Wednesday, January 24, 2007

O DIREITO, A COACÇÃO E A LIBERDADE


"As leis conservam autoridade, não porque sejam justas, mas porque são leis."
MONTAIGNE

"Cada força social tende a perturbar a ordem existente com o fim de criar novas regras."
G.RIPERT

Foi este artigo pensado e escrito tendo em conta que se está a proceder à revisão do código penal. O tipo de discussões que temos assistido na comunicação social, tem fundamentalmente a ver com a variação das penalizações, em que certas penas foram aligeiradas (para não sobrecarregar a estafada instituição prisional) e em que outras são redimíveis a multas. Pouco mais do que isso foi dito ou comentado. É importante ir um pouco mais longe.
O direito, forma específica da actividade dos homens em sociedade, exprime, através de normas de conduta, que são com muito mais frequência, imposições do que recomendações, a necessidade de conservar e desenvolver o organismo social assegurando uma certa ordem entre os seus elementos. As regras supõem a actuação de formas várias de coacção. A necessidade do direito, como meio de garantir a ordem, é em geral reconhecida de forma unânime.
Mas não existe uma ordem única: cada grupo, cada classe social, concebe a ordem que se adequa às suas aspirações; aquela que em dado momento existe é a resultante da correlação das forças sociais. Para além da ordem existente, há a que poderia existir e que aqueles que a pretendem instituir não conseguiram impor. A ordem de que se não gosta assimila-se à desordem, os homens no poder são, como se costuma dizer, perseguidos pela tentação de santificar a ordem estabelecida. Existe contudo uma escala de valores entre uma e outra ordem; os valores devem apreciar-se segundo juízos a formular de acordo com critérios que para nós podem ser libertários, de forma a exprimir juízos correctos acerca da várias ordens que se sucedem ou coexistem na história. Toda a transição de uma para outra ordem gera uma desordem momentânea.
Qualifica-se o direito de normativo porque é um sistema de normas; podia-se também chamá-lo correctivo, uma vez que prescreve o que se deve fazer ou prescreve, em parte pelo menos, o que se pode fazer.
Quando ordena o que deve ser, não entra forçosamente em contradição com o determinismo social, exige apenas que se faça aquilo que ordena, em vez do que se é tentado a fazer ou se faz mesmo efectivamente. A norma pode num preceito deixar-se arrastar pelo determinismo da sociedade e da natureza, ou pode, ao contrário, integrar-se nele para, segundo a fórmula de Bacon, dele retirar novos efeitos em harmonia com a sua finalidade que é o estabelecimento de uma ordem pública.
Num como noutro caso, é do que se deve fazer que se trata, pois, de qualquer modo, há sempre pessoas a pretenderem fazer o que lhes é proibido e a não fazer o que lhes é ordenado. E é por causa delas que a coacção surge em reforço da norma.
A coacção é essencial ao direito. Dizer, como é frequente, que o direito exprime a natureza das coisas é incorrecto. Se assim fosse exacto, não havia necessidade de promulgar leis, pois cada um seguiria, sem necessidade de prescrições, a sua inclinação natural. Ora, a lei muitas vezes está em contradição com a ordem das coisas e com os impulsos instintivos. Preferível seria por isso dizer que o direito partiu da lei natural e teve-a presente para se conformar com ela ou para se lhe opor, dando origem, neste último caso, à formação de uma "segunda natureza". Por exemplo nenhuma lei prescreve em princípio as relações sexuais, pois semelhante lei seria inútil, mas houve leis prescrevendo o celibato e outras proíbem o adultério, o incesto, a sedução de menores, etc.
São muito variados os meios de coacção, uns directos, outros indirectos. Para além da repressão penal, que é a forma mais "perfeita" de coacção, outras existem em diversas disposições, mesmo no campo do direito privado, as que ordenam penhoras, confiscos, proibições, nulidades, etc. A pessoa cujo direito é violado não dispõe hoje de meios de coagir directamente o autor da violação, já que em princípio ninguém pode fazer justiça a si nem por si próprio; é obrigado a dirigir-se ao poder do Estado, que é quem detém o monopólio da coacção jurídica.
