Saturday, February 24, 2007

Cidadãos e Cidadania

Hoje em dia três quintos do globo são governados por qualquer forma de despotismo, tirania, oligarquia ou regimes militares, de tipo dos tratados por Platão na República e nas Leis, como sistemas alternativos.
Não é claro que o sonho iluminado da representação popular e da delegação de poderes consiga prevalecer na complexidade económica, nas formas e nas pressões que nos esperam no próximo século. O debate acerca de como deve ser a Pólis está hoje no centro da nossa consciência e orientamo-lo, por várias formas, nos termos da concepção grega da incerteza política.
A democracia é uma ideia antiga, mas um conceito novo. Foi o século XX que consagrou a democracia, proclamando-a como principal conceito de governo um pouco por todo o lado. Mas na Suíça a democracia remonta ao século XIII. Após um banquete comemorativo, todos os cidadãos elegíveis do cantão se reúnem para decidir acerca da condução da administração no ano seguinte. Perpetua-se o espírito de Guilherme Tell. Para quase todos nós a democracia tornou-se uma formalidade impessoal, uma questão de máquinas de votos e de escrutínios secretos. Para estes Suíços a ocasião não é apenas de comemoração mas também de escolha. Mas os cidadãos de Saden Obenwalden têm razão para se sentirem satisfeitos pois aqui não é raro que os interesses da sociedade se sobreponham aos interesses do Estado.
Foi na Grécia que nasceu a democracia. Em Atenas no dia 16 de Junho de 1989 cerca de meio milhão de pessoas, mais de duas vezes e meia a população de Atenas da Antiguidade reuniram-se. Andreas Papandreou dirige-se pela última vez à população antes da votação. Normalmente passar-se-ão quatro anos até que as pessoas possam modificar a sua decisão. A Atenas do século V antes de Cristo era famosa pela discussão política. Mas esta manifestação de 1989 tem muito mais em comum com um jogo de futebol do que com um debate político. As pessoas dirigiram-se para Atenas em camionetas e comboios especiais. Não existe debate. Apenas apoio e a única voz individual que se faz ouvir é a do dirigente. Hoje, a discussão política é um discurso vertical. Os políticos e dirigentes falam por nós e para nós. Ocasionalmente podemos responder-lhes numa reunião pública ou através de cartas para os deputados ou para as Comissões Parlamentares mas trata-se de um discurso vertical e geralmente num só sentido. Em contrapartida os Gregos tinham uma discussão muito mais horizontal, de cidadão para cidadão, de grego para grego. A Assembleia não servia apenas para os estadistas falarem para os cidadãos mas, acima de tudo, para os cidadãos falarem entre si.
No dia 14 de Julho de 1989 comemora-se o dia nacional de França. Às armas cidadãos. Mas quem está armado não são os cidadãos, mas sim a polícia. Vive-se um autêntico pesadelo de segurança. Foram convocados efectivos policiais extraordinários para garantir a segurança de trinta e sete dirigentes mundiais. Nesta cerimónia de duas horas comemorativa da Revolução Francesa gastaram-se 98 milhões de francos. Através da televisão cerca de quinhentos milhões de espectadores recordaram os Direitos do Homem mas não o terror, a guilhotina, os massacres de Vendeia. Os cidadãos de Clichy, um subúrbio de Paris, são menos recatados. Celebram com orgulho a destruição pelas chamas dum edifício da Alfândega local.
Chestertown escreveu: “Não se pode fazer uma revolução para instituir uma democracia. É necessário instituir a democracia para se poder fazer uma revolução.” É fácil simpatizar com a paixão inflamada do povo francês em 1789, um povo vítima duma corte corrupta, num sistema opressivo e censório. Mas é mais fácil destruir que identificar. Como disse Rousseau: “A liberdade é um prato delicioso mas difícil de digerir.”
Os Atenienses da Antiguidade não confundiam tão facilmente Democracia com Revolução. O problema das revoluções é que, apesar de serem feitas em nome da democracia, são tudo menos democráticas. Quem as faz são as vítimas oprimidas pela tirania, cegas à razão e simplesmente desejosas de se libertarem da servidão.
Em meados do século V antes de Cristo, os Atenienses possuíam séculos de experiência de discussão, de debate, de diálogo, quer dos tempos da monarquia, quer mesmo de antes, na resolução dos problemas entre as tribos de Atenas. Nos meados do século V, formalizaram-nas para obter consensos para delinear em comum, as políticas.
