Friday, March 09, 2007

Homo Proudhonianus



Camponês de origem e operário por condição, manual de origem e intelectual por ascenção, praticante por profissão e teórico por vocação, pragmático por temperamento e moralista por carácter, economista e sociólogo por observação, político e educador por indução, Proudhon aparece como um microcosmo do povo francês. O seu nascimento e sua vida revestem por si próprias uma dupla e mesma significação histórica: o acesso do proletariado à inteligência da sua condição e da sua emancipação, a emergência da sociedade industrial na sua dimensão planetária.
Numa obra genial, no desconcertante funcionamento, mas numa coerência interna rigorosa, todos os assuntos e os problemas da humanidade são abordados com um sentido surpreendente da projecção e da prespectiva. “Eu sei o que é a miséria, escreve Proudhon. Eu já a vivi. Tudo o que eu sei, eu devo-o ao desespero. “Uma tal vida teria podido fazer um irritado. Uma formidável saúde física e moral, uma prodigiosa inteligência, um temperamento decididamente pragmático tornando-se um realista. Proudhon decide consagrar a sua vida “à emancipação dos seus irmãos e companheiros” (carta à academia de Besançon), e, face ao mundo estabelecido, ele veste-se como “um aventureiro do pensamento e da ciência”.
Ciência e liberdade, socialismo científico e socialismo liberal, liberal porque científico, e pluralista porque liberal: tal é a originalidade do pensamento de Proudhon, relativamente aos socialistas utópicos do seu século e ás consequências dogmáticas do pensamento científico de Marx.
“A soberania da vontade cede diante da soberania da razão, e acabará por aniquilar-se num socialismo científico”. “A liberdade é anarquia porque ela não admite o governo da vontade mas somente a autoridade da lei […]. A substituição da lei científica à vontade […] é, depois da propriedade, o elemento mais poderoso da história”. Proudhon escreve estas linhas em 1840 (Primeira Memória sobre a propriedade). O primeiro, ele inventa e aplica o conceito de socialismo científico e opõe-se, desde 1846, ao novo termo de “socialismo utópico”. Este socialismo científico basea-se sobre “uma ciência da sociedade metodicamente descoberta e rigorosamente aplicada”. “A sociedade produz as leis e os materiais da sua experiência”. Também a ciência social e o socialismo científico são, correlativamente, auto-descoberta e auto-aplicação pela sociedade real das leis inerentes ao seu desenvolvimento. “A ciência social é o acordo da razão e da prática social” (Contradições económicas, 1846); a sua separação é então a causa de todas as utopias e de todas as alienações: “Eu protesto contra a sociedade actual e eu procuro a ciência. A este duplo título eu sou socialista”, escreve ele (voz do povo, 4 Dezembro 1848). A mesma lógica que transforma o socialismo em socialismo científico conduz este a ser um socialismo liberal. Para eliminar o capitalismo arbitrário, o socialismo tende a uma colectivização social. Paralelamente, para suprimir o arbitrário estadual, ele conduz uma liberalização social. É na sociedade toda inteira onde se autogeram e autoadministram que ele começa a preparar e a instaurar esta “revolução permanente” (Brinde à Revolução), esta evolução revolucionária, e inferir do pluralismo orgânico social um pluralismo organizador. A chave do pensamento proudhoniano não reside num priorisma intelectual, um dogma metafísico, mas numa teorização fundada sobre a observação científica: o pluralismo. Com efeito, “o mundo moral (social) e o mundo físico descansam sob crua pluralidade de elementos; e é da contradição destes elementos que resultam a vida, o movimento do universo”, a possibilidade da liberdade para o homem e sociedade. “O problema consiste não em encontrar a sua fusão, o que seria a morte, mas o seu equílibrio sem deixar de ser instável, variável como o desenvolvimento das sociedades” (Teoria da propriedade, 1865). O antagonismo autonomista e o equílibrio solidário são “a condição da existência”: sem oposição, sem vida, sem liberdade, sem composição, sem sobrevivência, sem ordem. O pluralismo é então o axioma do universo; o antagonismo e equílibrio, sua lei e sua contra-lei (A Guerra e a Paz, 1861). O mundo, a sociedade são pluralistas. A sua unidade é uma unidade de oposição-composição, uma união de elementos diversificados, autónomos e solidários, em conflito e em concurso. Deste pluralismo físico e sociólogo efectivo, Proudhon induz um pluralismo social eficiente.

