Monday, March 19, 2007

A Dinâmica da Extinção da Autoridade em Proudhon

É importante fazer algumas precisões sobre o tema deste trabalho. Trata-se de um tema vasto, que não iremos analisar em todas as suas implicações nem o iremos abordar sob os diferentes pontos de vista segundo os quais pode ser considerado (10). Em particular, queria assinalar que não é meu propósito elucidar a dinâmica da transição para a anarquia, quer dizer, de construir um quadro das diferentes medidas reformadoras que deveriam favorizar, segundo Proudhon, o princípio da sociedade mutualista ao mesmo tempo que o declínio do poder, no sentido tradicional do termo.
A minha intenção é sobretudo trazer à luz o quadro teórico no qual se inscreve, segundo o filósofo, a perspectiva da queda do princípio autoritário e, nesse contexto, verificar se estamos em presença dum quadro teórico tendo uma configuração unívoca, ou então se ele revela com o tempo variações estruturais ou formais.
Antecipando as minhas conclusões, preciso, desde já, que elaborei em Proudhon diferentes esquemas de leitura da dinâmica do declínio da autoridade: esquemas que se sobrepõem recortando-se e completando-se reciprocamente e que, estreitamente ligados um ao outro no princípio da carreira intelectual de Proudhon, adquirem no tempo uma autonomia relativa e sofrem desenvolvimentos verdadeiramente notáveis.
Finalmente alguns esclarecimentos sobre os limites cronológicos que fixei à investigação. É bem conhecido que o anarquismo proudhoniano atinge a sua formulação mais radical nos anos da Segunda República e sofre de seguida enfraqueci-
mentos consideráveis, em alguns dos seus motivos inspiradores aparecendo então obscurecidos. Acontece assim que o tema da extinção do poder, que prima na produção proudhoniana até 1852, cede o lugar, nos escritos posteriores, ao da sua regeneração. Como bem o disse Aimé Berthod (11):
“Por um progresso natural do seu pensamento, Proudhon, dá-se conta de que o que havia nas suas primeiras afirmações de demasiado teórico, de demasiado absoluto, passando da determinação rigorosa da ideia às “aproximações” que são uma necessidade de toda a aplicação prática, foi levado a ter um lugar, tão estritamente delimitado que seja, a um princípio de autoridade, a esta noção de governo e de Estado do qual tinha proclamado dum modo tão ousado, em 1849-1850, a total queda.”
Será que o quadro teórico no qual se inscreve esta nova perspectiva proudhoniana coincide com o que se apoia a hipótese da extinção da autoridade? Podemos dizer em substância que os pressupostos teóricos da vinda da sociedade federalista correspondem, com algumas excepções aqueles que governam a dinâmica da exaltação do anarquismo? Eis um problema cativante que não irei já abordar.A minha finalidade era de reconstruir a evolução e a articulação da grelha de leitura proudhoniana dizendo respeito ao declínio do poder, obrigatoriamente limitei a minha análise aos escritos dos anos 1838-1852. Entre estes últimos privilegiei alguns textos que me pareceram particularmente reveladores da configuração que esta grelha de leitura revestiu por certos momentos a maturação intelectual de Proudhon.
Tomei como primeiro ponto de referência a memória sobre a propriedade de 1840: escrito no qual, sabemo-lo, Proudhon pela primeira vez encara o anarquismo como o termo próximo e inevitável da marcha histórica da humanidade e a reivindica como ideal político (12). Apesar de nos referirmos genericamente a este texto tendo no espírito problemas de outra natureza, convém observar que o seu quinto e último capítulo desenha um fresco sugestivo do curso histórico da humanidade, que é dum grande interesse para o nosso propósito, pois ele contém uma análise da génese da autoridade, e, correlativamente, pressupostos do seu enfraquecimento.
Não me demorarei a ilustrar a interpretação da história que este texto nos propõe. Limitar-me-ei a lembrar que se trata duma interpretação que revela duma maneira muito clara os traços que a conotarão pelo que se segue. Trata-se com efeito: primeiramente duma interpretação marcada por uma confiança inabalável no progresso; em segundo lugar, duma interpretação que define este progresso como o lento e penoso caminho do homem da autoridade à liberdade, da hierarquia à anarquia. Trata-se enfim duma concepção que indica na razão a alavanca deste progresso.
Sobre a tela de fundo desta visão da história, Proudhon traça, do nascimento da autoridade e, paralelamente, das condições da sua decadência, uma leitura que liga estas dinâmicas ao processo de desenvolvimento da razão. Mais exactamente Proudhon, imputando o nascimento da autoridade a um estado de infância da razão, liga naturalmente a sua queda a um estado de maturidade desta mesma razão. “Numa sociedade dada,” diz ele (13), “a autoridade do homem sobre o homem está na razão inversa do desenvolvimento intelectual ao qual esta sociedade chegou.”
