Tuesday, January 02, 2007

TÓPICOS PARA UMA FILOSOFIA DO TRABALHO EM PROUDHON

O trabalho, longe de se opor ao progresso do pensamento filosófico, provoca-o e sustenta-o. Permite-lhe concentrar o seu foco na realidade total da vida humana. Para esclarecer a natureza de um trabalho que se inscreve simultaneamente numa perspectiva horizontal e vertical, a filosofia deve apelar para a ciência moderna tanto como para a antiga sabedoria, para a técnica revolucionária como para os valores essenciais. Só por este preço a filosofia do trabalho poderá dar conta da dupla dimensão do trabalho humano, que é devir histórico ao mesmo tempo que aventura espiritual.Para Proudhon a apologia do trabalho manual adquire um sentido polémico: "Certo operário, escreve em L'Avertissement aux propriétaires, despende mais inteligência a ferrar um cavalo que certo folhetinista a escrever uma novela". Sentindo as ameaças que a época moderna faz pesar sobre o artesanato ao qual este filho de cuteleiro se encontra ligado por todas as fibras do corpo e do espírito, insiste no facto de que toda a actividade artesanal empenha o homem inteiro e lhe permite desenvolver a totalidade das suas capacidades. É o exercício de uma profissão que constitui a verdadeira união do pensamento e da acção, da inteligência e da força. Sábio e homem de acção nela se reencontram, numa participação comum e consciente na obra."O Sábio participa na execução, pois é somente tendo em vista a execução que ele avança na descoberta; o homem de acção participa na ciência, porque, para executar o plano do Sábio, é necessário que adquira a inteligência disso."O progresso intelectual resulta do trabalho manual. É na luta contra as resistências da matéria que a mão leva o espírito a tomar consciência das leis que governam a natureza. Toda a vitória conseguida contra a dura forças das coisas é, ao mesmo tempo, a descoberta de um novo princípio de acção. Comecemos por ensinar o aluno a manejar instrumentos, a talhar as árvores ou as pedras, pois é a prática que engendra a teoria. "Virá o tempo em que a partir da prática se chegará à teoria. O homem, da especialidade que lhe é própria, pode sempre passar a outras e elevar-se às leis gerais da natureza e do espírito. O menor dos ofícios, apesar de nele haver especialidade e generalidade, abarca no fundamental toda a metafísica.Guiado pelo seu instinto plebeu, Proudhon encontra fórmulas de uma penetração e concisão admiráveis para por em relevo o valor humano do trabalho. A definição que dá na Création de l' Ordre dans l'Humanité tornou-se clássica:"O trabalho é a acção inteligente do homem sobre a matéria. O trabalho é o que destingue, aos olhos do economista, o homem dos animais; aprender a trabalhar é o nosso objectivo sobre a terra."O trabalho, na medida em que é humano, constitui esforço voluntário, consciente e reflectido. A diferença fundamental entre o homem e o animal reside, com efeito, no facto de que o homem, em vez de ser dominado pelos instintos, sabe conceber e aplicar um plano. O acto, antes de ser realizado pela mão, é previsto pelo cérebro.Foi muitas vezes sustentado que é a invenção do instrumento que constitui o acto de nascimento do homem. A matéria, que é a própria necessidade, torna-se sob a forma de instrumento um instrumento de liberdade. É graças ao instrumento que o ser humano ultrapassa os obstáculos que a natureza lhe põe e domina e organiza a matéria. É também a ferramenta que, para Proudhon, enobrece o trabalho manual. "Quanto mais o homem se aproxima da brutalidade, mais se enterra nas condições miseráveis que os filósofos do século passado designavam por estado da natureza, e mais é reduzido ao uso imediato dos próprios membros, por conseguinte menos de seu põe naquilo que faz, menos trabalha. O progresso da sociedade mede-se pelo desenvolvimento da indústria e pela perfeição dos instrumentos. O homem que não sabe ou não se pode servir de uma ferramenta é uma anomalia, um aborto; não é um homem."Poder-se-ia objectar que certos animais são muito capazes de inventar instrumentos e deles se servirem. Assim, para puxar um cacho de bananas que se encontra fora do seu alcance, os macacos de Koehler sabem fabricar "prolongamentos, encaixando dois paus um no outro. Mas se o animal consegue, por instantes, escapar ao automatismo, é para aí cair de novo, pouco depois. Trata-se sempre de uma construção imediata, devida a uma imaginação