Pensamento crítico e constructivo
Um autêntico plebeio
As origens de Pierre Joseph Proudhon, nascido a 15 de Janeiro de 1809 em Besançon com um jovem pai cervejeiro e uma mãe cozinheira, são, ao contrário daqueles de Marx e da maior parte dos reformadores sociais (de Saint-Simon a Lénin), autenticamente plebeios.
Ainda jovem foi vaqueiro no campo franco-“comtoise”, Proudhon é admitido aos dez anos como bolsista no colégio real de Besançon. Lá ele obtém, apesar das condições de trabalho muito precárias, todos os prémios de excelência. Obrigado, por necessidade, a interromper os seus cursos retóricos, ele torna-se sucessivamente tipógrafo, revisor, vaqueiro da academia de Besançon (ele completa a sua formação intelectual em Paris, nas Artes e Ofícios e no Colégio de França), artesão impressor; fundado no poder durante cinco anos numa empresa de navegação fluvial lionesa, ele adquere uma experiência real dos mecanismos da empresa e também da burocracia. De seguida ele pratica o seu ofício de jornalista-escritor, que ele segue incessantemente, na companhia da sua mulher, uma operária, e com os seus filhos, através de incessantes dificuldades materiais, dos processos políticos, as revoluções, a comissão, a prisão (três anos) e o exílio. Ele morre aos cinquenta anos, a 19 Janeiro de 1865, enfraquecido por um imenso trabalho, deixando uma obra corrente que ele nunca teria tido o prazer de resumir (mais de quarenta obras representando quase cinquenta volumes, sem contar os artigos dos três jornais que ele criou sucessivamente).

O ANTI-SISTEMA DE PROUDHON
O pluralismo de Proudhon explica o desenvolvimento lógico da sua obra. A sua crítica da propriedade capitalista visa um “atomismo” individualista (doutrina que na sociedade não é mais que uma adição de indivíduos) de onde parte a negação da existência real da produtividade própria dos “seres colectivos” e a atribuição induzida aos capitalistas do excedente produzido criado pela “força colectiva” (teoria da prelibação capitalista). A sua condenação do absolutismo estadual, de direita ou de esquerda, é aquela de um totalitarismo social, sistema que nega as manifestações autónomas das pessoas colectivas e individuais; de onde a sua concepção do Estado como colectiva dominante, um aparelho burocrático, e de seguida a atribuição induzida neste último das “forças públicas” próprias às colectividades e pessoas de base (teoria mais-válida estadual). O seu duplo ataque contra o espiritualismo integrista antes da carta e do materialismo integral visa uma mesma unidade dogmática erguendo de um príncipio dominador um só elemento da pluralidade social. Ele não é até nos seus diatribes pedagógicos onde, denunciando a ”separação da inteligência e da actividade”, “a escolariedade e a aprendizagem”, do homem “um autómato e um abstractor”, ele combate a absolutização, negação da relação pluralista (teoria crítica do misticismo idealista e materialista).
Um realismo completo, respeitando a diversidade e o desenvolvimento antinómico dos seres e das coisas, domina o seu pensamento. A anarquia (autogestação negativa) ou negação da autoridade do homem sob o homem constituía o anti-sistema de Proudhon: o anti-capitalismo, “ou negação da exploração do homem pelo homem”, o anti-estadismo, “ou negação do governo do homem pelo homem”, o anti-teísmo (antimisticismo do espírito e da matéria), ou “negação da adoração do homem pelo homem”, são os corolários.

O MÉTODO POSITIVO
A autogestação (dita “autonomia de gestão”, “anarquia positiva”), ou afirmação da liberdade do homem pelo homem, constituí o método positivo de Proudhon. Ela combina simultaneamente um “trabalhismo pragmático”, ou realização do homem pelo homem graças ao trabalho social, um “justicialismo ideo-realista”, ou idealização do homem pelo homem pela realização de uma justiça social, um “federalismo auto-gestionário” ou liberação do homem pelo pluralismo social. A partir dos três elementos desenvolvem-se as teorias de Proudhon.