Na esteira da filosofia das luzes, Proudhon partilha com muitos dos seus contemporâneos uma concepção dinâmica da razão e um sentimento muito vivo do progresso do conheci-
mento. Isso leva-o a conceber a razão como fonte de erro, e por consequência do mal, no primeiro estádio do desenvolvimento histórico, e como instrumento de emancipação e de liberdade nas épocas mais avançadas (14).
Mas vejamos duma maneira mais precisa em que consiste este avanço da razão que constitui aos olhos de Proudhon a premissa necessária do declínio da autoridade: vejamos então o que ele entende por maturidade e imaturidade da razão.
Dum ponto de vista geral, podemos dizer que a infância da razão corresponde a uma etapa da evolução da humanidade, na qual a razão se opõe ao instinto, ignorando as suas leis: uma etapa na qual esta, não tem em conta as leis da natureza, entrava esta sociabilidade à qual o instinto nos conduziria naturalmente: daí a necessidade dum recurso quase espontâneo ao governo, como instrumento de ordem e de paz. Pelo contrário a maturidade da razão corresponde a um estádio de evolução da humanidade caracterizado pela reconciliação entre razão e instinto: estádio no qual a razão, se torna-se favorável à procura das leis da natureza, se faz instrumento do seu conhecimento, e descobre a existência de regras presidindo ao desenvolvimento da sociedade, e, portanto, à autonomia do social (15). Com a linguagem metafórica e eficaz que lhe é próprio, Proudhon apresenta a infância da humanidade como uma época de incesto entre razão e instinto, donde deriva o mal; e a maturidade da humanidade como”uma misteriosa e santa união” entre estes dois elementos, donde deriva o bem (16).
Neste quadro de interpretação, é o nascimento da ciência da sociedade, quer dizer o conhecimento finalmente adquirido das leis presidindo à evolução social, que constitui a premisa de extinção da autoridade (17): a descoberta das leis do social implicando o reconhecimento da sua autonomia, e por isso mesmo, o reconhecimento da inutilidade deste aparelho de poder falsamente considerado como fonte de ordem.
A temática da ciência da sociedade, já esboçada na “Celebração de Domingo” (18), emerge claramente neste texto. Não me demorarei a lembrar que esta temática revela uma continuidade evidente entre o pensamento de Proudhon e o de Saint-Simon e Auguste Comte; autores dos quais encontramos claramente influência nos escritos de Proudhon, e a respeito dos quais aliás este último não hesita a admitir a sua dívida de reconhecimento (19). O que tenho que chamar a atenção, pelo contrário, é que a “Primeira Memória” oferece-nos uma grelha de leitura da decadência da autoridade, que liga duma maneira explícita esta decadência à consciência que a sociedade adquire da sua estrutura de ordem. Consciência que se exprime pelo estabelecimento da ciência da sociedade, mesmo se, é preciso lembrá-lo, não encontramos neste escrito uma definição precisa dos caracteres desta ciência, definição que só virá no seguimento.
Paralelamente a esta grelha de leitura do esvaziamento da autoridade, Proudhon propõe contudo uma segunda, estreitamente ligada à precedente, e que constitui, num certo sentido, um enriquecimento e uma variante. A maturidade da razão sobre a qual se insere a crise de poder tradicionalmente concebido, corresponde com efeito aos olhos de Proudhon a uma fase do desenvolvimento histórico caracterizado não somente pelo conhecimento das leis específicas do social, mas ainda pela ultrapassagem das tensões antagónicas que ensanguentaram os princípios da espécie. Segundo uma visão típica da filosofia das Luzes a qual assimila o mal ao erro e o bem ao verdadeiro, Proudhon afirma que nas origens da humanidade a razão não foi somente a fonte do erro, mas também a causa do mal: o mal identificando-se às irrupções da individualidade, e em particular à apropriação privada. É a “autocracia da razão”, a “terrível faculdade de raciocinar do melhor e do pior”, observa ele (20), que opõe indivíduo a indivíduo, que fomenta o egoísmo, que engendra enfim o sentimento do privado, ao qual devemos ligar a propriedade, a desigualdade, o conflito, do mesmo modo que o papel mediador naturalmente atribuído ao governo.
Podemos então dizer que, para Proudhon, a razão joga inicialmente um papel de desagregação do tecido social, que desaparece no momento em que ela cessa de proceder duma maneira arbitrária e torna-se veículo do conhecimento da nossa natureza. A reconciliação entre razão e instinto, cuja génese da ciência social testemunha, coincide em substância, com a ultrapassagem das tensões antagónicas que acompanharam a vida da sociedade, das suas origens até ao presente.