Os actos de execução material e as outras formas de coacção valem, antes de mais, pela sua eficácia e esta depende da relação entre a força que coage e a que está exposta à coacção. A coacção actua com rigor mas esta, obviamente, pode sê-lo da norma e, neste caso, pode até não ser ilegal se não for contrária à norma, como no caso da coacção económica que se manifesta no exercício da greve.
As modalidades e os processos da sua aplicação diferem segundo a época, o lugar, as civilizações. Mas, gradualmente, a coacção exercida directamente, fisicamente, sobre a pessoa humana atenuou-se em parte, não sem frequentes retrocessos. Durante séculos praticou-se a tortura em larga escala. Antigamente o devedor remisso tornava-se propriedade do credor que podia dispor dele como bem entendesse, e só mais tarde se estabelece a prisão por dívidas. E, passo a passo, substitui-se a execução sobre a pessoa pela execução sobre os bens. Mas ainda nos nossos dias reaparecem, aqui e ali, formas bárbaras de coacção em regiões onde o domínio do mais forte não conhece limites, caso das colónias, ou onde a corrupção e a degeneresgência políticas são o resultado de guerras injustas, caso da Espanha depois da guerra civil e caso dos países ocupados pelo hitlerismo, ou ainda da guerra contra a independência argelina, etc. Semelhantes formas de coacção revoltam a tal ponto a consciência pública que os governos que as aplicam ou as consentem aos seus agentes, se esforçam por dissimulá-las, os juízes lançam pudico véu sobre os factos que lhes são relatados dando provas de uma curiosidade espantosamente embotada.
São as regras de direito que instituem a estruturam a coacção, a qual garante o respeito do direito, de quem é, de certo modo, o tutor, pois a sua organização requer uma técnica. A coacção é, como se disse, domínio exclusivo do poder, dela não participam os indivíduos nem os grupos, o seu exercício está-lhes vedado, sob pena de entrar na via de facto ou no abuso do direito, excepto em determinados casos, por exemplo, a legítima defesa, a retenção, o direito de greve, a suspensão patronal, o poder paternal, etc. E até esses casos excepcionais de coacção privada estão sujeitos ao controle da autoridade judicial; o mesmo acontece, aliás, com a coacção exercida pelos serviços de polícia, embora neste caso ela seja, com demasiada frequência, tímida.
O direito, porque reclama a coacção, não tem de se ocupar expressa e directamente da liberdade, a qual, na realidade, é uma necessidade fundamental do homem, que não tem de ser decretada, fruísse espontaneamente sem se estar à espera de um texto que a permita gozar; isso seria, como se diz, arrombar uma porta aberta. A liberdade não se decreta, decreta-se é a abolição ou a redução da coacção ou, ao contrário, o seu reforço. As liberdades que se gozam são, pois, um domínio que por natureza prescinde das normas jurídicas, que apenas delimitam ou cerceiam partes desse domínio. Publicam-se textos jurídicos que condicionam ou suprimem certas liberdades; assim, no direito penal, a lei não proclama liberdade alguma, o seu objecto é regulamentar e proibir, na sua extensão ou nas suas modalidades, as liberdades que dão lugar a acções ou abstenções que as autoridades julgam prejudiciais ou intoleráveis.
Mas a liberdade, como princípio, tem aparentemente necessidade de ser decretada quando uma colectividade humana passa do estado de dependência à emancipação ou à independência. Também se sente necessidade de proclamar a liberdade em constituições que inauguram um novo regime político, proclamação essa de carácter psicológico e moral.
A coação, quando suprime ou limite certas liberdades excessivas ou injustas, pode, por repercussão, vir a criar liberdades opostas. Existe uma relação estreita formada pela acção recíproca da coacção e da liberdade; isso é o resultado de a liberdade ao longo da história não ter sido atributo de todos, mas privilégio de uma minoria. Nas cidades democráticas da antiguidade existia liberdade económica e por vezes liberdade política e jurídica, mas apenas os poderosos, os senhores, tinham acesso a essas formas de liberdade. As plebes lutaram para conquistar a liberdade política e conseguiram a sua proclamação em declarações incluídas nas leis constitucionais, mas a realização concreta desta liberdade encontrou um obstáculo precisamente na liberdade económica. Essas lutas, numerosas ao longo do tempo, não obtiveram geralmente resultados apreciáveis.