O TRABALHISMO PRAGMÁTICO
Ao trabalhismo pragmático unem-se as teorias do trabalhismo histórico, da economia no que respeita a ciência do trabalho, do realismo social e da dialéctica séria.
O trabalhismo histórico é uma teoria axial. Acção inteligente dos homens na sociedade sobre a matéria, “o trabalho considerado historicamente […] é a força plástica da sociedade […] que determina as diversas fases do seu crescimento, e todo o seu organismo tanto interno como externo”. A economia política, “ciência do trabalho”, é a “chave da história” (Criação da Ordem, 1843). O trabalho, gerador da economia, genitor da sociedade, alavanca da política, fonte da economia, modo de ensinamento, é o motor da história, promotor da justiça, realizador da liberdade, e autor da sua própria libertação. Na luta do organismo económico contra a opressão dos poderes ou dos poderosos, ele é, secularmente, o actor de uma “revolução permanente”. A teoria da economia, ciência do trabalho e disciplina tripolar, é corolária da anterior. O trabalho, “considerado objectivamente no produto”, faz da economia uma ciência da produção e uma compatibilidade económica fundada sobre o valor trabalho (teoria do “valor constituído”); “considerado subjectivamente no trabalhador”, acredita na ciência da organização e sociologia económica (teoria da força colectiva): engloba “sintéticamente os benefícios produto-trabalhador”, ele devolve-a à ciência da repartição e do direito económico (teoria mutualista e federativa da propriedade).
As teorias do realismo social e da dialéctica séria são a táctica e a dinâmica do trabalhismo pragmático. O trabalho e as suas leis (divisão, comunidade de acção) criam e estruturam a sociedade, suscitando uma pluralidade de seres colectivos. Pelo realismo social ou teoria dos seres colectivos, Proudhon apoia a realidade e as leis próprias dos grupos e da sociedade. É “a ideia mãe da sociologia” (C.Bouglé), cuja paternidade é-lhe indiscutivelmente atribuível (G.Gurviteh). “As colectividades são também mais reais que as individualidades […] a sociedade é um ser real […]. Ele tem então as suas leis e benefícios que a observação revela”: a”força colectiva”, a “razão colectiva”, e a “fé colectiva” (Pornocracia).
A dialéctica séria é a dinâmica das forças físicas e sociais catalizadas produtivamente pelo trabalho (ou subversivamente pela guerra). O mundo é um canal de antinomias. A antinomia, dupla força, compõe, por oposição de dois elementos por vezes antagonistas e complementares, um elo elementar deste pluralismo anti-tético. A resolução da antinomia é impossível, mas por oposição dos elementos antinómicos nascem vida e movimento. Artificial, a síntese não resiste à vida, ela aliena ou mata. Contudo, a observação revela a existência da união de forças associativas e organizadoras, as séries, que atravessam, sob-levantam e disciplinam o movimento dialéctico dos canais antinómicos. O trabalho é uma série geral positiva, e, pelas suas duas próprias leis, ele crê numa ordem produtiva, uma dinâmica associação; do outro lado, a guerra, série geral negativa, gera uma ordem destrutiva, uma dinâmica de competição. Processo criativo comum ao mundo material e ao mundo social, a dialéctica séria torna-se, por esquematização “ideal”, uma lógica formal copiada sobre a lógica real do undo. Do processo efectivo, ele transforma-se no método eficiente de pensamento e de acção.

O JUSTICIALISMO IDEO-REALISTA
No pensamento proudhoniano, as teorias do justicialismo ideo-realista e, em primeiro lugar, o ideo-realismo articulam-se no vínculo que une o pensamento e acção. Toda a ideia tem a sua fonte num benefício real revela uma acção e percebe assim por entendimento. O trabalho, “acção inteligente do homem na sociedade sobre a matéria”, é esta revelação por excelência. “Toda a ideia nasce da acção e deve voltar à acção, sob pena de degradação pelo agente”. (A Justiça, 1858). Mas a ideia, por livre esforço de inteligência fiel à realidade, pode tornar-se “complemento da criação, criação continuada operada pelo espírito à imagem da natureza” (Criação da Ordem). Assim, matéria e espírito, homens e sociedades são, pela mesma acção do trabalho, englobados indissoluvelmente numa dialéctica criadora onde “as coisas são tipos de ideias”, e as ideias “impressão da realidade sob o entendimento”. Esta concepção impregna a sua pedagogia trabalhista (métodos activos, junção entre a aprendizagem e a escolariedade, formação politécnica, integração da educação na prática social).