Apesar da “Primeira Memória” apresentar o nascimento da ciência social do mesmo modo que o enfraquecimento do antagonismo como as manifestações dum mesmo processo de emancipação da razão, parece-me importante observar que Proudhon, atira a sua atenção sobre o fim do conflito social enquanto premissa da crise da autoridade, foi levado a fazer entrar em linha de conta uma série de dinâmicas objectivas ligadas às transformações da vida material, iniciando assim a ultrapassagem duma leitura exclusivamente intelectualista deste processo. Podemos em resumo verificar que a “Primeira Memória” propõe, ainda que duma maneira embrionária, dois esquemas interpretativos da extinção da autoridade, diferentes, no entanto imbricados. De um lado, apresenta um esquema de leitura que liga o declínio da autoridade ao autoconhecimento do social; do outro, traça uma interpretação deste mesmo processo, que o prende a dinâmicas objectivas, cujo desapareci-
mento do antagonismo seria o indício.
Se dermos um salto em frente de alguns anos e se nos transportarmos ao período crucial e intenso da Segunda Républica, no momento em que Proudhon, sob o fogo dos acontecimentos desencadeados pela Revolução de 1848, concentra a sua atenção sobre os grandes temas da autoridade e do poder, notamos então que as duas grelhas de leitura anteriormente analisadas suportam desenvolvimentos consideráveis.
Nos artigos da “Voix du Peuple”, nas “Confissões dum Revolúcionário” e na “Ideia Geral da Revolução”, Proudhon elabora duma maneira original esta interpretação do fim do político enquanto que resultado da autoconsciência social, já esboçada na “Primeira Memória”.Esta elaboração apoia-se por um lado, sobre a definição finalmente acabada da teoria da sociedade enquanto ser colectivo; do outro, sobre o emprego de paradigmas conceptuais próprios à esquerda hegeliana.
Transpondo para o domínio político o procedimento de desmistificação do fenómeno religioso tratado por Feuerbach, e radicalizando a crítica do Estado burguês avançada por Marx na “Questão Judaica” e na “Contribuição à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel” (21), Proudhon propõe de facto uma leitura do político enquanto que alienação, que não deixará de exercer a sua influência sobre os desenvolvimentos teóricos do anarquismo. Trata-se duma interpretação que foi analisada de maneira magistral por Pierre Ansart (22), e onde não me demorarei mais tempo. Limitar-me-ei a salientar que, nesta óptica, a noção de Estado e a sua possibilidade de existência repousam, são as próprias palavras de Proudhon (23), “sobre esta hipótese que um povo, que o ser colectivo que nomeamos uma sociedade, não pode governar-se, pensar, agir, exprimir-se por ele próprio duma maneira análoga à dos seres dotados de personalidade individual; que tem necessidade, para isso, de se fazer representar por um ou mais indivíduos que, a um qualquer título, são tidos serem os depositários da vontade do povo e dos seus agentes”.
A existência do Estado, instituição autoritária por excelência, encontra a sua premissa necessária na desvalorização do social, no desconhecimento da sua capacidade de produzir uma força colectiva, na ignorância da sua prioridade genética em relação ao político. É exactamente através do açambarcamento da força colectiva imanente à sociedade que nasce a instituição política, falsamente considerada como a sua fonte. Nesta nova perspectiva, a dinâmica da extinção da autoridade é concebida por Proudhon como o resultado da recuperação pela sociedade, das suas características de força, de ordem, de harmonia, que lhe seriam essenciais e que ela teria, sem ter consciência, alienado em proveito duma entidade exterior: o Estado, o governo.
Como na “Primeira Memória” o processo de enfraquecimento da autoridade desenrola-se quase que exclusivamente ao nível da consciência; mas os seus mecanismos parecem agora bem mais complexos. Ainda que no célebre artigo “O que é o Governo? O que é Deus ?” (24) Proudhon faz referência ao criticismo racionalista kantiano, a análise do poder que ele traça denota uma certa influência dos procedimentos intelectuais da esquerda hegeliana. Não me inclinarei sobre os tempos, os modos, as vozes desta influência: foram objecto dum estudo minucioso (25). Entretanto queria sublinhar que, sob a influência dos “doutores além-Reno” (Grün, Ewerbeck, Marx, Feuerbach, etc.), a leitura do fenómeno autoritário opera-se em Proudhon seguindo o esquema da inversão sujeito-predicado empregue por Feuerbach para explicar o fenómeno religioso: esquema em que o sujeito é a sociedade e o predicado torna-se o Estado.
