DO ESTADO E DO SEU PODER
Há uma questão preliminar sobre o Estado que raras vezes é tida em conta, e, no entanto, se não se lhe dispensa suficiente atenção, resulta daí ficar desfocada toda a análise da natureza e do papel do Estado. Essa questão é que o Estado não é um objecto, que, como tal, o Estado não existe. O Estado representa um determinado número de instituições, as quais, na sua globalidade, constituem a sua realidade, ligando-se entre si como partes daquilo a que se pode chamar o sistema do Estado.
Não se trata de uma questão puramente académica. Considerar uma parte do Estado - geralmente o governo - como o próprio Estado, introduz um elemento de confusão na análise da natureza e da incidência do poder de Estado. E essa confusão pode ter vastas consequências políticas. Assim, se se julga que o governo que está no poder é de facto o Estado, pode também julgar-se que, quando se assume o poder governamental, se adquire também o poder de Estado. Tal crença, assente como está em inúmeras suposições quanto à natureza do poder de Estado, está repleta de riscos e sujeita a grandes desapontamentos. Para compreender a natureza do poder de Estado é necessário, primeiro que tudo, distinguir, e depois relacionar, os diversos elementos que constituem o sistema de Estado.
Não surpreende que governo e Estado pareçam por vezes sinónimos. É o governo que fala em nome do Estado. Era ao Estado que Weber se referia ao afirmar, numa frase célebre, que, para existir, "tem de reclamar o monopólio do uso legítimo da força física num dado território". Mas o Estado não pode reclamar nada; só o governo, ou os seus orgãos devidamente empossados, pode. Diz-se muitas vezes que os homens são leais, não ao governo que acontece governar em determinado momento, mas sim ao Estado. Mas o Estado, segundo este ponto de vista, é uma entidade nebulosa. E se por um lado os homens podem decidir ser leais ao Estado, é ao governo que lhes cumpre obedecer. Um desafio às suas ordens é um desafio ao Estado, em nome de quem só o governo pode falar, e por cujas acções ele, o governo, tem de assumir a responsabilidade última.
Isto não quer dizer, todavia, que o governo é necessariamente forte, quer em relação a outros elementos do sistema do Estado, quer em relação a forças exteriores. Pode, pelo contrário, ser muito fraco e constituir uma mera fachada para um outro destes elementos ou forças. Por outras palavras, o facto de o governo falar em nome do Estado e de estar oficialmente investido do poder de Estado, não significa que controle efectivamente esse poder. É importante saber até que ponto os governos controlam o Estado.
Um segundo elemento do sistema do Estado que exige uma análise é o elemento administrativo, que hoje em dia se estende para além dos limites da burocracia tradicional do Estado, e abrange uma grande diversidade de organismos, muitas vezes ligados a determinados departamentos ministeriais, ou gozando de maior ou menor grau de autonomia - sociedades anónimas públicas, bancos centrais, comissões reguladoras, etc. - e a quem diz respeito a administração das actividades económicas, sociais, culturais e outras, nas quais o Estado está agora directa ou indirectamente envolvido. O espantoso desenvolvimento do elemento administrativo e burocrático em todas estas sociedades, incluindo nas do capitalismo avançado, é sem dúvida uma das características mais nítidas da vida contemporânea. A relação das suas figuras mais destacadas com o governo e a sociedade é também de importância crucial para determinar o papel do Estado.