A teoria da justiça como ideia força e equílibrio das forças é um corolário de ideo-realismo. Contra-lei de antagonismo, “equílibrio entre as forças livres” (Teoria da propriedade, 1865), “a justiça não é um simples benefício, concepção abstracta, ficção de entendimento ou acto de fé, ela é uma coisa tanto mais real que descança sobre as realidades” (A Justiça). Lei do universo físico, ela é a equílibrio, benefício das forças; lei social, é reciprocidade, benefício de solidariedade; lei intelectual, é equação, benefício de igualdade; lei moral, é equílibrio dos direitos e dos deveres, benefício de dignidade; lei ideal, é ideo-realização, benefício idealizado. No mundo intelectual, social e moral, esta lei portanto imanente aos homens e aos grupos pode ser bloqueada pela acção mesma de uma liberdade imaginativa capaz de produzir artífice, arbitrário e ideomania. Mas pela sua realização através da razão social, esta força imanente desenvolvida na cultura, prática social, moral e revolucionário, pode impor-se como lei-realista.
A teoria do realismo moral e estética encadeia-se na precedente. A moral e a estética são a essência social e resultam da ideo-realização dos benefícios sociais sobre os quais elas reagem à sua volta.
Na teoria conexa da história da negação-revelação, a história é “a educação dinâmica da humanidade” no seu duplo movimento de realização pelo trabalho e de idealização pela justiça. Ela tem como função desmentir “os erros da humanidade da sua redução ao absurdo” (Segunda Memória) e “de nos revelar o trabalho da criação da ordem e emerção das leis” (Criação da Ordem). A teoria do progresso-regresso é o seu corolário: “Toda a sociedade avança pelo trabalho e justiça idealizada. Toda a sociedade estagna pela preponderância do ideal”, ou seja, o idealismo” (A Justiça): não existe glória automática do progresso, mas uma prática dos recuos ou uma perda do real. Elas acontecem quando o idealismo imaginativo e o dogmatismo ideomania abusam da liberdade e esquecem a realidade do trabalho e da justiça para “as idealidades políticas e sociais”.
A teoria da liberdade como força de composição é o ponto de partida e consequência do justicialismo ideo-realista. A liberdade está rendida ao possível jogo da pluralidade das forças antagónicas do universo físico, social e pessoal; ela torna-se efectiva pelo homem que autoriza este jogo; ela é eficácia pela multiplicação das relações sociais, a engrenagem de todas as liberdades; ela acede à eficiência pela sua equação com a justiça, afrontando como comutação social todas as liberdades.
Só a liberdade eficiente, que implica a moral e a educação, é a liberdade total. A todos os outros estados, ela pode degenerar a arbitrariedade individual e colectiva. Á vez do pacto, a justiça mútua e a força de composição (com o real pluralista, individual antagonista, o social relativo, o moral “obrigatório”), a liberdade forma um jogo tendo as suas regras. A sua aplicação permite a emergência do ser progressivo, a arbitragem do seu destino. Se estas regras são injuriadas, é do domínio do ser fatal, a arbitragem do destino.

O FEDERALISMO AUTOGESTIONÁRIO
O federalismo autogestionário de Proudhon parte do trabalhismo e do justicialismo ideo-realista. Ele comporta duas construcções distintas mas complementares: a democracia económica mutualista e a democracia política e federalista, que se conjungam sobre o plano nacional e internacional em federações e confederações dualistas. O fecho da abóboda destas estructuras é a organização distinta e atrelada às duas manifestações da sociedade trabalhadora: sociedade de produção ou organismo económico, sociedade de relação ou corpo político. A sua autonomia é condição do dinamismo e do equílibrio da sociedade pluralista. Sob pena de alienação recíproca, os benefícios sociedade económica – sociedade política devem ser aqueles de um casal. Eles devem opôr-se para compôr, diferir para dialogar, e distinguir-se para se unir.
