dúvida, um dos principais aspectos caracterizadores deste final de século vinte. As possibilidades de regressar ao que surge hoje como uma idade de ouro desapareceram e o capitalismo regressou de certa maneira ao seu modo de funcionamento natural, caracterizado pelas desigualdades, a desordem, a insegurança social, as guerras, a fome e o desinteresse em relação ao ambiente. Mas esse passo atrás faz-se a partir de conquistas sociais e de potencialidades tecnológicas qualitativamente diferentes em relação a todas as épocas anteriores. Hoje, seria possível assegurar a cada um condições de existência correctas, e é por essa razão que a estabilização do capitalismo na base do seu funcionamento actual é impossível.
Neste contexto, não é absurdo considerar a prazo a retoma de um movimento social que poderia beneficiar das condições tanto conjunturais como estruturais que se podem prever para os próximos tempos. Tendo em conta a persistência das falhas de fundo do sistema, cujos limites os trabalhadores têm experimentado, e que mesmo os governos acabam por reconhecer como tais, encontramo-nos de certa maneira numa situação de tábua rasa, em que as ilusões em parte desapare-ceram, e em que se torna possível avançar com exigências opostas às do sistema económico dominante. Deste ponto de vista, pode dizer-se que estão reunidas as condições para o movimento social passar, pelo menos em certos sectores, de uma atitude de defesa, mitigada por certa desmoralização, à afirmação positiva de reivindicações e de exigências dirigidas ao sistema e ao seu modo de funcionamento.
O tempo perdido terá pelo menos servido aos trabalhadores para fazerem a sua experiência e medirem a vacuidade das outras saídas ao desemprego. Nesse processo, a palavra de ordem de redução do tempo de trabalho está assim em vias de mudar de consistência: está na eminência de tornar-se a expressão de uma aspiração maciça a outro funcionamento da economia e da sociedade. Não se trata já de uma medida de ordem técnica e económica, mas do esboço de outra sociedade, de um projecto que já não se define por referência a um modelo realmente existente, mas abre o seu caminho a partir da expressão de aspirações imediatas. Entrámos numa fase do capitalismo em que exigências tão elementares como o direito a um emprego e a condições de existência civilizadas adquirem um conteúdo quase subversivo, tendo em conta a incapacidade crescente do capitalismo em satisfazer estas necessidades essenciais.


III

O capitalismo é o pior dos mundos possíveis.

O processo de industrialização e de urbanização levado a cabo pelo desenvolvimento do capitalismo, os processos de socialização e de controle das acções individuais e colectivas sofreram uma grande deterioração, a ponto de a violência, o crime e a desintegração social se transformarem numa enorme fonte de conflitualidade social. Por fim, sublinhe-se a destruição sistemática da natureza, a guerra, a fome, a miséria e a exclusão social que se está a generalizar por todo o planeta, a ponto de por em risco a sobrevivência histórica da espécie humana e das outras espécies que fazem parte do nosso equilíbrio ecossis-témico.
Quando afirmamos que estamos em presença de um tipo de relações sociais cada vez mais complexo e abstracto, queremos simplesmente dizer que os processos de socialização, de controle e de integração social decorrentes da acção individual e colectiva já não são possíveis de realizar de formas perversas e alienantes de participação, de partilha, de pertença e de decisão por parte dos seres humanos que neles intervêm. Desse modo, as relações sociais, em vez de serem protagonizadas por indivíduos e grupos através de uma acção directa, visível, autónoma e livre, são estruturadas por uma divisão do trabalho extensa, uma autoridade hierárquica e uma abstracção relacional da representatividade formal das instituições e das organizações que constituem a sociedade capitalista. Nas circunstâncias, tudo o que se produz, distribui-se e consome-se no mercado, na forma de bens e de serviços; todas as leis, decretos e portarias são provenientes do poder instituído; todas as decisões políticas, sociais, económicas e culturais são elaboradas pelos Estados, pelas transnacionais e governos nacionais, regionais e municipais; todas as guerras, instalações de centrais nucleares, construção de casernas e de prisões são decididas pelo Estado; e, enfim, a própria destruição da natureza, em última instância, escapa ao controle da participação e da decisão do comum dos mortais que habita o planeta. Quem decide, participa e controla este processo são todos aqueles que têm uma posição social privilegiada na estrutura hierárquica de autoridade, da divisão social do trabalho, do Estado, das instituições e das organizações que produzem e reproduzem a actual sociedade.
Os indivíduos e grupos que têm de sobreviver nesta realidade complexa sentem-se demasiado pequenos e impotentes perante relações sociais que não entendem nem sentem. Em vez de serem os sujeitos que criam a sua própria história, alienam esta função numa burocracia totalitária que tudo sabe e decide. O comum dos mortais é um joguete nas suas mãos. Por isto, o espaço-tempo da vida quotidiana dos indivíduos e dos grupos está sendo cada vez mais objecto de capitalização. Tudo se vende e se compra no mercado da vida quotidiana: amor, trabalho, honra, dignidade, justiça, violência, crime, bens e serviços de consumos vários, órgãos do organismo humano, morte, etc. Quem não consegue integrar-se nos mecanismos concorrenciais e competitivos deste mercado é esmagado e escorraçado pelas leis normativas da sua racionalidade instrumental. Quem não tem poder, nem capital, nem prestígio social, nem dinheiro, mergulha na pobreza, na miséria, no desemprego ou na marginalidade social. Neste contexto, percebe-se as razões que levam os seres humanos a se integrarem nos movimentos sociais que estão na base do incremento da religião, do racismo, da xenofobia e do nacionalismo. Percebe-se ainda as razões profundas que decorrem do vazio existencial dos indivíduos e grupos, que, não sabendo como sobreviver nesta sociedade, recorrem à droga, e ao crime.
Como consequência deste panorama existencial, os processos de socialização dos indivíduos e grupos que constituem a sociedade capitalista actual tendem a perder a sua importância nas funções de controle e de integração que outrora eram protagonizados pela família, a escola, comunidades locais e espaços públicos, mediatizados pelo interconhecimento da praça pública, dos jardins, dos cafés e das associações recreativas e culturais. Em sua substituição, desenvolve-se o papel do Estado, das suas tecnologias, da comunicação social e da religião.