Vejamos então como o emprego deste esquema ressalta no sujeito que nos interessa, a saber sobre a concepção da extinção da autoridade. Muito esquematicamente podemos dizer que isso implica, antes de tudo, que somente a correcção desta inversão, quer dizer a consciência da prioridade genética do social sobre o político, poderá iniciar o enfraquecimento deste último. Isso arrasta, além disso, que o fim da autoridade passa necessa- -riamente por um processo psicológico e intelectual, que arrasta o desmantelamento do aparelho mítico e místico sobre o qual o Estado foi fundado, precisamente por causa da sua natureza artificial (26). Em poucas palavras isto significa que o declínio da autoridade é percebido como a libertação intelectual desta espécie de malefício místico no qual o poder reteve a humanidade. Vemos então, que a interpretação do esvaziamento da autoridade enquanto resultado da autoconsciência social evoluiu e enriqueceu-se em relação à “Primeira Memória”.
Poderíamos fazer considerações análogas a propósito da segunda grelha de leitura que pus em evidência: a saber, aquela que liga a extinção da autoridade ao desaparecimento do antagonismo social. Se fizermos a análise dos textos do período de 1848-1852, e particularmente da “Ideia Geral da Revolução”, verificamos que esta grelha adquire um relevo que não tinha anteriormente e que faz objecto dum aprofunda-
mento considerável.
O quadro de interpretação no interior do qual toma lugar a tese do desfalecimento do antagonismo, desfalecimento sobre o qual se insere o enfraquecimento do princípio governamental, é o da passagem da sociedade teológico-feudal à sociedade industrial e científica: sociedade na qual a lógica conflitual própria ao mundo feudal cede passo a uma lógica de solidaridade, que seria o resultado inevitável das relações múltiplas e complexas criadas pelo trabalho.”Numa sociedade transformada, quase sem ela saber, pelo desenvovimento da sua economia”, escreve Proudhon (27), “não há mais nem fortes nem fracos, só existe trabalhadores, cujas faculdades e os meios tendem sem cessar, pela solidariedade industrial e a garantia de circulação, a igualar-se”.
É assim que o papel de mediação do poder torna-se necessariamente supérfluo, o trabalho aparece então como o veículo mais poderoso da integração social. “Um tempo virá onde, estando o trabalho organizado por ele próprio, segundo a lei que lhe é próprio, e não tendo mais necessidade de legislador nem de soberano, a oficina fará desaparecer o governo”, podemos ler numa passagem célebre (28). O governo dissolver-se-à então na organização económica: esta última substituirá a organização política, absorvendo-a; e o regime dos contratos sucederá ao regime das leis, símbolo do velho mundo autoritário (29). Desprende-se aqui claramente a influência do pensamento de Saint-Simon, influência que, de resto, Proudhon não hesita em reconhecer (30).
É oportuno observar que, segundo este esquema de leitura, a dinâmica da solidaridade é recortada do autoconhecimento do social, favorecendo-a. Com efeito, enquanto que na “Primeira Memória” o processo de autoconsciência social era predomi-
nante e governava a dinâmica do declínio do antagonismo, agora parece que a relação entre estes dois processos seja quase invertida, e que seja sobretudo o enfraquecimento do conflito arrastado pelo desenvolvimento económico, que ponha em marcha e active o autoconhecimento da sociedade (31).
Não me vou estender mais tempo sobre esta leitura do declínio do fenómeno autoritário; todavia parece-me importante assinalar que o colocar valorativamente a solidariedade enquanto alavanca do enfraquecimento da autoridade tem implicações notáveis, pois facilita a passagem duma interpretação determinista do fim do político a uma interpretação que sublinha com força o papel da intervenção do sujeito. Com efeito se a prática da solidariedade constitiu o pressuposto do autoconhe-
cimento do social e da decadência da autoridade, é evidente que a sua expansão é entendida como um poderoso instrumento de aceleração deste mesmo processo.
Observamos no que pensamento de Proudhon o lugar da liberdade aumenta progressivamente (32). Esta observação encontra uma confirmação pontual no caso que nos interessa. O enfraquecimento do princípio autoritário, se aparece sempre como saída do curso histórico, revela-se cada dia um pouco mais como uma conquista da iniciativa consciente das classes produtivas.As páginas da “Ideia Geral” onde Proudhon desenha as medidas através das quais se deve traduzir esta iniciativa são por demais conhecidas para serem aqui lembradas (33). Basta-me dizer que isto implica que uma terceira grelha de leitura da extinção da autoridade nasce neste texto. Grelha, à luz da qual este processo, mergulhando as suas raízes nas profundezas da história, aparece contudo como o resultado da intervenção dum sujeito colectivo específico, que é a classe operária.