A democracia económica mutualista funde-se sobre a “teoria mutualista e federativa da propriedade”. Relativizada pelo jogo dos benefícios sociais, cada propriedade é “mutualista”; solidariezada pelos mesmos benefícios, toda a propriedade é “federativa”.
E a federação das propriedades mutualistas constitue a sociedade económica mutualista dos trabalhadores. Esta teoria termina na mutualização federativa da agricultura: constituição de propriedades individuais de exploração, associadas em conjuntos cooperativos dotados de poderes próprios e de serviços colectivos, e reagrupados numa federação agrícola. Ela esclarece sobre uma socialização federativa de indústria, ou seja, a excepção feita de propriedades artesanais ou liberais mutualizadas, sobre um conjunto de propriedades colectivas de empresas, concorrentes entre si mas associadas numa federação industrial. Ela traduz-se pelo agrupamento da indústria e da agricultura numa “federação agrícola industrial” e pela constituição de agrupamentos de uniões de consumidores que formarão juntamente o “sindicato da produção e da consumação”. Este último vigia a organização cooperativa dos serviços (comércio, alojamento, seguros, crédito) e a gestão geral da sociedade económica independentemente do Estado. Sobre o plano internacional está prevista uma “confederação mutualista” aliando em marcha comum socializada dos grupos de sociedades económicas nacionais. Este colectivismo económico, liberal e a-estadual quer evitar um duplo perigo de um capitalismo integrante e de um colectivismo integral.
A democracia política federativa é o complemento antinómico da democracia económica mutualista. Primeiramente, equilibrar contraditoriamente o social organizado e o estadismo descentralizado para integrar o aparelho estadual numa nação composta de regiões auto-administrando-se e auto- associando-se numa república federal; de seguida, formar entre grupos de nações federativas das confederações Realistas, que estabelecerão entre si os acordos mais largos e mais soltos: tal é a dupla negociação do federalismo e do confederalismo político. Quatro regras de acção partindo: a auto-administração dos grupos de base, a federalização destes grupos, a criação de repúblicas federativas, a constituição de confederações.
Nos grupos de base, a prioridade é dada à região, óptimo território para se auto-administrar e elo entre nações e internações. Para a França, Proudhon exige “a constituição de doze grandes regiões provinciais administrando-se elas mesmas e garantindo-se umas às outras”. O governo federativo não assume “mais que um papel de instituição de criação, de instalação, o menos possível de execução”. Este regionalismo conjuga-se com um economista e termina numa organização regional e sócio-profissional do sufrágio universal (Câmara das regiões, Câmara das Profissões) e uma divisão dos poderes originais (poder executivo regionalizado e descentralizado, poder arbitrário e competência económica, poder consular de carácter próspero, poder de ensino completamente autónomo). O confederalismo internacional é uma extensão do federalismo nacional. Desde 1863 Proudhon prevê toda a organização política e económica de uma Europa confederalista: agência, conselhos, justiça, orçamentos confederais, marcha comum (“liberdade das trocas e taxa de compensação”, “liberdade de circulação e de residência”). Mas esta marcha comum incluí a socialização mutualista das economias confederadas.

2) Uma descendência oposta
Influências
No dia seguinte à morte de Proudhon, a sua doutrina espalha-se por toda a Europa. Os seus artigos de jornais são passivamente lidos nos meios populares, dos livros tais como a sua Primeira Memória (“este manifesto científico do proletariado francês”, Marx), sua Justiça (“um dos livros mais importantes do século XIX”, H.de Lubac), sua capacidade política (“este catecismo do movimento operário francês”, Gurvitch) fizeram um chefe de fila do socialismo europeu. Na Inglaterra, “Proudhon constitui um sustento de todo encontrado” (Engels a Marx, 18 Dezembro de 1850). E de John Watt a Sidney e Beatrice Webb, G.O.H.Cole, H.Laski e G.Woodcock, compreende-se a filiação muito pouco conhecida entre o proudhonismo e trabalhismo. Sobre o conteúdo, os seus livros, depressa vendidos, estão traduzidos em alemão, espanhol e russo. No seu prefácio de 1890, no Manifesto do Partido comunista, Engels aponta explicitamente o entendido desta obediência proudhoniana. O proudhonismo impregna em Itália, com Ciccoti e o seu federalismo político, em Espanha com os grupos da célebre Revista branca, na Bélgica com o socialismo de um César de Paepe e de um Emile Vanderwelde, na Alemanha com Karl Grün, M.Diehl, Arthur Mulberger, Edward Bernstein, e o sociólogo F.Oppnheimer. Mas é na Rússia que a doutrina proudhoniana conhece a sua difusão mais larga e uma celebridade extraordinária graças a Herzen e aos seus amigos. O populismo educativo de um Lavrovi o anarquismo de um Bakounine, de um Kropotkine reclamarão o pensamento de “ilustre e heróico socialista” (Bakounine). E a fascinação de Tolstoi para com a pessoa, as ideias, o estilo de Proudhon fará receber textualmente títulos, frase e temas políticos e filósofos (Guerra e paz, O que é a arte? etc.).