É a diferença entre uma democracia com cidadãos experientes e competentes que aprenderam como discordar e como alcançar compromissos e em que a democracia funciona e o caso francês em 1789 em que pessoas sem experiência de liberdade ou discussão cometeram vários erros só por não saberem como agir, a não ser imitando os tiranos, ou seja, usando contra os tiranos a mesma força que estes tinham usado contra eles.
Nos dias que correm a vida é cada vez mais dominada pelos meios de informação de massas, mas quem é que domina os meios de informação de massas?
Os milagres produzidos pelos meios de informação são cada vez mais um elemento imprescindível nas campanhas presidenciais americanas e não só. No caso americano estes meios custam ao contribuinte cerca de noventa e três milhões de dólares para além dos dezasseis milhões desembolsados pelos partidos políticos e mais alguns milhões de proveniência duvidosa. Grande parte desta soma é gasta em mensagens publicitárias. O problema não reside em todos acreditarem no sentimentalismo ininterrupto da publicidade, mas antes pelo contrário, em ninguém acreditar nele.
Não se levantam questões, não há inquéritos nem balanços. Ninguém diz: “Desculpe, senhor Primeiro Ministro vimos belas imagens de agricultores mas, segundo penso só uma pequena percentagem dos agricultores conserva as suas propriedades produtivas. O resto foi à falência ou vai a caminho disso. Que lhes aconteceu e de que forma foram afectados pela sua política?” Mas estas perguntas não aparecem sem um diálogo genuíno.
Westminster em Londres é considerada como a casa mãe de todos os parlamentos, visitada anualmente por cerca de um quarto de milhão de turistas. Há algum tempo, nos Comuns a ordem do dia foi dominada pelo Decreto do Segredo Oficial que reacendeu a controvérsia na Inglaterra. Se a lei passasse sem alterações, o governo ganharia o direito de proibir quaisquer revelações acerca dos serviços secretos que não fossem do seu agrado. E isto apesar da tradição e da importância da discussão democrática. Parece-nos que isso seria um poder arbitrário e não admissível para um governo de uma democracia. Penso que este debate acaba por radicar na natureza do sistema político. O governo pretende sonegar informações vitais acerca da sua actuação e da sua política, escondê-las da nação, restringindo-as a si próprio. E a informação acerca da actuação do governo constitui a base de qualquer democracia. Sem essa informação, o governo não pode ser avaliado. Às vezes os meios de informação de massas informam o que fazem e como o fazem. Cada um aceita ou não, mas, e esta é a realidade quer aceite quer não, vão continuar a fazê-lo. É por isso que estão no poder. Durante x anos estão no poder e, em grande medida, fazem aquilo que lhes apetece. Pede-se que a Câmara aprove uma lei que não apenas tolera uma possível cobertura de um crime mas que legaliza essa mesma cobertura. E isso nunca pode ser correcto.
Para o cidadão comum uma das poucas formas de diálogo político que lhe resta são os programas de rádio onde se pode colocar questões aos políticos.
Ao contrário dos Atenienses delegamos a responsabilidade política nos deputados. O nosso controlo sobre o governo é ainda mais remoto. O sistema parece funcionar tão bem que cada vez há menos espaço para o cidadão comum. As pessoas não sabem a quem devem dirigir-se, quem é responsável e quem não é. Imaginem um edifício de cinquenta andares. É como pretender ir a um departamento desse edifício. Ninguém sabe onde é, andamos de porta em porta e acabamos por nunca encontrar quem pretendíamos. Em linhas gerais é isto que se passa. As pessoas ficam aborrecidas porque todos os seus esforços e tentativas redundam em nada. Desta forma, os indivíduos, na prática, não têm direitos. Pelo menos num certo sentido. Os direitos do indivíduo à informação, à protecção contra o poder de Estado e por aí fora, estão consagrados na Constituição independentemente do governo que está no poder. Mas não é isso que se passa na realidade.