IV

Não pode haver amor no capitalismo.

Na sociedade capitalista do final do século XX, não obstante a presença de outros apetites mais ou menos reprimidos, a sedução da mulher pelo homem é ainda o facto fundamental. Isto remete para o problema da produção das relações entre homem e mulher na forma de bens e serviços, ou seja, como exemplo de mercadoria.
Classicamente é o velho tema da prostituição. Não se pode limitar este termo àquelas mulheres que extraem os seus ganhos ou parte deles desta actividade, porque um enorme número que se entregam a esta função, fazem-no como pequeno suplemento às suas ocupações regulares. A definição exige que o pagamento por uma relação sexual seja em dinheiro e seja feito por cada um dos contactos. Se devesse aplicar o termo de prostituição a todos os actos sexuais pelos quais um dos participantes recebe uma qualquer remuneração, seria impossível traçar uma linha demarcatória entre a categoria mais notória de prostituição comercializada e as relações entre marido e mulher. A rapariga que quer ser levada a cear ou a qualquer espectáculo antes de aceitar relações sexuais com o amigo ou com o noivo, encontra-se empenhada numa realização bastante mais comercial do que desejaria admitir. Os presentes que os machos de todas as classes sociais fazem às raparigas com quem acompanham, podem estar recobertos de nobres sentimentos, mas são em grande parte o pagamento das relações sexuais a que se propõem.
Na realidade compreende-se que é necessário acabar com as reservas impostas ao amor, quer se trate de tabus, conveniências, de procriação, de constrangimento, de ciúme, de todas as formas de troca que, transformam a arte de amar em relações entre coisas.


V

O Estado é o principal inimigo público e privado do indivíduo.