A influência determinante do pensamento de Proudhon sobre Marx é de imediato plenamente colocação na luz. “Marx não seria possível sem Proudhon” (Gurvitch). “Proudhon tem exercido sobre Marx uma influência constante. É na disciplina e no continuador de Proudhon que ele tem empreendido em 1844 o que se tornará a tarefa exclusiva da sua existência […]. O mestre morreu mas existe um instigador”. (M.Rubel). Marx disse que a impressão extraordinária que fizeram sobre ele sobre os primeiros escritos do “pensador mais corajoso do socialismo francês” (1842); A Sagrada Família (1845) contém uma verdadeira apologia de Proudhon que lá é reconhecido como mestre do socialismo científico, pai das teorias do valor-trabalho e da valorização, e A Ideologia alemã (1846) alugará o poder da sua dialéctica séria como “ensaio de dar um método pelo qual o pensamento independente é subsituído pela operação do pensamento”. Em Maio de 1846, Marx escolhe Proudhon como correspondente francês da “rede de propaganda socialista” que ele organiza. Mas, na sua carta de aceitação, Proudhon, sua primogénita de dez anos, dá-lhe conselhos prevenindo-o contra o dogmatismo autoritário, o romantismo revolucionário e o espírito de exclusão, nefastas à causa socialista. Impressionado, o jovem Marx rompe com Proudhon, e imediatamente a sua admiração da disciplina transforma-se num rancor obstinado e numa espécie de fascínio negativo (Miséria da filosofia, 1847).
Marx reencontrará a influência proudhoniana na Primeira Internacional dos trabalhadores e na Comuna de Paris. Como o sublinham com objectividade os historiadores marxistas, “a Internacional parisiense, próxima de Comuna, é maioritariamente proudhoniana”. (J.Bruhat, J.Doutry, E.Tersen, A Comuna de 1871). Quando a Comuna é proclamada, “entre os trinta internacionais eleitos, perto dos dois terços podem ser considerados como proudhonianos” (idem). O programa positivo e pacífico da Comuna é claramente proudhoniano, e G.Gurvitch irá até escrever: “à excepção do Comité da Saúde Pública” e das medidas terroristas preconizadas pelos “jogadores”, “todas as medidas administrativas, económicas e políticas se inspirarão em Proudhon”. Depois da Comuna, Gamnetta reivindicará o pensamento de Proudhon, enquanto que os partidos socialistas de Brússia e da Alemanha retomarão os seus temas essenciais. A unificação do partido socialista em 1905 fará aparecer o “jaurèssisme” como o discípulo autêntico do proudhoninismo.
Por altura da revolução russa, os proudhonianos terão uma influência determinante sobre a formação dos soviets de base, depressa suprimidos sob a pressão de Estaline e de Trotski. Como “um dos organizadores dos soviets russos de 17”, Gunitch transporta este ”testemunho pessoal directo: os primeiros soviets russos estavam organizados pelos proudhonianos […] que vinham dos elementos de esquerda do Partido socialista revolucionário é […] da social-democracia […]. A ideia de revolução pelos soviéticos de base […] é […] exclusivamente proudhoniana”. Mais perto de nós, depois dos revolucionários alemães, húngaros, espanhóis, e os seus conselhos operários de inspiração proudhoniana, o socialismo jugoslavo coloca-se discretamente na escola de Proudhon (D.Guérrin, O Anarquismo).
