Wednesday, January 24, 2007

PARA UMA DESOBEDIÊNCIA CIVIL

"Mas um governo em que domina sempre a maioria não pode basear-se na justiça, tal como os homens a entendem. Não será possível haver um governo em que não sejam as maiorias mas sim a consciência a decidir virtualmente do que está certo ou errado?"
A Desobediência civil - Henry David Thoreau

" Não importa verdadeiramente discutir se a liberdade é natural, provado que esteja ser a escravidão uma ofensa para quem a sofre e uma injúria à natureza que em tudo quanto faz é razoável."
Discurso sobre a Servidão Voluntária - Etienne de la Boétie

O objectivo fundamental da política não é perpetuar uma dada ordem política, mas proteger a vida humana e os direitos humanos fundamentais.
Desobediência civil refere-se a qualquer acto ou processo de desafio público a uma lei ou medida decretada pelas autoridades governamentais estabelecidas, sendo a acção premeditada e entendida pelos seus protagonistas como ilegal ou de legalidade controversa, e assumida e mantida em vista de fins públicos precisos, através de meios cuidadosamente escolhidos e limitados.
A noção de desobediência pressupõe a ideia de uma norma a ser transgredida; trata-se, caracteristicamente, de uma norma legal, mas será, em qualquer caso, pelo menos uma norma que algumas pessoas ligadas ao poder decretam como vinculativa, no sentido em que a sua transgressão levará a uma punição desta ou daquela natureza. A desobediência pode ser activa ou passiva; pode consistir em fazer o que é proibido ou em não fazer o que é exigido. Contudo, a não concordância é insuficiente; a acção ou não acção deverá ser abertamente declarada de modo a colocar-se como desobediência civil, no sentido que damos aqui a esse conceito. Por exemplo, deixar de votar num país onde o voto é uma obrigação civil; para tal, será necessário que se afirme em público que esse gesto visa discordar de determinada lei; o protagonista de desobediência civil tende caracteristicamente, embora de modo não necessário, a encorajar publicamente outros a que desobedeçam também.
O acto de desobediência terá de ser ilegal, ou pelo menos declarado ilegal por adversários dotados de poder, e o protagonista tem que estar consciente desse facto, para que a sua atitude seja considerada um acto de desobediência civil. Tenha-se em conta, por exemplo, a distinção entre objecção de consciência ao serviço militar e a desobediência civil nos países que permitem a isenção de outros serviços obrigatórios por motivos de consciência. O objector de consciência inicia uma acção de desobediência apenas se ciente e explicitamente objectar ao cumprimento do serviço militar num terreno não reconhecido pela lei, ou num país que não abra excepções por força de motivos de consciência.
Já sugerimos que os objectivos da desobediência civil têm que ser públicos e limitados. O fim proclamado não pode referir-se a um âmbito privado ou a qualquer interesse particular: deve, de uma maneira ou de outra, referir-se a uma concepção de justiça ou de bem comum. (O que não exclui, evidentemente, que os motivos de indivíduo que se compromete com uma prática de desobediência civil possam por vezes ser neuróticos ou estreitamente egoístas, tenha ele ou não consciência disso.) Mas os objectivos proclamados devem ser limitados, como já dissemos; não devem visar a abolição completa do sistema legal existente: é certo que os defensores de uma revolução não-violenta podem praticar também a desobediência civil, mas também eles, em cada momento, proclamam objectivos limitados e concretos de acção. Do mesmo modo, de acordo com o método aqui exposto, os objectivos proclamados não devem visar a destruição moral ou física dos adversários, embora, por vezes alguns riscos previsíveis possam ser tolerados. Os objectivos da desobediência civil devem ser potencialmente aceitáveis pelos que se encontram no papel de adversários, ainda que estes, para a generalidade dos seus contrários, sejam objecto de anátema no terreno psicológico.
Acima de tudo, os fins declarados da desobediência civil, devem ser formulados de modo a que surjam como moralmente legitimados perante as testemunhas da acção e a generalidade do corpo público. Há objectivos de formação no fulcro da maior parte das campanhas de desobediência civil, e esses objectivos nunca se encontram, de resto, totalmente ausentes. Se um sindicato viola a lei para alcançar alguns pontos de igualdade e justiça a favor dos seus membros, poderemos falar de desobediência civil, mas não o poderemos fazer se uma posição chave no sistema económico levar um sindicato a violar a lei com o objectivo de obter privilégios fora do razoável em troca do regresso à legalidade. Uma campanha de desobediência civil pode visar a destruição de privilégios considerados injustos, mas não a abolição do direito de igualdade à protecção legal de qualquer grupo já privilegiado e minoritário.
