Sunday, February 25, 2007

A INERÊNCIA DA VIOLÊNCIA NAS RELAÇÕES HUMANAS


Segundo o parecer de Bertrand Russell, o homem, na sua ânsia criadora, sofre duas resistências ou violências: a da Natureza e a dos seus semelhantes. Para combater a primeira, usa da ciência, para enfrentar a segunda, lança mão da política, isto é, da organização social.
Na opinião de Freud segundo marcuse, é a de que o sofrimento do homem é devido ao poderio esmagador da Natureza, à caducidade do seu próprio corpo e à insuficiência de medidas destinadas a regular as relações dos homens entre si, seja no seio da família, do Estado ou da Sociedade.
A violência da Natureza, nada tem que ver com a acção humana excepto na parte em que é contrariada pelo emprego da Ciência.
A caducidade do corpo humano não é mais do que outra violência natural, cujo significado ontológico pode ser objecto de especulação, mas cuja necessidade é inerente à substância material universal.
Ficamos, assim, apenas em face da violência provinda das relações humanas, cujos paroxismos - o da guerra e o dos processos de guerra em tempo de paz - não são objecto deste estudo. E, então, resta-nos a violência na paz, que, segundo alguns, não se revela apenas por acções, mas também por omissões. Efectivamente, poderiamos ter aludidi, ao tratar-se do exercício da violência da guerra, à violência por omissão quando se considera como tal a não intervenção numa luta armada interna noutro país ou externa entre países que permita à parte mais forte oprimir ou esmagar a parte mais fraca.
Mas também num quadro não bélico ou aparentemente de paz pode dar-se a violência por omissão quando se verifica a inacção de quem depende a melhoria da parte mais fraca ou em estado de carência, inacção que obsta à libertação do estado de frustração em que esta vive, sendo a violência tanto maior quando menor é a esperança do abandonado ou quanto maior é o sentimento da sua mortificação. A esta violência consentidora dum estado de injustiça se fará adiante o devido comentário.
Tem cabimento desde já registar que, se a omissão pode revestir o carácter de acto violento, o mesmo pode acontecer com actos normal ou intrinsecamente pacíficos, isto é, actos que, fora do contexto de uma situação de conflito, nada podem oferecer de violento. Assim sucede com as chamadas greves de zelo, isto é, o desempenho metódico, escrupuloso, pelos oficiais públicos das suas funções, que acarreta demoras à vida social ou produz efeitos onerosos na sobrecarga de trabalho de outros serviços. Não se deve confundir a greve de zelo com a greve ao invés, que consiste em praticar actos necessários da competência dos poderes públicos, como sucedeu em Itália em 1956, quando os grevistas procederam à reparação gratuita de uma estrada, no sentido de chamar a atenção para a urgência da obra e para o desemprego.
O exame pormenorizado da bagagem dos viajantes pelos funcionários da alfãndega é do primeiro tipo, a autuação das mais ligeiras contravenções de trânsito pela polícia no sentido de sobrecarregar os tribunais é exemplo do segundo.
A própria abstenção é havida por violência, como tem sucedido na África do Sul, quando subitamente a população negra deixava de comprar um produto quaotidiano ou decidia não utilizar os transportes públicos interurbanos, viajando a pé embora à custa de grande esforço e de muito tempo perdido.
Estes actos inocentes ou estas abstenções estão, entretanto, incluídos no que se chama a violência silenciosa, de que se tratará.
Consequentemente, parece ser de aceitar que a violência das relações humanas se verifica em todas as circuntâncias, pois mesmo a evangelização ou a filantropia encerram em si a violência da doçura motivada pelo desejo de conquistar, pelo menos espiritualmente, a parte mais fraca, isto é, a parte recebedora.
Por isso, afugura-se verdadeira a opinião de que a relação contratual pura, isto é, sem sombra de violência ou de ameaça, sem emprego de pressão, só pode dar-se quando as partes se consideram perfeitamente iguais ou quando não têm a convicção de que podem ganhar pela força. Daí a definição de comércio de B. Constant: "Não é senão uma homenagem à força do possuidor pelo aspirante à posse. È uma tentativa de obter amigavelmente o que não mais se espera conquistar pela violência. Um homem que fosse sempre o mais forte não teria jamais a ideia de comércio."
O raciocínio, todavia, pecará por se originar numa falsa premissa, pois tem cabimento a pergunta sobre se há relação contratual pura. É que pelo menos nos premiliares de todo o contrato há sempre uma pressão, quanto mais não seja a da propaganda, do encarecimento da própria prestação, acompanhada da desestimação da contraprestação quando se trata de troca directa, pressão que é violência disfarçada.
Essa pressão, por sua vez, nunca leva as partes a considerarem-se perfeitamente iguais, mas é outrossim exacto que nem sempre os actores procedem amigavelmente por terem a certeza de que é inoperante a força, visto que há situações, que não são raras, em que uma parte age conscientemente , zelando pelo interesse da outra parte. Acresce que em termos de comércio se há uma homenagem à força do possuidor pelo aspirante à posse, essa acção é recíproca: o vendedor aspira à posse do dinheiro como o comprador à posse da coisa e não é absurdo concluir que essas aspirações na sociedade em que vivemos são sempre ou quase sempre diatadas antes pelo espírito especulativo do que pelo reconhecimento da impossibilidade do recurso à depredação.
Aceite, portanto, a tese de que nas relações humanas é inerente a violência, é agora o momento de analisar os dois tipos de violência: a manifesta e a silenciosa.
Se é fácil obter uma ideia em geral da violência manifesta e da silenciosa, outro tanto não acontece na delimitação da sua separação. De facto, é plenamente compreensível que caiam dentro da esfera da violência manifesta uma agressão física, uma greve de operários, um apedrejamento por estudantes, uma multa colectiva, o cativeiro, a sujeição à vida militar, a execução de um condenado, a velada ameaça contida numa ordem de um superior hierárquico, como é perfeitamente óbvio que sejam casos de violência silenciosa a autoridade paternal e estadual, a legislação discriminatória de direitos em relação a negros e mulheres, as decisões das maiorias e outros. Mas já não é de fácil determinação a natureza duma manifestação arruaceira de protestantes, sobretudo uma das chamadas "maiorias silenciosas", o editorial de um jornal de classes preconizando a defesa de direitos por todos os meios, o conhecido estado de prevenção, a publicação de legislação de emergência para acudir a uma crise do Governo, em suma, todos os actos ou atitudes dos particulares ou das autoridades onde perpasse ou se contenha a ameaça da violência, aceite como foi que a ameaça é já por si violência.