Oficialmente, o funcionalismo público está ao serviço do executivo político, é seu obediente instrumento, agente da sua vontade, na realidade, tudo se passa de forma diferente. Por toda a parte, o processo administrativo é inevitavelmente uma engrenagem do processo político. A administração é sempre política e também executiva, pelo menos aos níveis a que a execução política é relevante, ou seja, nas camadas superiores da vida administrativa. Não é necessariamente por desejo dos administradores que as coisas se processam assim. Ao invés muitos gostariam de nada ter que ver com política, e deixar as questões políticas para os políticos; ou então, como alternativa, despolitizar os problemas em estudo. Karl Mannheim observou que a tendência fundamental de todo o pensamento burocrático é transformar todos os problemas de matéria política em problemas de administração. (Ideologia e Utopia, 1952) Mas, na maioria dos casos, isto quer dizer apenas que as considerações, as atitudes e as suposições de natureza política se integram, conscientemente ou não, nos problemas da administração; logo, afectam a natureza do mecanismo e da acção administrativa. Funcionários e administradores não podem despir-se da sua roupagem ideológica ao aconselharem os seus mestres políticos, nem quando tomam decisões independentes, inerentes aos cargos que ocupam. É bem sabido que o poder que os altos funcionários públicos e outros administradores do Estado possuem, varia de país para país, de departamento para departamento, de indivíduo para indivíduo. Mas não há parte alguma onde estes indivíduos não contribuam directamente e de forma apreciável para o exercício do poder de estado. Se o regime é fraco, com rápidas mudanças ministeriais, logo sem possibilidade de orientação ministerial mais ou menos prolongada, os funcionários públicos avançam durante os períodos de vácuo político para o desempenho de um papel dominante na tomada de decisões. Mas mesmo quando o executivo político é forte e estável, os altos funcionários estão ainda em posição de desempenhar um papel importante em sectores críticos de decisão política, prestando conselhos que, por esta ou por aquela razão, os governos não podem facilmente ignorar. Por muita discussão que se trave em torno da natureza e alcance do poder burocrático destas sociedades, a gama de possibilidades terá de excluir a ideia de que os altos funcionários públicos podem ser reduzidos ao papel de meros instrumentos de política. Já foi notado que a separação absoluta dos sectores político e administrativo nunca foi muito mais do que simples ficção jurídica, com consequências ideológicas de vulto.
Algumas das considerações tecidas aplicam-se a todos os outros elementos do sistema de Estado. Aplicam-se, por exemplo, às forças armadas, às quais se podem acrescentar, por conveniência de momento, as forças para-militares, de polícia e de segurança, que constituem o sector do sistema de Estado que é o principal responsável pela administração da violência.
Na maioria dos países capitalistas, este aparelho coercivo constitui uma força tentacular, de vastos recursos, cujos dirigentes são indivíduos de elevado estatuto e grande influência, não só dentro do sistema de Estado como na própria sociedade. Em parte alguma tem sido a inflação do aparelho militar mais acentuada, desde a segunda guerra mundial, do que nos Estados Unidos, um país então de orientação marcadamente civil. Este tipo de segurança interna, e não só nos Estados Unidos. Com efeito, nunca em nenhum outro país capitalista, salvo na Itália fascista e na Alemanha nazi, tinham tantos indivíduos prestando tão grande número de serviços policiais e repressivos.
Seja qual for o país, a posição constitucional oficial dos elementos coercivos e administrativos é servir o Estado servindo o governo no poder. Em contrapartida, não é dever constitucional oficial dos juízes, pelo menos nos sistemas políticos do tipo ocidental, servir os objectivos dos seus governos. Eles são constitucionalmente independentes do executivo político e estão protegidos pela segurança inerente aos seus postos, e por outras garantias. O conceito de independência judicial compreende de facto não só a isenção de responsabilidade dos juízes é em relação ao executivo político, como ainda o seu dever activo de proteger o cidadão contra o executivo político ou os seus orgãos, e de agirem como defensores dos direitos e das liberdades dos membros da sociedade face ao Estado. Deve-se ver as diferentes interpretações destes deveres do poder judicial. Seja como for, o poder judicial é parte integral do sistema do Estado, podendo afectar, por vezes profundamente, o exercício do poder de Estado.
O mesmo se poderá dizer, em maior ou menor graus, de um quinto elemento do sistema de Estado, nomeadamente, as várias unidades de governo sub-central. Este constituí, num dos seus aspectos, um prolongamento do governo e da administração central, como que as suas antenas ou tentáculos. Nalguns sistemas políticos não têm praticamente qualquer outra função. Nos países de capitalismo avançado, por outro lado, o governo sub-central é algo mais que um mecanismo administrativo. Além de serem agentes do Estado, esta unidades do governo têm desempenhado tradicionalmente outra função. Têm sido não só os canais de comunicação e administração do centro para a periferia, como também a voz da periferia, ou de particulares interesses da periferia. Têm constituído um meio de suplantar particularismos locais e ao mesmo tempo plataformas para a sua expressão, instrumentos e obstáculos ao poder central. Com toda a centralização de poder, que é uma característica importante nestes países, os orgãos sub-centrais de governo, particularmente em sistemas federais como os Estados Unidos ou Suíça, têm mantido estruturas de poder de jure, capazes portanto de afectar apreciavelmente a vida das populações que governam.
