Mudar a Sociedade!
Agir, é sempre pensar; dizer, é fazer.
Proudhon
Se pensarmos que a história da humanidade nos permite não só ter consciência e reflectir sobre ela, então todo o seu passado, presente e futuro podem ser objecto de reapropriação e vivificação dos valores societários que estiveram sempre presentes na luta pela emancipação da espécie humana. Que a futura sociedade se denomine anarquista, autogestionária ou socialista libertária não é determinante, porque isso é uma mera questão formal. Fundamental é que a aprendizagem social e o processo de aculturação da vida quotidiana dos indivíduos e grupos seja estruturado por relações sociais assentes na democracia directa, na participação, na partilha e na decisão sobre todos os mecanismos da realidade societária. O fundamental é que a prática e os princípios que a alimentam sejam estruturados pela liberdade, fraternidade, igualdade, criatividade, espontaneidade e autonomia entre indivíduos e grupos que integrarão as diferentes comunidades locais e regionais da sociedade mundial futura.
Nesta assunção, todo e qualquer projecto de emancipação social nunca poderá consumar-se na base do pressuposto da luta de classes polarizada à volta do proletariado e da burguesia. As contradições e antagonismos que atravessam a sociedade capitalista actual não se confinam exclusivamente às relações sociais de produção e à propriedade privada dos meios de produção circunscritos a actividade económica. A natureza opressiva e exploradora do capitalismo incide sobre vários grupos sociais que sobrevivem com base no trabalho assalariado. Se pensarmos ainda na destruição da natureza, na miséria e na alienação do ser humano, somos constrangidos a centrar a problemática da emancipação social no indivíduo. Este, nas suas múltiplas dimensões, ao ter-se transformado num objecto de produção e de consumo de bens e de serviços de forma alienada, ao tornar-se ainda num ser impotente e espectador da miséria, da guerra, do crime e do desemprego que grassa no mundo, independentemente da sua condição socio-económica, cultural e política, cada indivíduo, enquanto sujeito de revolta e lucidez, tenderá a integrar os movimentos sociais que aspiram realizar a revolução social.
Evidentemente que os movimentos sociais que resultam de uma acção colectiva pautada pela conflitualidade social nunca poderão consumar na prática a revolução social, se utilizarem os mesmos meios e objectivos que são desenvolvidos pelos partidos e sindicatos actuais. Estas organizações são enformadas por estruturas e funções assentes na divisão social do trabalho e na hierarquia da autoridade. Tal como as empresas ou outras instituições e organizações congéneres da sociedade capitalista, a concepção e decisão dos objectivos dos sindicatos e dos partidos são determinados pelas cúpulas dirigentes, controlando e integrando a acção colectiva das suas bases militantes. A emergência de qualquer tipo de desvio por parte destes será duramente reprimida por aqueles que detêm o poder. Hoje, não são mais do que fábricas de gestão social que procuram liderar as reivindicações e todos os tipos de conflitual idade social no sentido da sua integração nos padrões de manutenção da estabilidade normativa do capitalismo. Enquanto burocracia, exerce o poder nas suas instituições e numa parte do aparelho de Estado. Tendo proventos económicos, sociais e políticos, não têm interesse em liderar os movimentos sociais que põem em causa o capitalismo. Se enveredassem por este tipo de acção, poriam em risco a razão de ser da vocação actual dos sindicatos e partidos.
Denota-se que a estruturação de qualquer tipo de acção colectiva emancipalista que pretenda superar a acção dos partidos e sindicatos deve primar por relações sociais sustentadas pela democracia directa, a espontaneidade, a criatividade, a autonomia e a liberdade individual dos indivíduos e grupos que nela participam. São relações sociais baseadas no interconhecimento, sem chefes nem subordinados, sem uma divisão social do trabalho nem autoridade hierárquica subordinada aos ditames da dominação.
É por essa razão que se torna difícil sustentar que os oprimidos e os explorados foram sempre vítimas das traições dos seus dirigentes. Houve uma pequena parte do proletariado que não se vergou ao socialismo real. Mas, ao fazê-lo, foram fuzilados perante a indiferença dos seus iguais. De tudo isto se deduz que a questão da sua emancipação não se resume a um determinismo polarizado no desenvolvimento das forças produtivas e na economia.
É necessário chegar à conclusão de que o proletariado não é mera identidade dicotômica mecanicista. Ele não é somente uma classe social que é explorada e oprimida e que tem por missão histórica realizar o socialismo. É também uma massa humana indiferenciada que produz e consome segundo os seus desejos e os desejos da classe dominante. É igualmente uma singularidade social que, na sua existência real e concreta, assassina, explora, oprime quando exerce o poder e a autoridade. É na globalidade da vida quotidiana do proletariado que se pode compreender o grau de identidade ou não da sua identidade para com a sociedade que o produz e reproduz.
Mas, se podemos afirmar que a sociedade e as instituições produzem e reproduzem os indivíduos proletarizados, também podemos afirmar que são as diferentes singularidades dos indivíduos que produzem e reproduzem esta mesma sociedade e instituições. Só pela interacção indivíduo/sociedade e sociedade/indivíduo se pode compreender a natureza dos próprios indivíduos e da própria sociedade.