O Estado não é um objecto, e, como tal, o Estado não existe. O Estado representa um determinado número de instituições, as quais, na sua globalidade, constituem a sua realidade, ligando-se entre si como partes daquilo a que se pode chamar o sistema do Estado.
Considerar uma parte do Estado - geralmente o governo - como o próprio Estado, introduz um elemento de confusão na análise da natureza e da incidência do poder de Estado. E essa confusão pode ter vastas consequências políticas. Assim, se julga que o governo que está no poder é de facto o Estado, pode também julgar-se que, quando se assume o poder governamental, se adquire também o poder de Estado. Tal crença, assente como está em inúmeras suposições quanto à natureza do poder de Estado, está repleta de riscos e sujeita a grandes desaponta-mentos. Para compreender a natureza do poder de Estado é necessário, primeiro que tudo, distinguir, e depois relacionar, os diversos elementos que constituem o sistema de Estado.
Não surpreende que governo e Estado pareçam por vezes sinónimos. É o governo que fala em nome do Estado. Mas o Estado não pode reclamar nada; só o governo, ou os seus órgãos devidamente empossados, pode. Diz-se muitas vezes que os homens são leais, não ao governo que acontece governar em determinado momento, mas sim ao Estado. Mas o Estado, segundo este ponto de vista, é uma entidade nebulosa. E se por um lado os homens podem decidir ser leais ao Estado, é ao governo que lhes cumpre obedecer. Um desafio às suas ordens é um desafio ao Estado, em nome de quem só o governo pode falar, e por cujas acções ele, o governo, tem de assumir a responsabilidade última.
Isto não quer dizer, todavia, que o governo é necessariamente forte, quer em relação a outros elementos do sistema do Estado, quer em relação a forças exteriores. Pode, pelo contrário, ser muito fraco e constituir uma mera fachada para um outro destes elementos ou forças. Por outras palavras, o facto de o governo falar em nome do Estado e de estar oficialmente investido do poder de Estado, não significa que controle efectivamente esse poder. É importante saber até que ponto os governos controlam o Estado.
É particularmente necessário proceder assim ao analisar a relação entre o Estado e a classe economicamente dominante. Poderá chegar-se à conclusão de que se trata de uma relação muito estreita e que os detentores do poder de Estado são, por inúmeras razões, os agentes do poder económico privado - que aqueles que detêm esse poder são também, por consequência, e sem pretender alargar indevidamente a semântica das palavras, uma verdadeira classe dirigente.


VI

A filosofia está para o anarquismo como se de uma opção vital se tratasse.

Na relação que a nível cognoscitivo somos levados a elaborar entre o pensar e o agir, o libertário dá primordial relevância à dimensão prática do ser, o que está de acordo com a sua concepção materialista. É o caso de Bakunine que viveu intensamente a vida, tal a sua vontade em modificá-la. O mesmo se pode dizer de Proudhon, que recusava possuir um sistema fechado e determinista à maneira da ortodoxia marxista.
É a necessidade de suplantar o capitalismo que todos os órgãos de legitimação procuram ocultar. Mas eles não podem esconder a discrepância entre promessa e rendimento. Não podem esconder o facto de que, embora pertençam a sociedades ricas, continuam a existir nelas vastas áreas de pobreza; de que as medidas colectivas que tomam nos campos de saúde, bem estar social, educação, habitação, ambiente social, ainda não satisfazem as necessidades; de que o ethos igualitário que proclamam é desmentido pelos privilégios e desigualdades que conservam; de que a estrutura de dominação e sujeição; e de que o sistema político de que se vangloriam é uma versão corrupta e defeituosa de uma verdadeira ordem democrática.
O alvo imediato das suas reivindicações pode ser o patrão, a autoridade universitária ou o partido político. Porém, é com o Estado que os homens constantemente deparam nas suas relações com outros homens; é para o Estado que eles se voltam sempre como alvo das suas pressões; e é do Estado que eles esperam a satisfação dos seus anseios.
Sem dúvida que a suplantação do capitalismo, por outras palavras, a apropriação para o domínio público da maior parte dos recursos da sociedade não pode, por si só, resolver todos os problemas associados à sociedade industrial. Aquilo que pode fazer, contudo, é levantar as grandes barreira que obstruem uma solução e, pelo menos, criar a base de uma ordem social racional e humana.


VII

O grande objectivo dos homens é aprender a trabalhar.