O mesmo se pode dizer quanto às assembleias representativas do capitalismo avançado. Mais do que nunca, elas giram em torno do governo, e, mesmo em países onde elas são, oficialmente, orgãos independentes do poder constitucional e político, as sua relação com o executivo político não é puramente crítica ou obstrutiva. Essa relação é tanto de conflito como de cooperação.
Não estamos perante um problema de divisão entre uma facção pro-governamental e outra-governamental. Ambas refletem este dualismo. É que os partidos da oposição não podem enveredar por uma falta de cooperação absoluta. Pelo simples facto de participarem no trabalho da legislatura, eles estão a ajudar os assuntos do governo. Este é um dos principais problemas que se põe aos partidos revolucionários. Entretanto nos organismos parlamentares existentes, vêem-se obrigados, por muito relutantemente que o façam, a participar das suas tarefas. Poderão pensar que é um preço que vale a pena pagar. Mas, ao ingressarem na arena parlamentar, esses partidos tornam possível um certo jogo político, o qual forçosamente se desenrola segundo regras que não foram eles a decidir.
Quanto aos partidos governamentais, não se pode dizer que eles apoiem incondicionalmente o executivo político, nem que lhe sejam inteiramente subservientes. Esses partidos incluem indivíduos que, em virtude da sua posição e influência, têm de ser persuadidos, estimulados, ameaçados ou subordinados.
É na execução constitucionalmente sancionada desta função de cooperação e de crítica que as desta função de cooperação e de crítica que as assembleias legislativas têm uma palavra a dizer no exercício do poder de Estado. Na realidade essa prerrogativa é mais limitada do que as assembleias frequentemente dizem. Todavia, essa função das assembleias legislativas não deixa de ter a sua importância, mesmo quando o executivo domina. O governo, a administração, as forças armadas e a polícia, o poder judicial, o governo sub-central e as assembleias parlamentares - estas são as instituições que formam o Estado. A sua interligação dá a forma particular ao sistema de Estado. É nestas instituições que assenta o poder de estado e é através delas que se faz sentir este poder. O poder pertence àqueles que ocupam as posições de chefia em cada uma delas - presidentes, primeiros ministros e seus colegas de gabinete; altos funcionários públicos e outros administradores do Estado; chefes militares, juízes do supremo tribunal; pelo menos algumas das figuras destacadas das assembleias parlamentares, embora elas possam ser as mesmas que ocupam posições de relevo no executivo político; finalmente, a grande distância, particularmente nos estados unitários, os dirigentes políticos e administrativos das unidades sub-centrais do Estado. Estas são as pessoas que constituem aquilo a que poderemos chamar a elite do Estado.
É evidente que o sistema de Estado não é sinónimos de sistema político. Este inclui muitas instituições, como por exemplo os partidos e os grupos de pressão, que são de grande importância no processo político, e afectam de forma vital o funcionamento do sistema de Estado. Altamente influentes são muitas outras instituições de modo algum "políticas" - as grandes sociedades anónimas, a Igreja, os orgãos de comunicação social, etc. Os indivíduos que dirigem estas instituições poderão ter poder e influência apreciáveis, donde a necessidade de integrá-las na análise do poder político nas sociedades capitalistas avançadas.
No entanto, se há muitos indivíduos que detém poder fora do sistema de Estado, poder esse que afecta consideravelmente o sistema, não se pode dizer que eles sejam os verdadeiros repositórios do poder de Estado. E se o objectivo é analisar o papel do Estado nestas sociedades, é necessário tratar a elite de Estado, que detêm poder de Estado, como uma entidade distinta e separada.
É particularmente necessário proceder assim ao analisar a relação entre o Estado e a classe economicamente dominante. O primeiro passo dessa análise é atentar no facto fundamental de que esta classe está envolvida numa relação com o Estado, a qual, nas condições políticas típicas do capitalismo avançado, não pode ser assumida como uma relação de chefe para agente. Poderá chegar-se à conclusão de que se trata de uma relação muito estreita e que os detentores do poder de Estado são, por inúmeras razões, os agentes do poder económico privado - que aqueles que detêm esse poder são também, por consequência, e sem pretender alargar indevidamente a semântica das palavras, uma verdadeira classe dirigente.
Foi isto que precisamente Proudhon, nos anos quarenta do século passado, determinou. Análises essas que ainda hoje, embora o capitalismo avançado utilize processos mais sofisticados, continuam válidas. Importa portanto, também aqui, um retorno a Proudhon.