Não se deve esperar que quem detém o poder, quem o manipula, abdique dele, pois não o fará. Nunca ninguém nessas circunstâncias abdicou voluntariamente. O que tem de acontecer é que os que detêm, teoricamente os direitos de cidadania aqueles a quem a Constituição classifica como cidadãos mas que não exercem os seus direitos de cidadania tenham de transformar a retórica em realidade. Têm de exigir, têm de pressionar para que os direitos que possuem em teoria lhes sejam garantidos na prática. Mas isso só acontecerá quando as pessoas abandonarem a sua complacência e exigirem que lhes sejam facultados na prática os direitos e poderes que a Constituição teoricamente lhes reconhece.
Na sua famosa oração fúnebre, Péricles afirmava:” Não dizemos que um homem não tem interesse pela política é alguém que só faz pela sua vida. O que dizemos é que não tem nada a fazer aqui.”
Os membros do governo de Saden Obenwalden comparecem perante a Assembleia dos cidadãos do Cantão. Esta assembleia é a única equivalente actual da Atenas da Antiguidade. Os juízes e os membros do governo do Cantão são escolhidos por eleição directa. A Assembleia dos cidadãos possui poder soberano. Rousseau inspirou-se no exemplo suíço ao escrever: “Queríamos cidadãos e teremos tudo o que necessitamos. Sem eles, abaixo dos dirigentes do estado apenas teremos escravos aviltados.”
Nesta perspectiva a cidadania não é tanto uma questão de direitos mas sim de deveres. Para Oscar Wilde “o problema do Socialismo é que ocupa muitas tardes livres” Mas os Gregos viviam todos os dias em democracia, quase nunca deixavam de ser cidadãos. Serviam regularmente como jurados, eram eleitos para cargos públicos e metade dos magistrados eram cidadãos comuns. Prestavam serviço militar, lutavam na guerra e a Assembleia de Cidadãos reunia quase de dez em dez dias. Gastavam literalmente metade das suas vidas a agir como cidadãos e a cidadania era, sem dúvida, a sua principal ocupação.
Na perspectiva da Assembleia dos Cidadãos, os cidadãos não são meros clientes dum estado burocrático à espera de serem por ele servidos. Pelo contrário mantêm um contacto regular com os governantes. Tal como em Atenas há dois mil e quinhentos anos os votos não são contados. Em vez disso são calculados por oito escrutinadores oficiais. A contagem só ocorre quando o resultado levanta dúvidas. Os Atenienses do século V antes de Cristo não estavam interessados nos direitos do Homem mas sim nos direitos dos Atenienses. A sua democracia não o era, no sentido moderno. A cidadania era muito limitada, excluindo as mulheres, os estrangeiros e os escravos. Mas tal como os Suíços, Atenas teve a coragem de confiar na capacidade dos cidadãos para decidir o que seria melhor para a comunidade. Sempre que esquecemos este princípio é a democracia que paga.
Para Tocqueville o meio mais eficaz para interessar as populações pelo bem estar e progresso do seu país consiste em fazê-las participar no governo. Se não confiarmos nas pessoas e as considerarmos pouco avisadas para governar devemos proporcionar-lhes experiência e ultrapassar essa ignorância, permitindo-lhes governar. Mas não damos essa oportunidade aos cidadãos. Não lhes damos possibilidades e experiência para aprenderem a governar, pois consideramos a política e a cidadania como artes inatas. Os homens podem nascer livres, mas não nascem cidadãos. A cidadania é algo que se aprende e para isso é necessário ter poder e autoridade para governar e até para cometer erros. Aceitamos que os nossos políticos cometam inúmeros erros mas não o permitimos aos cidadãos comuns. Se lhes é dado algum poder e cometem um erro dizemos imediatamente: “A Democracia falhou, não funciona. Vamos devolver o poder aos políticos, aos especialistas, aos burocratas.”
18 de Junho de 1989. Os gregos vão às urnas. Para muitos a experiência é confusa. Numa democracia moderna o acto de votação quase parece um ritual religioso. A cabina de voto é o equivalente ao confessionário. Mas será que a política deverá ser um assunto tão privado? Poder-se-à confiar nos meios de informação de massas para responderem às questões que estas pessoas necessitam de ver respondidas? Será que uma votação em cada quatro ou cinco anos é uma garantia suficiente de liberdade? Será que as pessoas são de facto menos capazes para decidir acerca do que é bom para elas do que as burocracias remotas e impessoais?
P.S. Intencionalmente, nenhum dos casos mencionados tem a ver com a situação portuguesa. Mas para o leitor mais atento, a substituição não será difícil de realizar.