Podemos dizer para concluir que a interpretação do enfraquecimento da autoridade proposto por Proudhon, durante uma dúzia de anos evolui, refina-se, articula-se. O esvaziamento do poder, no sentido tradicional do termo, inicialmente preso a uma emancipação da razão concebida de maneira ainda vaga, aparece, no cume do itinerário intelectual de Proudhon, como o produto do concurso de dinâmicas diferentes e imbricadas. Dinâmicas que dizem respeito à evolução dos meios e das formas do conhecimento (é nesse caso o processo que leva do mito à ciência e da alienação política à autoconsciência do social); dinâmicas que se prendem com as transformações da actividade material (é nesse caso o trabalho que se substitui à guerra aproximando os homens e os povos); dinâmicas, finalmente, que sendo fatais e inexoráveis, implicam cada dia um pouco mais o sujeito, abrindo espaços de intervenção à prática reformadora das massas laborais. É à volta desta mensagem, penso, que se articula a produção ulterior de Proudhon, a qual, e isto não é um azar, encontrará o seu ponto culminante na “Capacidade Política das Classes Trabalhadoras”. Neste momento, entretanto, é necessário lembrá-lo, as dinâmicas que estiveram aqui em questão, parecem comandar não mais a extinção do poder, mas sobretudo a sua regeneração.

NOTAS


10- Apesar de Proudhon utilizar frequentemente o termo “autoridade” enquanto sinónimo de “poder” de “governo” e de “Estado”, é necessário lembrar a distinção que estabelece entre “autoridade” e “governo”: “A autoridade é para o governo o que o pensar é para a palavra, a ideia para o facto, a alma para o corpo. A autoridade é o governo no seu princípio, como o governo é a autoridade no seu exercício”
“L`autorité est au gouvernement ce que la pensée est à la parole, l`idée au fait, l`âme au corps. L`autorité est le gouvernement dans son principe, comme le gouvernement est l`autorité en exercice” (Idée Générale de la Révolution au XIX siècle (1851) Paris,Rivière, 1923, p.181)
11- A. Berthod. Introdução à edição da “Idée Générale”, p.83. É necessário assinalar entretanto que especialistas de envergadura tendem a reduzir o relevo da fase “anarquista” de Proudhon e a sublinhar sobretudo a continuidade do seu federalismo. Ver nomeadamente: J. Bancal, Proudhon, Pluralisme et Autogestion, Paris, Aubier Montaigne, 1970, e B. Voyenne, Histoire de l`Idée fédéraliste, t. II: Le Fédéralisme de P.J. Proudhon, Paris, Presses d`Europe, 1973.
“Proudhon, par un progrès naturel de sa pensée, se rendant compte de ce qu`il y avait dans ses affirmations premières de trop théorique, de trop absolu, passant de la détermination rigoureuse de l`idée aux “aproximations” qui sont une nécessité de toute application pratique, s`est trouvé amené à faire une place, si strictement délimitée soit-elle, à ce principe d`autorité, à cette notion de gouvernement et d`Etat, dont il proclamait si hardement, en 1849-1850, la totale déchéance”.
12- Qu‘est que la Propriété? ou Recherches sur le Principe du Droit et du Gouvernement - Premier Mémoire (1840), Paris, Rivière, 1926:
“Anarquia, ausência de mestre, de soberano, tal é a forma de governo de que todos os dias nos aproximamos e que o hábito inveterado de tomar o homem por regra e a sua vontade por lei nos faz olhar como o cúmulo da desordem e a expressão do caos.”
“Anarchie, absence de maître, de souverain, telle est la forme de gouvernement dont nous approchons tout les jours, et que l`habitude invétérée de prendre l`homme pour règle et sa volonté pour loi nous fait regarder comme le comble du désordre et l`expression du chaos”(p.339). Lembramos que anteriormente Proudhon havia feito profissão de fé, dizendo-se anarquista (p.335)
13- ibidem. p.339. “Dans une société donnée”, “l`autorité de l`homme sur l`homme est en raison inverse du développement intellectuel auquel cette société est parvenue”.
14- “Assim o mal moral, quer dizer, na questão que nos ocupa, a desordem na sociedade explica-se naturalmente pela nossa faculdade de reflectir. A miséria, os crimes, as revoltas, as guerras tiveram por mãe a desigualdade das condições, que foi filha da propriedade, que nasceu do egoísmo, que foi engendrada pelo sentido privado, que descende em linha recta da autocracia da razão. O homem não começou nem pelo crime nem pela selvajaria, mas pela infância, a ignorância, a inexperiência. Dotado de instintos imperiosos mas colocados sob a condição de raciocínio, primeiro reflecte pouco e raciocina mal; depois, à força de desilusões, pouco a pouco, as suas ideias arrumam-se e a razão aperfeiçoa-se.”