Inédito, 1995
Há uma questão preliminar sobre o Estado que raras vezes é tida em conta, e, no entanto, se não se lhe dispensa suficiente atenção, resulta daí ficar desfocada toda a análise da natureza e do papel do Estado. Essa questão é que o Estado não é um objecto, que, como tal, o Estado não existe. O Estado representa um determinado número de instituições, as quais, na sua globalidade, constituem a sua realidade, ligando-se entre si como partes daquilo a que se pode chamar o sistema do Estado.
Não se trata de uma questão puramente académica. Considerar uma parte do Estado - geralmente o governo - como o próprio Estado, introduz um elemento de confusão na análise da natureza e da incidência do poder de Estado. E essa confusão pode ter vastas consequências políticas. Assim, se se julga que o governo que está no poder é de facto o Estado, pode também julgar-se que, quando se assume o poder governamental, se adquire também o poder de Estado. Tal crença, assente como está em inúmeras suposições quanto à natureza do poder de Estado, está repleta de riscos e sujeita a grandes desapontamentos. Para compreender a natureza do poder de Estado é necessário, primeiro que tudo, distinguir, e depois relacionar, os diversos elementos que constituem o sistema de Estado.
Não surpreende que governo e Estado pareçam por vezes sinónimos. É o governo que fala em nome do Estado. Era ao Estado que Weber se referia ao afirmar, numa frase célebre, que, para existir, "tem de reclamar o monopólio do uso legítimo da força física num dado território". Mas o Estado não pode reclamar nada; só o governo, ou os seus orgãos devidamente empossados, pode. Diz-se muitas vezes que os homens são leais, não ao governo que acontece governar em determinado momento, mas sim ao Estado. Mas o Estado, segundo este ponto de vista, é uma entidade nebulosa. E se por um lado os homens podem decidir ser leais ao Estado, é ao governo que lhes cumpre obedecer. Um desafio às suas ordens é um desafio ao Estado, em nome de quem só o governo pode falar, e por cujas acções ele, o governo, tem de assumir a responsabilidade última.
Isto não quer dizer, todavia, que o governo é necessariamente forte, quer em relação a outros elementos do sistema do Estado, quer em relação a forças exteriores. Pode, pelo contrário, ser muito fraco e constituir uma mera fachada para um outro destes elementos ou forças. Por outras palavras, o facto de o governo falar em nome do Estado e de estar oficialmente investido do poder de Estado, não significa que controle efectivamente esse poder. É importante saber até que ponto os governos controlam o Estado.
Um segundo elemento do sistema do Estado que exige uma análise é o elemento administrativo, que hoje em dia se estende para além dos limites da burocracia tradicional do Estado, e abrange uma grande diversidade de organismos, muitas vezes ligados a determinados departamentos ministeriais, ou gozando de maior ou menor grau de autonomia - sociedades anónimas públicas, bancos centrais, comissões reguladoras, etc. - e a quem diz respeito a administração das actividades económicas, sociais, culturais e outras, nas quais o Estado está agora directa ou indirectamente envolvido. O espantoso desenvolvimento do elemento administrativo e burocrático em todas estas sociedades, incluindo nas do capitalismo avançado, é sem dúvida uma das características mais nítidas da vida contemporânea. A relação das suas figuras mais destacadas com o governo e a sociedade é também de importância crucial para determinar o papel do Estado.