Na França, de Jaurès aos nossos dias, todas as nuances do movimento socialista e dos democratas reformadores se reconhecerão neste socialismo liberal, este pragmatismo trabalhador e esta justiça ideo-realista originários de Proudhon. É que ele influenciará também, paradoxalmente, um certo catolicismo social através de Péguy: “Eu sou pela política de Proudhon” (L’argent Suite), Mounier (Anarquismo e personalismo, 1937), e dos artesãos essenciais da obra actual da Igreja Católica (H.de Lubac, P.Haubtmann, J.Lacroix). ele surge igualmente como um grande antepassado do sindicalismo. Autonomia operária, federalismo profissional, separação da auto-gestão: todas estas ideias força são passadas na herança sindicalista com os proudhonianos E.Varlin, F.Pelloutier, V.Griffuelhes, A.Sorel, L.Jouhaux, fundadores, teóricos e praticantes do sindicalismo francês.

DAS CORRENTES ANTINÓMICAS
Seria artificial limitar as influências de Proudhon aos movimentos revolucionários e operários. Ele que se revelou “revolucionário mas não desordenado” acredita mais na acção organizada de um verdadeiro “reformismo revolucionário” que num romantismo desorganizado da “acção revolucionária”. Também, ao lado destes movimentos revolucionários reclamam-se unilateralmente de Proudhon, ele está constantemente a desnvolver uma corrente reformista e até mesmo uma corrente tradicionalista. A inflação das duplas antinomias da sua descendência contrastada parece bem sublinhar esta dualidade: sindicalismo e socialismo reformistas ou revolucionários, federalismo e regionalismo de direita ou de esquerda, trabalhismo e adeptos da participação, anarquismo e partidários da auto-gestão, etc. entretanto, nestas oposições muitas vezes corrompidas por estas falaciosas anexões, surgem, fazendo dijunções, os dois elementos sempre agrupados com o evolucionismo revolucionário de Proudhon: necessidade absoluta das transformações continuas (“a revolução permanente”) e recusa da violência arbitrária, sentido do tempo (“as revoluções duram séculos”). Desde logo, “anatemizadas de frente, as ideias proudhonianas [foram] filtradas pouco a pouco pela sociedade moderna” (Sainte-Beuve).
Este genitor reconhecido da sociologia moderna, do pragmatismo, do solidarismo, do personalismo, das teorias do direito social, preveu, há um século, a partida efectiva da civilização industrial. Ele pressentiu a divisão do mundo em blocos económicos e em blocos políticos, o risco de guerra total, a emancipação da Algéria e do Terceiro Mundo, a oposição entre países desenvolvidos e países sub-desenvolvidos, a revolução russa, o “culto das individualidades”, o “cominismo ditatorial”, a “guerra social”, a constituição de um capitalismo internacional, o sonho da China, o prodigioso desenvolvimento da legislação do trabalho, a “era das federações”, a sociedade de consumo. Ele inspirou a criação da sociedade das Nações, a Comunidade europeia, o regionalismo moderno, as correntes de reforma das empresas (participação, auto-gestão), da agricultura (cooperativismo, agricultura de grupo), da distribuição (cooperativas de consumação), do crédito (bancos populares, crédito mútuo) e uma grande parte das reformas pedagógicas modernas (universidades autónomas, promoção social, educação permanente, ligação universidades-empresas). E pode-se ainda evocar a sua influência sobre o realismo na arte, e sobre numerosos escritores, entre os quais Proust, Bernanos e Camus.
Hoje em dia, na França, o pensamento de Proudhon não tem organização oficial, mas ele suscita numerosos centros de reflexão e de acção, e de vigorosas admirações. Alguns universitários ou nomes políticos, e não menores, foram influenciarados. Uma reedição comentada nas suas obras completas foi empreendida, e alguns programas políticas e sindicalistas retomam actualmente os temas tipicamente proudhonianos.
Assim o pensamento pluralista de Proudhon adquere cada vez mais um singular poder de realização. Proudhon, cem anos antes da sua morte, parece escrever para o nosso futuro. Poder da personalidade, intensidade da obra crítica, realismo da obra positiva, multiplicidade e permanência das influências exercidas, tudo designa em Proudhon um novo génio.