PROUDHON E A CONDENAÇÃO DA CARIDADE
A oposição da imanência revolucionária à transcendência religiosa, vitória da Justiça toda ela humana sobre os dogmas revelados: eis o vértice da obra, a linha de facto que separa dois sistemas radicalmente opostos. As aplicações vão derivar em todos os domínios: em moral, em economia, em política nacional ou internacional.Daí resulta que pela sua doutrina da Justiça, Proudhon é o mais firme defensor do que se nomeou no seu tempo a moral independente (1), e do que se nomeia hoje em dia em termos de escola a moral laica, e de que é preciso chamar no sentido proudhoniano a moral racionalista ou humanista. Não se contenta de a defender, mas investe a fundo contra a sua rival. “ A intervenção duma autoridade exterior, natural ou sobrenatural, na ordem da justiça e como sanção da justiça, é destruidora da própria justiça. Noutros termos a justiça afirma-se e defende-se sózinha, ou ela não é”. (2) Nada mais que duma metafísica ou duma teodiceia não depende de outra ciência. Não podemos deduzi-la nem da higiene, nem da economia, nem do que hoje em dia chamamos a ciência dos costumes. Não depende que da consciência e do que Proudhon, em termos que iremos definir, chama “ a essência social” .(3) Se a Justiça é relativa e progressiva nas suas expressões históricas, enquanto realidade suprema é absoluta.Daí resulta ainda que, em virtude da Imanência, a Justiça se opõe directamente à virtude cardinal da Transcendência, que é a caridade. E isto porque a caridade humilha o homem, enquanto que a Justiça comanda respeitá-lo. A forma mais corrente desta humilhação é a esmola, mas Proudhon acrescenta a filantropia, a assistência, o crédito aos familiares pobres, todas as formas desta conspiração permanente contra o trabalho e a liberdade. Agarra-se sobretudo à justificação da caridade enquanto que ela responde aos desígnios da Providência. esta caridade, segundo os defensores da ordem estabelecida, “ é o fim dos desígnios da providência, a vocação do homem abastado, o complemento da harmonia do monde moral”. Proudhon insurge-se. O que o indigna “ nesta organização da Caridade providencial, é esta inquisição continuada, ultrajosa, das verdadeiras necessidades do pobre, que faz fugir todos aqueles que a caridade não marcou ainda com o ferro vermelho”. toda esta polícia administrativa é uma ofensa à dignidade humana.“ Nada de respeito pelo homem neste sistema: a religião da Providência matou-o. Dizem-me que é impossível de fazer de outro modo. pois claro! já o sei de resto: é justamente porque a beneficiência pública não se pode exercer sem esta polícia que amaldiçoo. Questão de respeito, questão de caridade: a vossa assistência é o pelourinho. (4)Esta condenação da caridade não se limita à assistência, estende-se ao sentimentalismo romântico, de essência “ femmeline”. Estende-se também ao socialismo fraternitário ou comunitário, que quer estender a toda a sociedade um princípio de dedicação que só vale para a família. Proudhon repulsa como contrário à Justiça todos estes impulsos mais ou menos místicos que não podem fornecer a base dum firme direito. Quer uma disciplina severa, viril, que não deixe alterar a distinção do direito e do ter, único critério do justo e do injusto. A devoção virá de seguida; mas, já ele tinha dito nas “Contradições”, “ constrangerem-me à devoção, é assassinarem-me”.Caímos deste modo, no seguimento de Proudhon, sobre a clássica oposição da Justiça e da caridade, que não é impossível acordar no plano da imanência. Não é muito contestável que uma certa concepção demasiada estrita e jurídica da justiça pode parecer um pouco fria, em relação ao amor fecundo e generoso. Mas o próprio amor, esta fonte de vida, pode ser, como a força, um elemento arbitrário se não disciplinado por uma lei, e esta lei é a da Justiça. O amor e a justiça são portanto indissociáveis, como impulso vital e a razão que faz o traçado, é o que reconhece Proudhon quando acorda “ que o princípio da caridade tem por consequência necessária de produzir o princípio da justiça” (5) Acrescentava, é verdade, que no termo do progresso a justiça substituíria o amor; mas como não haverá termo no progresso não haveria fim à purificação crescente do amor pela justiça. e, se se objecta, como os teólogos da transcendência, que a lei do amor é de essência divina, e só a podemos conhecer penetrando “ no domínio misterioso da relação do homem com Deus”, (6) embatemos com um acto de fé previamente falso do qual todo o diálogo se torna impossível.NOTAS1 - Pillon, algumas vezes duro com Proudhon, o mesmo que Renouvier, reconheceu o papel da influência proudhoniana na elaboração da moral independente.2 - Justiça, notas e esclarecimentos ao primeiro estudo I, 449.3 - Carta a Cournot, Correspondance, VII, 370.4 - Justiça, sexto estudo, III, 113-114.5 - Justiça, sexto estudo, III, 36.6 - H. de Lubac, Proudhon et le Christianisme, p. 235.
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