“Ainsi le mal moral, c`est-à-dire, dans la question qui nous occupe, le désordre dans la société s`explique naturellement par notre faculté de réfléchir.Le paupérisme, les crimes, les révoltes, les guerres, ont eu pour mère l`inégalité des conditions, qui fut fille de la propriété, qui naquit de l`égoïsme, qui fut engendrée du sens privé, qui descend en ligne directe de l`autocratie de la raison.L`homme n`a commencé ni par le crime, ni par la sauvagerie, mais par l`enfance, l`ignorance, l`inexpérience.Doué d`instincts impérieux, mais placés sous la condition du raisonnement, d`abord il réfléchit peu et raisonne mal; puis, à force de mécomptes, peu á peu ses idées se redressent et sa raison se perfectinne” (ibidem, p.320)
15- “Enquanto o homem está submetido ao instinto não tem qualquer consciência do que faz; nunca se enganaria e não haveria para ele erro, mal ou desordem se, como os animais, só tivesse o instinto por motor. Mas o Criador dotou-nos de reflexão a fim de que o nosso instinto se tornasse inteligência; e como essa reflexão e o conhecimento que daí resulta depara com uma escala acontece que ao princípio o nosso instinto é mais contrariado que gulado pela reflexão; por consequência que a nossa faculdade de pensar que nos faz agir contrariamente à nossa natureza e ao nosso fim; que, enganando-nos, fazemos o mal e sofremos com isso até que o instinto que nos leva ao bem e a reflexão que nos faz inclinar para o mal sejam substituídos pela ciência do bem e do mal, que nos faça procurar um e evitar o outro com segurança.”
“Tant que l`homme est soumis à l`instinct, il n`a aucune conscience de ce qu`il fait: il ne se tromperait jamais, et il n`y aurait pour lui ni erreur, ni mal, ni désordre, si, de même que les animaux, il n`avait que l`instinct pour moteur. Mais le Créateur nous a doués de réflexions, afin que notre instinct devînt intelligence: et comme cette réflexion et la connaissance qui en résulte ont des degrés, il arrive que dans les commencements, notre instinct est contrarié plutôt que guidé par la réflexion; par conséquent, que notre faculté de penser nous fait agir contrairement à notre nature et à notre fin; que, nous trompant, nous faisons le mal et nous en souffrons, jusqu`à ce que l`instinct qui nous porte au bien, et la réflexion qui nous fait trébucher dans le mal, soient remplacés par la science du bien et du mal, qui nous fasse avec certitude chercher l`un et éviter l`autre” (ibidem, pp.323-324).No mesmo sentido, ver mais acima, pp.319-320.
16- “Assim o mal, quer dizer, o erro e as suas consequências, é o primeiro filho da mistura de duas faculdades antagónicas, o instinto e a reflexão; o bem, ou a verdade, deve ser o segundo e inevitável fruto. Para continuar a figura o mal é o produto de um incesto entre dois poderes contrários; o bem será cedo ou tarde, o filho legítimo da sua santa e misteriosa união.”
“Ainsi le mal, c`est-à-dire l`erreur et ses suites, est fils premier - né du mélange des deux facultés antagonistes, l`instinct et la réflexion; le bien, ou la vérité, doit en être le second et inévitable fruit.Pour continuer la figure, le mal est le produit d`un inceste entre deux puissances contraires: le bien sera tôt ou tard l`enfant légitime de leur sainte et mystérieuse union” (ibidem, p. 324).
17- “À força de se instruir e adquirir ideias o homem acaba por descobrir a ideia da ciência, quer dizer, a ideia de um sistema de conhecimento conforme à realidade das coisas e deduzida da observação. Procura então a ciência ou o sistema dos corpos brutos, o sistema dos corpos organizados, o sistema do mundo: como não procurar também o sistema de sociedade? Mas, chegado a esse termo, compreende que a verdade ou a ciência política é uma coisa completamente independente da vontade soberana, da opinião das maiorias e das crenças populares; que reis, ministros, magistrados e povos, como vontades, nada são para a ciência e não merecem nenhuma consideração. Compreende ao mesmo tempo que se o homem nasceu sociável a autoridade do pai sobre ele cessa no dia em que, formada a razão e completada a educação, se torna associado do pai; que o seu verdadeiro chefe e rei é a verdade demonstrada; que a política é uma ciência, não um ardil; e que a função de legislador se reduz, em última análise, à procura metódica da verdade.”