posta a funcionar passageiramente. Entre o homem e o animal há uma diferença de natureza e não apenas de grau. Só o homem tem a faculdade de arquitectar um raciocínio.A construção mental prévia é, pois, a tarefa essencial do trabalho humano. O homem pensa a obra antes de a realizar. É assim que o mundo que cria reflecte o seu espírito de uma maneira cada vez mais perfeita. Que conclusão tirar senão que o futuro está de algum modo nas mãos do homem, pois ele será como o homem o imaginar. Mas como derivação de condições materiais concretas. É realizando a obra que o meu pensar se concretiza, se altera, se materializa, se constrói. Só tem sentido o pensar por causa de uma acção. Da mesma maneira só tem sentido a comunicação se houver um receptor, mesmo que seja imaginário...O trabalho implica simultaneamente uma finalidade comunitária e uma finalidade pessoal. É pelo trabalho social que o homem conquista a liberdade pessoal. É pelo trabalho social que o homem conquista a liberdade pessoal. Ora, esta opõe-se à liberdade individual. Querendo libertar a indústria dos entraves que lhe impediam o desenvolvimento, o liberalismo económico tinha confundido os privilégios das corporações com os direitos do homem. Enquanto os primeiros se tinham tornado caducos e mereciam ser abolidos, os últimos são sagrados e imprescritíveis. Desde a Revolução Francesa, a colocação do trabalho fora do âmbito do direito é cruelmente sentida. Babeuf insurge-se contra a igualdade exclusivamente política, afirmando que não passa duma "bela e estéril ficção da lei", e propõe substituí-la pela "igualdade real", ou seja, a igualdade social.A própria máquina exerce sobre nós um efeito alienante; o seu ritmo é como uma nova e monstruosa cadência que nós nos esforçamos por introduzir na nossa vida. A alienação toma então a forma de uma vã e estéril agitação que Scheler estigmatiza, qualificando-a de "fanatismo do trabalho". O trabalho guia a nossa vida ao ponto de lhe excluir qualquer contemplação.É contra este mal dos tempos modernos que se revolta Nietzsche, numa página que não perdeu nada da sua actualidade. "Há uma selvajaria de índios na forma como os Americanos aspiram ao dinheiro: e o seu frenesim do trabalho - verdadeiro vício do Novo Mundo - começa já a contaminar a velha Europa e a espalhar uma falta de espírito totalmente estranha. A partir de agora, temos medo de repouso, a longa reflexão provoca quase remorsos. Pensa-se de relógio na mão, tal como se almoça com os olhos fixos na cotação da Bolsa. Vive-se como alguém que teme a todo o momento faltar a qualquer coisa. É preferível fazer seja o que for a não fazer nada, eis o princípio que também é uma corda que serve para estrangular toda a cultura e todo o gosto superior. Já não há tempo nem força necessária para as cerimónias, para a delicadeza, para todo o espírito de conversação e, de uma forma geral, para os tempos livres... Cada vez mais o trabalho se identifica com a boa consciência; a procura da alegria chama-se já necessidade de repouso e começa a ter vergonha de si própria... Ou pior ainda, pode-se chegar em breve ao ponto em que se cede à inclinação para a vida contemplativa sem se desprezar a si própria e sem ter má consciência."O carácter desumano do trabalho em que o homem deixa de se reencontrar porque ele o ultrapassa é nitidamente captado por Proudhon, quando verifica em De la Création de l'Ordre dans l'Humanité: "Os moralistas tiveram razão ao erguerem-se contra a divisão extrema do trabalho: que é um homem que sabe unicamente rodar a manivela, levar cestos às costas , pilar num almofariz, fazer a cabeça de um alfinete? Será cumprir a função essencial do trabalho reduzir assim o produtor ao papel de um martelo, de uma mola, de uma vela de moinho?" Ora, desde o tempo em que Proudhon escrevia estas linhas, a divisão do trabalho não cessou de progredir.Saint-Simon anunciara a hegemonia do industrial, isto é, do homem que participa na produção, e do sábio no seio de uma sociedade comandada pela máquina. É conhecida a célebre passagem que o conduziu diante dos juízos: "Se numa noite uma horrorosa desgraça fizesse desaparecer as personagens mais importantes da família real, os ministros e os altos magistrados, os Franceses chorá-los-iam porque têm o coração sensível, mas não resultaria daí uma verdadeira perturbação para a nação. Pelo contrário, o desaparecimento súbito dos principais sábios, industriais