O trabalho, longe de se opor ao progresso do pensamento, provoca-o e sustenta-o. Permite-lhe concentrar o seu foco na realidade total da vida humana. Para esclarecer a natureza de um trabalho que se inscreve simultaneamente numa perspectiva horizontal e vertical, a filosofia deve apelar para a ciência moderna tanto como para a antiga sabedoria, para a técnica revolucionária como para os valores essenciais. Só por este preço a filosofia do trabalho poderá dar conta da dupla dimensão do trabalho humano, que é devir histórico ao mesmo tempo que aventura espiritual.
Só o homem tem a faculdade de arquitectar um raciocínio.
É realizando a obra que o meu pensar se concretiza, se altera, se materializa, se constrói. Só tem sentido o pensar por causa de uma acção. Que conclusão tirar senão que o futuro está de algum modo nas mãos do homem, pois ele será como o homem o imaginar. Mas como derivação de condições materiais concretas.
A partir de agora, temos medo de repouso, a longa reflexão provoca quase remorsos. Pensa-se de relógio na mão, tal como se almoça com os olhos fixos na cotação da Bolsa. Vive-se como alguém que teme a todo o momento faltar a qualquer coisa. É preferível fazer seja o que for a não fazer nada, eis o princípio que também é uma corda que serve para estrangular toda a cultura e todo o gosto superior.
O pensamento socialista do século XIX, além de insistir na exploração a que o trabalho dava lugar sob o regime capitalista, sublinhara claramente a influência desmoralizadora que a divisão do trabalho exerce sobre o operário, qualquer que seja, aliás, o regime económico a que está submetido. A sua principal consigna era a organização do trabalho destinada não só a por fim à exploração como também a revalorizar o trabalho humano. Dir-se-ia mesmo que é a restauração moral do trabalho que suplanta, nos primeiros socialistas, todas as outras reivindica-ções. Proudhon, em particular, não cessa de recomendar uma reforma total do próprio trabalho. A questão social ficará em grande parte resolvida quando se conseguir o tédio e embrutecimento do trabalho parcelar pelo interesse e a alegria de um trabalho “seriado na sua divisão”. “O trabalho, escreve ele, como o Universo, como a Razão, só reveste formas puras e regulares se estiver agrupado, composto, seriado na sua divisão. Fraccionado em parcelas infinitesimais ou reduzido aos seus últimos elementos, o trabalho é para aquele que o executa algo de ininteligível, de embrutecedor, de estúpido.”
Esta solução toma o valor de uma profecia na nossa época, em que o emprego de aparelhos com múltiplos utensílios permite cada vez mais remodelar o trabalho. Tomar consciência desta nova tendência na técnica, favorecida pela electrónica e pela cibernética, é redescobrir o primado do homem e o valor do trabalho humano.
O triunfo do trabalho parece completo. É ele que comanda os instintos sociais, económicos e políticos do nosso tempo; é ainda ele que lhes forja a armadura cultural. pode-se, no entanto, perguntar se o seu reino não está doravante ameaçado pela história. A humanidade conseguiu libertar-se progressivamente do trabalho e substituí-lo pelo lazer. Não será conveniente retirar ao trabalho a importância que lhe concedêramos e atribuí-la ao lazer, que é a sua antítese? Situar-se-á a liberdade fora e para além do trabalho? Já Proudhon opusera ao tempo consagrado ao trabalho o tempo das “composições livres”. É apoiando-se na vida espiritual que o homem toma consciência da sua actividade. O trabalho que, segundo a bela definição de Proudhon, é “a emissão do espírito”, tende a deixar o espírito prisioneiro.
O trabalho transforma o mundo, enquanto o espírito o explica. A transformação do mundo não se pode realizar sem ser orientada por uma explicação do mundo. A explicação do mundo só se pode deduzir de uma transformação do mundo que a esclarece e justifica.


VIII

O único humanismo capaz de combater o Estado e o capitalismo é o do homo proudhonianus.

A derrota do pensamento não está generalizada e o triunfo da barbárie ainda não é efectivo. O intuito de um pensamento crítico e reflexivo consiste sempre em opor a cultura às forças sombrias e retrógradas, de certo modo a reactualizar a mensagem e o poder das Luzes que presidiam à Revolução Francesa e à revolução de 48. Os objectivos dessa época permanecem actuais: a autonomia da razão, a reflexão livre, desembaraçada dos laços dominantes do momento, a irradiação da condição passiva, a fim de celebrar a actividade, a positividade e o voluntarismo tanto ético como estético, o livre pensamento em oposição a todas as formas de religião e de comunitarismo, a desconfiança e a suspeição, se não mesmo o ódio, em relação a tudo o que é gregário.
Poucos, à excepção de Proudhon, fizeram um elogio da liberdade que fosse secundado por uma crítica da autoridade e do autoritarismo sob todas as suas formas.
Os mais esquecidos constituem um fermento mais eficaz para as revoltas consequentes ou para as revoluções, do que os postos avançados do proletariado esclarecido.
Todo e qualquer projecto de emancipação social nunca poderá consumar-se na base do pressuposto da luta de classes polarizada à volta do proletariado e da burguesia.
“Destruam et Aedificabo”. Interpreto esta sentença em Proudhon, como a vontade da mudança, como a vontade da transformação. Tudo o que adie uma tomada real de decisão assegura um seguro certificado de óbito às reivindicações.
Antes de chegar à hipótese de uma reactualização das soluções propostas por Proudhon, é preciso desejar a revolução copérnica, acabando com a submissão dos homens à economia capitalista e o seu desvario generalizado, a fim de submeter a economia a um projecto hedonista de vida em comum. Não mais servir o capital, mas pô-lo à disposição dos homens . O triunfo do capitalismo assinou a sentença de morte do elemento político e da política, em proveito de um elogio puro e simples da técnica de administração dos homens enquanto bens.