“A force de s`instruire et d`acquérir des idées, l`homme finit par acquérir l`idée de science, c`est-à-dire l`idée d`un système de connaissance conforme à la realité des choses et déduit de l`observation.Il cherche donc la science ou le système du monde: comment ne chercherait-il pas aussi le système de la société? Mais, arrivé à ce moment, il comprend que la vérité ou la science politique estchose tout à fait indépendante de la volonté souveraine, de l`opinion des majorités et des croyances populaires: que rois, ministres, magistrats et peuples, en tant que volontés, ne sont rien pour la science et ne méritent aucune considération.Il comprend de même coup que si l`homme est né sociable, l`autorité de son père sur lui cesse du jour où sa raison étant formée et son éducation faite, il devient l`associé de son père: que son véritable chef et son roi est la vérité démontrée; que la politique est une science, non une finasserie; et que la fonction de législateur se réduit, en dernière analyse, à la recherche méthodique de la vérité” (ibidem, pp. 338-339)
18- De la Célébration du Dimanche (1839), Paris, Rivière, 1926, p.89.
19- No que respeita a influência de Saint-Simon, ver sobretudo “Idée Générale”, citada, pp.195-197, onde Proudhon sintetiza desta maneira o sentido do pensamento Saint-Simoniano em relação ao anarquismo: “Que quis dizer Saint-Simon? No momento onde, por um lado, a filosofia sucede à fé e substitui a antiga noção de Governo pela de contrato; onde, por outro lado, no seguimento duma Revolução que aboliu o regime feudal, a sociedade debate-se para se desenvolver, harmonizar os seus poderes económicos: nesse momento torna-se inevitável que o Governo, negado em teoria, se destrói progressivamente na aplicação. E quando Saint-Simon, para designar esta nova ordem de coisas, conformando-se ao velho estilo, utiliza a palavra de Governo ligada ao epíteto de administrativo ou industrial, é evidente que esta palavra adquire sob a sua caneta uma significação metafórica ou sobretudo analógica, que só podia fazer ilusão aos profanos.”
“Qu`a voulu dire Saint-Simon? Du moment où, d`une part, la philosophie succède à la foi et remplace l`ancienne notion de Gouvernement par celle de contrat; où, d`un autre côté, à la suite d`une Révolution qui abolit le régime féodal, la société demende à se développer, harmoniser ses puissances économiques: de ce moment-là il devient inévitable que le Gouvernement, nié en théorie, se détruise progressivement dans l`application. Et quand Saint-Simon, pour désigner ce nouvel ordre de choses, se conformant au vieux style, emploie le mot de Gouvernement accolé à l`épithète d`administratif ou industriel, il est évident que ce mot acquiert sous sa plume une signification métaphorique ou plutôt analogique, qui ne pouvait faire illusion qu`aux profanes”.
No que respeita a Auguste Comte, convém lembrar as breves relações Proudhon-Comte estabelecidas por P. Haubtmann (La philosophie sociale de P. J. Proudhon, Grenoble, Presses universitaires, pp. 181-196). Mais particularmente, em relação à influência exercida pelo positivismo contiano sobre Proudhon, reportamo-nos ao que diz Proudhon numa carta inédita, que escapou à atenção de P. Haubtmann:” Admito tudo o que sei de Si, quer dizer, o que desde há 12 anos, entendi nos seus cursos, o que li nos seus tratados (que não li por inteiro entretanto), o que M. Littré, e outros dos seus discípulos fizeram conhecer ao público.”
“J`admets tout ce que je sais de Vous, c`est -à dire, ce que depuis 12 ans, j`ai entendu dans vos cours, ce que j`ai lu dans vos traités (que je n`ai pas lu entier cependant), ce que M. Littré, et d`autres de vos disciples ont fait connaître au public”. (carta de 6 de Agosto de 1852, conservada nos arquivos da casa de Auguste Comte).
20- “Premier Mémoire”...p.320 e p. 324.
21- P. Haubtmann, Proudhon, Marx et la pensée allemande, Grenoble, Presses universitaires, 1981, p.86.
22- P. Ansart, Sociologie de Proudhon, Paris, P.U.F., 1967 e Marx et l‘anarchisme,Essai sur les sociologies de Saint-Simon,Proudhon et Marx, Paris, P.U.F., 1969.
23- “sur cette hypothèse qu`un peuple, que l`être collectif qu`on nomme une société, ne peut se gouverner, penser, agir, s`exprimer par lui-même d`une manière analogue à celle des êtres doués de personalité individuelle; qu`il a besoin, pou cela, de se faire représenter par un ou plusieurs individus qui, à un titre quelconque, sont censés être les dépositaires de la volonté du peuple et ses agents”.
Polémique contre Louis Blanc et Pierre Leroux (1849-1850), Paris, Rivière, 1924, p.368.