e banqueiros causaria um enorme dano à sociedade, porque esses são insubstituíveis."Os progressos da ciência e da técnica põem em causa, aos olhos de Saint-Simon, a hierarquia social. Evolução benéfica, que traz aos homens a liberdade. O governo (opressor) dos homens cede o lugar ao governo (libertador) das coisas. É com rara sagacidade industrial. Esquece-se, no entanto, de tirar daí as últimas consequências. O governo das coisas exige que os próprios homens sejam considerados como coisas. O industrialismo totalitário, se garante a liberdade material, não deixa de excluir a liberdade espiritual.A atitude reflexiva que, a partir da actividade humana, permite remontar até ao próprio homem, não é, contudo, uma aquisição da filosofia moderna. Foi já praticada e desenvolvida por Sócrates. Filho de um pedreiro e de uma parteira, ele próprio escultor, se acreditarmos numa tradição antiga, ele estende, com efeito, aquilo a que chama a tecnê, isto é, as técnicas operatórias, à totalidade da vida humana.O pensamento socialista do século XIX, além de insistir na exploração a que o trabalho dava lugar sob o regime capitalista, sublinhara claramente a influência desmoralizadora que a divisão do trabalho exerce sobre o operário, qualquer que seja, aliás, o regime económico a que está submetido. A sua principal consigna era a organização do trabalho destinada não só a por fim à exploração como também a revalorizar o trabalho humano. Dir-se-ia mesmo que é a restauração moral do trabalho que suplanta, nos primeiros socialistas, todas as outras reivindicações. Proudhon, em particular, não cessa de recomendar uma reforma total do próprio trabalho. A questão social ficará em grande parte resolvida quando se conseguir o tédio e embrutecimento do trabalho parcelar pelo interesse e a alegria de um trabalho "seriado na sua divisão". "O trabalho, escreve ele, como o Universo, como a Razão, só reveste formas puras e regulares se estiver agrupado, composto, seriado na sua divisão. Fraccionado em parcelas infinitesimais ou reduzido aos seus últimos elementos, o trabalho é para aquele que o executa algo de ininteligível, de embrutecedor, de estúpido."Esta solução poderá parecer utópica enquanto as duras necessidades da mecanização nascente se lhe opuseram. Ela toma o valor de uma profecia na nossa época, em que o emprego de aparelhos com múltiplos utensílios permite cada vez mais remodelar o trabalho. Tomar consciência desta nova tendência na técnica, favorecida pela electrónica e pela cibernética, é redescobrir o primado do homem e o valor do trabalho humano.O triunfo do trabalho parece completo. É ele que comanda os instintos sociais, económicos e políticos do nosso tempo; é ainda ele que lhes forja a armadura cultural. pode-se, no entanto, perguntar se o seu reino não está doravante ameaçado pela história. A humanidade conseguiu libertar-se progressivamente do trabalho e substituí-lo pelo lazer. Não será conveniente retirar ao trabalho a importância que lhe concedêramos e atribuí-la ao lazer, que é a sua antítese? Situar-se-á a liberdade fora e apara além do trabalho? Já Proudhon opusera ao tempo consagrado ao trabalho o tempo das "composições livres". Quanto a Marx, entrevê a possibilidade de um "domínio da liberdade" que "só começa lá onde acaba o trabalho que é determinado pela necessidade e a finalidade externa" e que encontra "situado para lá da esfera da produção material propriamente dita".É apoiando-se na vida espiritual que o homem toma consciência da sua actividade. O trabalho que, segundo a bela definição de Proudhon, é "a emissão do espírito", tende a deixar o espírito prisioneiro. Uma vez o espírito empenhado no trabalho, os laços que existem entre ele e o Absoluto, que é o seu lar, distendem-se e tornam-se invisíveis. É então que o lazer intervém a fim de libertar o espírito do trabalho. Pela meditação, graças ao lazer, o espírito retoma a sua liberdade fundamental, e, tendo tomado consciência da sua referência ao eterno, empenha-se novamente no trabalho. É deste modo que o lazer mantém entre o trabalho e o espírito um vaivém incessante, que progressivamente os encaminha para a perfeição. O trabalho transforma o mundo, enquanto o espírito o explica. A transformação do mundo não se pode realizar sem ser orientada por uma explicação do mundo. A explicação do mundo só se pode deduzir de uma transformação do mundo que a esclarece e justifica.