Parto do princípio de que as sociedades não se formam, nem desaparecem, nem evoluem a partir de um esquematismo determinista, fundamentado no que quer que seja. Estes pressupostos levam à exigência de que as actuais características alienantes, massificadoras, exploradoras, opressivas e embrutecedoras do capitalismo e do socialismo real sejam abolidas. Para realizar esta tarefa o Estado terá que ser extinto, assim como todas as instituições que produzem e reproduzem a miséria existencial dos indivíduos, o que implica a extinção simultânea do proletariado, da burguesia e de todas as classes sociais. Para além disto, é necessário abolir as relações sociais de produção que têm por base a produção de lucro e de mercadorias.
Digamos que, em face às contingências negativas que os modelos sociais referenciados apresentam em relação aos objectivos emancipalistas do género humano, não podemos continuar a evoluir no mesmo sentido. Porque penso que a espécie humana só tem persistido socialmente com base na solidariedade, no altruísmo, no amor e na liberdade; só desenvolvendo estes factores permitir-se-á a sociabilidade e a socialização humana conducente à formação de uma sociedade emancipada.
Evidente que tenho de admitir a outra vertente da questão. Na diversidade de cada singularidade humana também existe a agressividade, o egoísmo, a violência, que se traduzem socialmente na morte, exploração, opressão, miséria. No entanto, mesmo que a condição humana persista com uma predisposição para a morte, para a violência, para o egoísmo, e para a dominação, esta realidade traduzir-se-á em relações sociais institucionalizadas nos binómios dominador/dominado e explorador/explorado. Não obstante estes condicionalismos, é possível inverter esta realidade. Para isto é imprescindível desenvolver progressivamente uma ruptura individual e social, em termos teóricos e práticos, com os modelos sociais que servem de paradigma à escala universal.
Em primeiro lugar é necessário abolir as hierarquias e a autoridade ligadas aos esquematismos sociais. A diversidade e a singularidade de cada um devem ser exprimidas na sua autenticidade e liberdade. Segue-se que as leis e as instituições que regulamentarão toda a vida social, e a própria sociedade, devem exprimir-se a partir de uma acção relacional baseada na democracia directa. O poder dos indivíduos é imediato e tangível às acções sociais e institucionais do contexto em que estão inseridos. Nestas condições, não existe a necessidade de instituições ou de um Estado exterior à vida dos indivíduos. O poder passa a fazer parte integrante da sua vida quotidiana.
Em segundo lugar, os actuais modelos de produção e de consumo de riqueza social que produzem e reproduzem a sociedade têm que ser totalmente transformados. É necessário abolir a sua lógica irracional baseada na destruição da natureza e da espécie humana. O desperdício de energias, a morte, a guerra e o trabalho assalariado, a dilapidação da natureza e a alienação dos indivíduos são as expressões mais significativas dos modelos de produção e de consumo.
Só invertendo a lógica produtivista e consumista das sociedades em que estamos inseridos se pode encontrar um novo equilíbrio racional entre o género humano e a natureza. Neste sentido, impõe-se a dinamização de uma grande revolução cultural, com incidência nos planos ético e filosófico. Este objectivo deve visar a abolição das relações sociais de produção baseadas no lucro, agiotagem, embrutecimento e destruição humanas e, sobretudo, destruir a expressão totalitária que as mesmas expressam em relação à produção e ao consumo de mercadorias. A alternativa que se poderá desenvolver deverá basear-se na lucidez e na criatividade dos indivíduos como seres naturais e seres sociais. Defendendo esta alternativa, não pretendendo iludir o conteúdo da historicidade que produziu e reproduziu o género humano. É evidente que os conhecimentos adquiridos e a memória histórica das sociedades não podem ser abolidos mecanicamente. Pode-se, no entanto, inverter as lógicas irracionais dos actuais sistemas sociais, mantendo o que se identifica com a afirmação positiva do ser social e do ser natural.
Em terceiro lugar, está demonstrado à saciedade que os partidos, sindicatos e outras instituições que assumem a defesa dos interesses do proletariado não têm por função dinamizar a sua emancipação. O seu desenvolvimento histórico tem levado à integração e ao controle dos indivíduos, nos parâmetros da estabilidade normativa do capitalismo. Por outro lado, as estruturas sindicais e partidárias transformaram-se em autênticas “fábricas de gestão” social. A sua acção consiste em ajudar a produzir e a reproduzir a mercadoria força de trabalho como existe na sociedade capitalista. A dicotomia polarizada em dirigente/dirigido; o que sabe/o que não sabe; o que pensa/o que não pensa; o que concebe/o que executa, etc..., tipificam a realidade capitalista.
Pelas razões evocadas, os partidos e sindicatos de modo algum podem assumir as funções emancipalistas do proletariado. Pela sua identificação e integração no sistema social vigente ( e isto não obstante a sua oposição ao poder instituído), devem ser abolidos numa sociedade emancipada.
Em síntese, é na articulação sistemática e global dos três factores alternativos que a humanidade poderá estruturar progressivamente a sua emancipação. E se, na prática, este projecto societário tem somente um carácter hipotético e seja difícil de realizar, nos planos ético e filosófico a sua sistematização é passível de ser realizada com proficuidade. Que se chame “socialista libertária”, “socialista autogestionária” ou “anarquista”, pouco importa. Enquanto alternativa social, só poderá subsistir positivamente se resultar de um processo de transformações teórico-práticas no sentido da identidade progressiva entre o indivíduo natural e o indivíduo social.
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