24- “La Voix du peuple”, 5 de Novembro de 1849. O artigo foi acrescentado como introdução à terceira edição das “Confessions d`un révolutionnaire” (1851).Podemo-lo ler na edição Rivière deste célebre texto ( Paris, 1929, pp.57-64).
25- A obra já citada de P. Haubtmann, Proudhon, Marx et la pensée allemande.
26- “Não há duas espécies de governo, como não há duas espécies de religião. O governo é de direito divino ou não é; o mesmo que a religião é do céu ou não é nada... Também... o governo, em Rousseau assim como na Constituição de 91 e todas as que se seguiram, não é sempre, a despeito do processo eleitoral, que um governo de direito divino, uma autoridade mística e sobrenatural que se impõe à liberdade e à consciência, sempre tendo ar de reclamar a sua adesão.”
“Il n`y a pas deux espèces de gouvernement, comme il n`y a pas deux espèces de religions. Le gouvernement est de droit divin ou il n`est pas; de même que la religion est du ciel ou n`est rien...Aussi...le gouvernement, dans Rousseau ainsi que dans la Constitution de 91 et toutes celles qui ont suivi, n`est-il toujours, en dépit du procédé électoral, qu`un Gouvernement de droit divin, une autorité mystique et surnaturelle qui s`impose à la liberté et à la conscience, tout en ayant l`air de réclamer leur adhésion” (Idée...p.208).
27- ”Dans une société transformée, presque à son insu, par le développement de son économie”, escreve Proudhon, “il n`y a plus ni forts ni fables, il n`existe que des travailleurs, dont les facultés et les moyens tendent sans cesse, par la solidarité industrielle et la garantie de circulation, à s`égaliser”.
Polémique..., p. 375.
28- ”Un temps viendra où, le travail étant organisé par lui-même, selon la loi qui lui est propre, et n‘ayant plus besoin de législateur ni de souverain, l‘atelier fera disparaître le gouvernement”.
ibidem, p.195.
29- Ver “Idée Générale”..., p.302.
30- Philophie du progrès (1853), Paris, Riviére, p.74: “À autoridade, à política, substituo logo pela economia, ideia sintética e positiva, capaz unicamente, segundo eu, de conduzir a uma concepção racional e prática da ordem social. Não faria, aliás, que retomar a tese de Saint-Simon, tão estranhamente desfigurada pelos seus discípulos... Consiste a dizer que após a história, e após a incompatibilidade das ideias de autoridade e de progresso, que a sociedade está a caminho de realizar pela última vez o ciclo governamental: que a razão pública adquiriu a certeza da impotência da política, no que respeita aos benefícios do destino das massas; que à preponderância das ideias de poder e de autoridade começou a suceder na opinião como na história a preponderância das ideias de trabalho e de troca: que a consequência desta substituição é de suceder os mecanismos dos poderes políticos pela organização das forças económicas”.
“À l`autorité, à la politique, je substituais donc l`économie, idée synthétique et positive, seule capable, selon moi, de conduire à une conception rationnelle et pratique de l`ordre social. Je ne faisais d`ailleurs, en cela, que reprendre la thèse de Saint-Simon, si étrangement défigurée par ses disciples... Elle consiste à dire d`après l`histoire, et d`après l`incompatibilité des idées d`autorité et de progrès, que la société est en train d`accomplir pour la dernière fois le cycle gouvernemental: que la raison publique a acquis la certitude de l`impuissance de la politique, en ce qui concerne l`amélioration du sort des masses; qu`à la prépondérance des idées de pouvoir et d`autorité a commencé de succéder dans l`opinion comme dans l`histoire la prépondérance des idées de travail et d`échange: que la conséquence de cette substitution est de remplacer les mécanismes des pouvoirs politiques par l`organisation des forces économiques”.
31- “Pomos , em segundo lugar, a nossa tese em explicar como, pela reforma económica, pela solidariedade industrial e a organização do sufrágio universal, o povo passa da espontaneidade à reflexão e à consciência; agir, não mais por exaltação e fanatismo, mas com desígnio; comportar-se sem mestres e servidores, sem delegados como sem aristocratas, absolutamente como faria um indivíduo”.
“Nous pouvons, en second lieu, notre thèse en expliquant comment, par la réforme économique, par la solidarité industrielle et l`organisation du suffrage universel, le peuple passe de la spontanéité à la réflexion et à la conscience; agit, non plus par entraînement et fanatisme, mais avec dessein; se comporte sans maîtres et serviteurs, sans délégués comme sans aristocrates, absolument comme ferait un individu”. (Polémi-
que...p. 369).
32- Ver A. Berthod, introdução..., citada, p.75.
33- Idée Générale...,pp 237 e seguintes.