Oficialmente, o funcionalismo público está ao serviço do executivo político, é seu obediente instrumento, agente da sua vontade, na realidade, tudo se passa de forma diferente. Por toda a parte, o processo administrativo é inevitavelmente uma engrenagem do processo político. A administração é sempre política e também executiva, pelo menos aos níveis a que a execução política é relevante, ou seja, nas camadas superiores da vida administrativa. Não é necessariamente por desejo dos administradores que as coisas se processam assim. Ao invés muitos gostariam de nada ter que ver com política, e deixar as questões políticas para os políticos; ou então, como alternativa, despolitizar os problemas em estudo. Karl Mannheim observou que a tendência fundamental de todo o pensamento burocrático é transformar todos os problemas de matéria política em problemas de administração. (Ideologia e Utopia, 1952) Mas, na maioria dos casos, isto quer dizer apenas que as considerações, as atitudes e as suposições de natureza política se integram, conscientemente ou não, nos problemas da administração; logo, afectam a natureza do mecanismo e da acção administrativa. Funcionários e administradores não podem despir-se da sua roupagem ideológica ao aconselharem os seus mestres políticos, nem quando tomam decisões independentes, inerentes aos cargos que ocupam. É bem sabido que o poder que os altos funcionários públicos e outros administradores do Estado possuem, varia de país para país, de departamento para departamento, de indivíduo para indivíduo. Mas não há parte alguma onde estes indivíduos não contribuam directamente e de forma apreciável para o exercício do poder de estado. Se o regime é fraco, com rápidas mudanças ministeriais, logo sem possibilidade de orientação ministerial mais ou menos prolongada, os funcionários públicos avançam durante os períodos de vácuo político para o desempenho de um papel dominante na tomada de decisões. Mas mesmo quando o executivo político é forte e estável, os altos funcionários estão ainda em posição de desempenhar um papel importante em sectores críticos de decisão política, prestando conselhos que, por esta ou por aquela razão, os governos não podem facilmente ignorar. Por muita discussão que se trave em torno da natureza e alcance do poder burocrático destas sociedades, a gama de possibilidades terá de excluir a ideia de que os altos funcionários públicos podem ser reduzidos ao papel de meros instrumentos de política. Já foi notado que a separação absoluta dos sectores político e administrativo nunca foi muito mais do que simples ficção jurídica, com consequências ideológicas de vulto.
Algumas das considerações tecidas aplicam-se a todos os outros elementos do sistema de Estado. Aplicam-se, por exemplo, às forças armadas, às quais se podem acrescentar, por conveniência de momento, as forças para-militares, de polícia e de segurança, que constituem o sector do sistema de Estado que é o principal responsável pela administração da violência.
Na maioria dos países capitalistas, este aparelho coercivo constitui uma força tentacular, de vastos recursos, cujos dirigentes são indivíduos de elevado estatuto e grande influência, não só dentro do sistema de Estado como na própria sociedade. Em parte alguma tem sido a inflação do aparelho militar mais acentuada, desde a segunda guerra mundial, do que nos Estados Unidos, um país então de orientação marcadamente civil. Este tipo de segurança interna, e não só nos Estados Unidos. Com efeito, nunca em nenhum outro país capitalista, salvo na Itália fascista e na Alemanha nazi, tinham tantos indivíduos prestando tão grande número de serviços policiais e repressivos.
Seja qual for o país, a posição constitucional oficial dos elementos coercivos e administrativos é servir o Estado servindo o governo no poder. Em contrapartida, não é dever constitucional oficial dos juízes, pelo menos nos sistemas políticos do tipo ocidental, servir os objectivos dos seus governos. Eles são constitucionalmente independentes do executivo político e estão protegidos pela segurança inerente aos seus postos, e por outras garantias. O conceito de independência judicial compreende de facto não só a isenção de responsabilidade dos juízes é em relação ao executivo político, como ainda o seu dever activo de proteger o cidadão contra o executivo político ou os seus orgãos, e de agirem como defensores dos direitos e das liberdades dos membros da sociedade face ao Estado. Deve-se ver as diferentes interpretações destes deveres do poder judicial. Seja como for, o poder judicial é parte integral do sistema do Estado, podendo afectar, por vezes profundamente, o exercício do poder de Estado.
O mesmo se poderá dizer, em maior ou menor graus, de um quinto elemento do sistema de Estado, nomeadamente, as várias unidades de governo sub-central. Este constituí, num dos seus aspectos, um prolongamento do governo e da administração central, como que as suas antenas ou tentáculos. Nalguns sistemas políticos não têm praticamente qualquer outra função. Nos países de capitalismo avançado, por outro lado, o governo sub-central é algo mais que um mecanismo administrativo. Além de serem agentes do Estado, esta unidades do governo têm desempenhado tradicionalmente outra função. Têm sido não só os canais de comunicação e administração do centro para a periferia, como também a voz da periferia, ou de particulares interesses da periferia. Têm constituído um meio de suplantar particularismos locais e ao mesmo tempo plataformas para a sua expressão, instrumentos e obstáculos ao poder central. Com toda a centralização de poder, que é uma característica importante nestes países, os orgãos sub-centrais de governo, particularmente em sistemas federais como os Estados Unidos ou Suíça, têm mantido estruturas de poder de jure, capazes portanto de afectar apreciavelmente a vida das populações que governam.