Quando a revolução francesa veio proclamar a liberdade e a igualdade dos homens destruindo as hierarquias opressivas do regime feudal, o que se pretendia era a liberdade para a burguesia, ou seja, a faculdade autónoma da cada um agir. Verificou-se que esta liberdade, entendida de forma abstracta e incondicional, era sobretudo a liberdade do comércio e da indústria e eram os mais audaciosos ou afortunados, ou mesmo os que menos escrúpulos tinham, que acabavam por adquirir posições económicas dominantes e por esmagar os que ficavam na sua dependência. Além disso, nem todos os cidadãos podiam ter acesso à liberdade política, o direito de sufrágio era restricto a uma minoria. A partir desta época travam-se lutas pela extensão dos direitos políticos e também pela obtenção dos direitos sociais.
E pouco a pouco todos vêm a beneficiar das liberdades políticas, e assim se entra no período do estado dito liberal; mas até este se mostrava muito mais favorável aos poderosos do que à grande massa do povo, e tomam-se precauções para que a liberdade não exceda determinados limites que, mais tarde, acabaram por ser transpostos. Mas, graças à liberdade política, a coacção atenuou-se no campo social. A liberdade social, arrancada com grandes lutas, veio permitir, em certa medida, atenuar a debilidade da liberdade política pela liberdade social, com o direito à greve, as comissões de empresa, os delegados do pessoal, etc. Formam-se organizações de massa que permitem ao povo exercer uma pressão cada vez mais forte sobre o poder do estado, de maneira a alcançar a instituição de um controle legislativo e regulamentar da liberdade de exploração económica. O direito social encerra inegávelmente uma parte cada vez maior de coacção sobre a classe superior, o que não significa, naturalmente, que essa coação actue sempre na altura própria e em todos os domínios onde a sua necessidade se faz sentir, sem hesitações. Esta situação mantém-se e desenvolve-se unicamente pela luta social e sob o signo do compromisso.
Por este breve esboço já nos podemos aperceber da acção recíproca, no direito, da coacção e da liberdade, segundo a qual a coacção exercida contra todos os que se arrogaram a liberdade de oprimir, liberta, na medida em que se exerce, aqueles que são oprimidos. Os fracos e os oprimidos só podem, pois, libertar-se coagindo os poderosos que os oprimem, coacção essa que pode ir até ao ponto de os desapossar de tudo aquilo em que se baseia o seu poder e o seu domínio.
Decerto que se pode admitir que a educação cívica, a pressão da opinião pública podem, em certa medida, favorecer o respeito da liberdade de outrem, mas não podem para esse efeito excluir a coacção, à qual têm de acrescer. Pode dizer-se numa fórmula genérica que, enquanto cada um não for capaz de se coagir a si próprio, permanece indispensável um sistema de coacções jurídicas.
O direito garante sempre uma determinada ordem, que não é a mesma, contudo, em todos os tempos e lugares. Uma ordem dada pode ser substituída por uma ordem diferente, de acordo com as relações entre grupos e classes. Mas, essencial a todos, é que se garanta um mínimo de ordem, seja ela qual for. Deve-se ainda acrescentar que o direito, embora seja o principal, não é o único factor de garantia da ordem, pois outros concorrem para o mesmo fim, tais como a moral e o civismo.
Na hipótese, que nós libertários desejamos que se torne realidade, em que a ordem nasce de forma espontânea, ou seja, o organismo social estabelece entre os seus membros relações harmoniosas de comunidade e de cooperação, e não mais de competição e de antagonismo, a coacção, como o direito, vai perdendo a razão de ser. A ordem resulta directamente da organização da comunidade e deixa de ser um objectivo atingido pela coacção jurídica, a ordem concilia-se com a justiça, (Proudhon) que é elevada a expoente das relações sociais.