Os meios cuidadosamente escolhidos e limitados da desobediência civil são calculados de modo a garantirem a máxima eficácia na conquista dos fins visados e também um máximo de economia, reduzindo tanto quanto possível os custos da luta em termos de sofrimento e privações. Na realidade, Gandhi por vezes insistiu no valor de suportar ou assumir o sofrimento, mas sempre pretendeu evitar infligir sofrimento aos seus adversários ou a terceiros.
A desobediência civil pode ser distinguida da acção não-violenta. O último conceito exclui, por definição, as acções violentas enquanto o primeiro não o faz necessariamente, tal como aqui o definimos. Para alguns pacifistas, a desobediência civil parece assumir um compromisso de não-violência por parte dos adversários, e é eticamente superior a uma atitude mais pragmática acerca da utilização possível da violência. Aqui, porém, não se toma qualquer posição desse género. Meios cuidadosamente escolhidos e limitados, na nossa definição, são termos que se referem a meios racionalmente calculados para a conquista de fins limitados. Por numerosas razões, parece plausível que este cálculo racional normalmente sugira os mais aplicados esforços no sentido de evitar ou reduzir a violência. Os activistas de desobediência civil e os cientistas sociais deveriam interessar-se igualmente e a fundo pelas causas e consequências da violência e da não-violência perante situações de conflito social; a extensão deste tipo de conhecimento parede de importância decisiva para termos a possibilidade de um cálculo cada vez mais realista dos meios mais eficazes e económicos de uma campanha de desobediência civil e também para podermos determinar melhor os casos em que a campanha será ou não susceptível de êxito.
A democracia, tal como a conhecemos no Ocidente, tornou-se um instrumento, praticamente a toda a prova, de preservação do statu quo político e socio-económico. Sustento, por isso, que a transformação politicamente ordeira da sociedade se tornou impraticável a não ser na medida em que os cidadãos se vão libertando a si próprios da crença dominante segundo a qual a democracia se encontra já realizada, devendo as leis actuais ser obedecidas em conformidade.
A nossa única esperança, segundo creio, reside na educação - quer dizer na educação para a independência intelectual e política dos indivíduos. Sentimos cruelmente a falta de uma educação que capacite e encoraje cada jovem cidadão a pensar por si próprio acerca dos objectivos do governo ou do Estado e a julgar segundo critérios autónomos a medida em que o governo só merece ser apoiado depois de avaliado segundo estes critérios. E na medida em que prosseguir fins não legítimos ou empregar meios subversivos e de ameaça relativamente aos valores que um governo justo deve manter, a desobediência civil poderá tornar-se a resposta adequada sempre que os actos de protesto no quadro da legislação existente forem ineficazes ou se revelarem demasiado lentos. Ou poderá acontecer que a desobediência civil seja uma resposta errada. A minha tese é que um homem não se encontra formado em termos de responsabilidade política a menos de poder decidir isso por si próprio.
Os julgamentos de Nuremberg e a forte atenção suscitada pelo processo de Eichman em Jerusalém reforçam a convicção de que a autonomia da consciência individual é um bem vital no quadro da moderna civilização tecnológica e burocrática.
A "essência do governo totalitário e talvez a natureza de toda a burocracia, - escreve Hannah Arendtm na obra Eichmann in Jerusalem - é transformar os homens em meros funcionários e meras peças de engrenagem da maquinaria administrativa, desumanizando-os". Sempre que obedecemos a uma ordem emanda de cima, sem a avaliarmos criticamente em termos morais, há um Eichmann dentro de nós", escreve o autor de uma recente crítica do livro de H.Arendt, observando depois: "Eichmann não se encontrava nem intelectual nem moralmente pior equipado do que a maior parte das pessoas... a sua culpa era não se sentir moralmente responsável pelo o que o seu governo fazia. E a esse respeito estava longe de ser um caso único". (Jens Bjorneboe, Eichmann nos nossos corações, Oslo, 1965.)
A minha tese é a de que as nossas instituições de educação e formação devem tentar produzir homens e mulheres menos semelhantes a Eichmann do que ao seu contrário, o indivíduo revoltados de Camus. O rebelde, ou o defensor da desobediência civil como forma de luta contra a opressão, é para o autor destas linhas o modelo do cidadão responsável empenhado no desenvolvimento da democracia. Aquilo de que, pelo contrário, do meu ponto de vista, não temos qualquer necessidade é do tipo de cidadão, de resto hoje superabundante, que se mostra respeitador, dócil, cumpridor da lei, no quadro de uma vida inteiramente privatizada, e que não só é apontado como exemplo pelos textos cívicos das nossas mais altas instituições de ensino, como também assim figura na nossa cultura cívica profissional e na literatura ideológica correspondente.