O mesmo se pode dizer quanto às assembleias representativas do capitalismo avançado. Mais do que nunca, elas giram em torno do governo, e, mesmo em países onde elas são, oficialmente, orgãos independentes do poder constitucional e político, as sua relação com o executivo político não é puramente crítica ou obstrutiva. Essa relação é tanto de conflito como de cooperação.
Não estamos perante um problema de divisão entre uma facção pro-governamental e outra-governamental. Ambas refletem este dualismo. É que os partidos da oposição não podem enveredar por uma falta de cooperação absoluta. Pelo simples facto de participarem no trabalho da legislatura, eles estão a ajudar os assuntos do governo. Este é um dos principais problemas que se põe aos partidos revolucionários. Entretanto nos organismos parlamentares existentes, vêem-se obrigados, por muito relutantemente que o façam, a participar das suas tarefas. Poderão pensar que é um preço que vale a pena pagar. Mas, ao ingressarem na arena parlamentar, esses partidos tornam possível um certo jogo político, o qual forçosamente se desenrola segundo regras que não foram eles a decidir.
Quanto aos partidos governamentais, não se pode dizer que eles apoiem incondicionalmente o executivo político, nem que lhe sejam inteiramente subservientes. Esses partidos incluem indivíduos que, em virtude da sua posição e influência, têm de ser persuadidos, estimulados, ameaçados ou subordinados.
É na execução constitucionalmente sancionada desta função de cooperação e de crítica que as desta função de cooperação e de crítica que as assembleias legislativas têm uma palavra a dizer no exercício do poder de Estado. Na realidade essa prerrogativa é mais limitada do que as assembleias frequentemente dizem. Todavia, essa função das assembleias legislativas não deixa de ter a sua importância, mesmo quando o executivo domina. O governo, a administração, as forças armadas e a polícia, o poder judicial, o governo sub-central e as assembleias parlamentares - estas são as instituições que formam o Estado. A sua interligação dá a forma particular ao sistema de Estado. É nestas instituições que assenta o poder de estado e é através delas que se faz sentir este poder. O poder pertence àqueles que ocupam as posições de chefia em cada uma delas - presidentes, primeiros ministros e seus colegas de gabinete; altos funcionários públicos e outros administradores do Estado; chefes militares, juízes do supremo tribunal; pelo menos algumas das figuras destacadas das assembleias parlamentares, embora elas possam ser as mesmas que ocupam posições de relevo no executivo político; finalmente, a grande distância, particularmente nos estados unitários, os dirigentes políticos e administrativos das unidades sub-centrais do Estado. Estas são as pessoas que constituem aquilo a que poderemos chamar a elite do Estado.
É evidente que o sistema de Estado não é sinónimos de sistema político. Este inclui muitas instituições, como por exemplo os partidos e os grupos de pressão, que são de grande importância no processo político, e afectam de forma vital o funcionamento do sistema de Estado. Altamente influentes são muitas outras instituições de modo algum "políticas" - as grandes sociedades anónimas, a Igreja, os orgãos de comunicação social, etc. Os indivíduos que dirigem estas instituições poderão ter poder e influência apreciáveis, donde a necessidade de integrá-las na análise do poder político nas sociedades capitalistas avançadas.
No entanto, se há muitos indivíduos que detém poder fora do sistema de Estado, poder esse que afecta consideravelmente o sistema, não se pode dizer que eles sejam os verdadeiros repositórios do poder de Estado. E se o objectivo é analisar o papel do Estado nestas sociedades, é necessário tratar a elite de Estado, que detêm poder de Estado, como uma entidade distinta e separada.
É particularmente necessário proceder assim ao analisar a relação entre o Estado e a classe economicamente dominante. O primeiro passo dessa análise é atentar no facto fundamental de que esta classe está envolvida numa relação com o Estado, a qual, nas condições políticas típicas do capitalismo avançado, não pode ser assumida como uma relação de chefe para agente. Poderá chegar-se à conclusão de que se trata de uma relação muito estreita e que os detentores do poder de Estado são, por inúmeras razões, os agentes do poder económico privado - que aqueles que detêm esse poder são também, por consequência, e sem pretender alargar indevidamente a semântica das palavras, uma verdadeira classe dirigente.
Foi isto que precisamente Proudhon, nos anos quarenta do século passado, determinou. Análises essas que ainda hoje, embora o capitalismo avançado utilize processos mais sofisticados, continuam válidas. Importa portanto, também aqui, um retorno a Proudhon.
Inédito, 1995
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