IX

A superação do capitalismo sob todas as suas formas é o objectivo final da Filosofia.

O facto político mais importante nas sociedades capitalistas é a continuação do poder económico privado e cada vez mais concentrado. Em consequência desse poder, os homens - possuidores e controladores - que o detêm gozam de uma preponderância maciça na sociedade e na determinação das políticas e acções do Estado.
Dada esta permanente preponderância, constitui um dos grandes mitos da época dizer que se trata de países que há muito alcançaram a igualdade política, independentemente da situação económica e social a igualdade política avançado. A vida económica não pode separar-se da vida política. O poder económico desigual, à escala e do tipo que vamos encontrar nas sociedades capitalistas, produz inerentemente a desigual-dade política.
Do mesmo modo, é o contexto capitalista de desigualdade generalizada em que o Estado opera, que determina basicamente as suas políticas e acções. O ponto de vista prevalecente é que o Estado, nestas sociedades, pode ser, e é em grande parte, o agente de uma ordem social “democrática”, sem preconceito intrínseco contra qualquer classe ou grupo. E se, ocasionalmente, se desvia da “imparcialidade”, isso ficará a dever-se a qualquer factor externo, acidental, alheio à sua “verdadeira” natureza. Também aqui estamos perante um conceito errado: o Estado nestas sociedades de classes é, primeiramente e inevitavelmente, guardião e protector dos interesses económicos dominantes. O seu verdadeiro objectivo e missão é garantir o predomínio desses interesses e não impedi-los.
Contudo, o modo com o Estado cumpre esse papel e o grau em que se manifesta o seu preconceito, variam segundo o lugar e as circunstâncias. A manutenção de uma ordem social caracterizada pela dominação de classes poderá implicar a instituição da ditadura do Estado, a supressão de toda a oposição, a abolição de todas as garantias constitucionais e liberdades políticas. Mas tal não tem acontecido nos países capitalistas. Com algumas excepções, a dominação de classes nestas sociedades tem permanecido compatível com uma vasta gama de liberdades políticas e civis, e o seu exercício tem sem dúvida sectores da sociedade civil. O principal agente desse atenuar tem sido o Estado, o que ajuda a compreender o motivo por que lhe tem sido possível apresentar-se, e ser aceite, como servidor da sociedade. De facto, esta função atenuante não anula o domínio de classes, e até serve para garanti-lo.
Perante a mentira histórica em que se transformaram as múltiplas experiências de instauração do socialismo, existe uma tendência em nos fazer acreditar que o único modelo de sociedade que se adapta positivamente à evolução da espécie humana prende-se com o capitalismo. Nada é mais ilusório e falso. O capitalismo não deixou de ser um sistema social impregnado pela opressão e pela exploração do homem pelo homem, só que agora de um modo mais sofisticado e complexo. Como modelo de evolução da sociedade, não pode ser positivo se o considerarmos como aquele que melhor desenvolveu a competição, a domesticação, a guerra, a violência, a morte e a destruição da natureza e das espécies que nela ainda sobrevivem. Como modelo de emancipação da espécie humana, assente na solidariedade, na igualdade, na liberdade, na criatividade, na espontaneidade e no equilíbrio entre os homens, está esgotado.
Ainda que seja uma tarefa difícil para chegarmos a esta conclusão, basta tentar explicitar a natureza da crise que o capitalismo atravessa e delinear as hipóteses de criação de uma alternativa societária capaz de o superar historicamente. Se pensarmos que a história da humanidade nos permite não só ter consciência e reflectir sobre ela, então todo o seu passado, presente e futuro podem ser objecto de reapropriação e vivificação dos valores societários que estiveram sempre presentes na luta pela emancipação da espécie humana.