Monday, February 26, 2007

Mudar a Sociedade?



"A forma inteligente de manter as pessoas passivas e obedientes é limitar estritamente o espectro da opinião aceitável, mas estimular muito intensamente o debate dentro daquele espectro... Isto dá às pessoas a sensação de que o livre pensamento está pujante, e ao mesmo tempo os pressupostos do sistema são reforçados através desses limites impostos à amplitude do debate".

Noam Chomsky



A maior parte das pessoas tem dificuldade em imaginar uma sociedade onde não existam dominadores e dominados, poderosos e oprimidos. É natural que assim seja, não deve espantar alguém que aprofunda o tema. O mesmo se passava relativamente à escravatura nas sociedades esclavagistas, não apenas na antiguidade, como também até ao séc.XIX, em países com um tão "elevado padrão civilizacional" como os EUA, por exemplo. O mesmo se passava relativamente às sociedades onde existiu e existe servidão - feudalismo. Porque é que as pessoas pensam que o salariato, a escravidão assalariada é inerente às sociedades modernas? Porque a maioria das pessoas apenas concebe relações sociais moldadas pelo capitalismo quer seja em mãos privadas, quer seja do Estado. Isso é compreensível, mas não deve ser aceite como "evidência" de coisa nenhuma.
Em contraste, devia-se racionalmente aceitar que as sociedades humanas são modificáveis por vontade dos humanos, que essas mesmas sociedades evoluem constantemente, que essas transformações não se fazem à revelia ou contra a vontade e desejo da imensa maioria... pelo menos, nos dias que correm!
Essa é a razão porque temos possibilidade de construir outro tipo de relações sociais... nada nos tolhe verdadeiramente... apenas o receio infundado de que isso origine uma escravidão ainda maior.
Para qualquer sociedade, para qualquer nível de desenvolvimento técnico, existem sempre alternativas não hierárquicas de organização. A questão reside portanto no desejo das pessoas viverem segundo um paradigma diferente. Se elas o desejarem, essa sociedade será construída.
Perante o colapso e a mentira histórica em que se transformaram as múltiplas experiências de instauração do socialismo em escala planetária, existe uma tendência em nos fazer acreditar que o único modelo de sociedade que se adapta positivamente à evolução da espécie humana cinge-se ao capitalismo. O capitalismo não deixou de ser um sistema social impregnado pela opressão e pela exploração do homem pelo homem, só que agora de um modo mais sofisticado e complexo. Como modelo de evolução da sociedade, não pode ser positivo se o considerarmos como aquele que melhor desenvolveu a competição, a domesticação, a guerra, a violência, a morte e a destruição da natureza e das espécies que nela ainda sobrevivem. Como modelo de emancipação da espécie humana, assente na solidariedade, na igualdade, na liberdade, na criatividade, na espontaneidade e no equilíbrio entre os homens, está esgotado.
Ainda que seja uma tarefa difícil para chegarmos a esta conclusão, basta tentar explicitar a natureza da crise que o capitalismo atravessa e delinear as hipóteses de criação de uma alternativa capaz de o superar historicamente.
No que se relaciona com a actual crise do capitalismo, podemos observá-la nas profundas mudanças operadas pelas novas tecnologias nos domínios da organização do trabalho, com especial incidência na divisão do trabalho, nas qualificações do factor de produção trabalho, no desemprego e na segmentação do mercado de trabalho. Por outro lado, o processo de industrialização e de urbanização levado a cabo pelo desenvolvimento do capitalismo, os processos de socialização e de controle das acções individuais e colectivas sofreram uma grande deterioração, a ponto de a violência, o crime e a desintegração social se transformarem numa enorme fonte de conflitualidade social. Por fim, sublinhe-se a destruição sistemática da natureza, a guerra, a fome, a miséria e a exclusão social que se está a generalizar por todo o planeta, a ponto de por em risco a sobrevivência histórica da espécie humana.
Quando afirmamos que estamos em presença de um tipo de relações sociais cada vez mais complexo e abstracto, queremos simplesmente dizer que os processos de socialização, de controle e de integração social decorrentes da acção individual e colectiva já não são possíveis de realizar de formas perversas e alienantes de participação, de partilha, de pertença e de decisão por parte dos seres humanos que neles intervêm. Desse modo, as relações sociais, em vez de serem protagonizadas por indivíduos e grupos através de uma acção directa, visível, autónoma e livre, são estruturadas por uma divisão do trabalho extensa, uma autoridade hierárquica e uma abstracção relacional da representatividade formal das instituições e das organizações que constituem a sociedade capitalista. Nas circunstâncias, tudo o que se produz, distribui-se e consome-se no mercado, na forma de bens e de serviços; todas as leis, decretos e portarias são provenientes do poder instituído; todas as decisões políticas, sociais, económicas e culturais são elaboradas pelos estados, pelas transnacionais e governos nacionais, regionais e municipais; todas as guerras, instalações de centrais nucleares, construção de casernas e de prisões são decididas pelo Estado; e, enfim, a própria destruição da natureza, em última instância, escapa ao controle da participação e da decisão do comum dos mortais que habita o planeta. Quem decide, participa e controla este processo são todos aqueles que têm uma posição social privilegiada na estrutura hierárquica de autoridade, da divisão social do trabalho, do Estado, das instituições e das organizações que produzem e reproduzem a actual sociedade.
Os indivíduos e grupos que têm de sobreviver nesta realidade complexa sentem-se demasiado pequenos e impotentes perante relações sociais que não entendem nem sentem. Em vez de serem os sujeitos que criam a sua própria história, alienam esta função numa burocracia totalitária que tudo sabe e decide. O comum dos mortais é um joguete nas suas mãos. Por isto, o espaço-tempo da vida quotidiana dos indivíduos e dos grupos está sendo cada vez mais objecto de capitalização. Tudo se vende e se compra no mercado da vida quotidiana: amor, trabalho, honra, dignidade, justiça, violência, crime, bens e serviços de consumos vários, orgãos do organismo humano, morte, etc. Quem não consegue integrar-se nos mecanismos concorrenciais e competitivos deste mercado é esmagado e escorraçado pelas leis normativas da sua racionalidade instrumental. Quem não tem poder, nem capital, nem prestígio social, nem dinheiro, mergulha na pobreza, na miséria, no desemprego ou na marginalidade social. Quem não consegue compreender e explicar a realidade social que o aliena e o transforma num ser infeliz torna-se facilmente um “doente” ou num “demente” que é preciso encarcerar nos hospitais psiquiátricos ou nas prisões. Neste contexto, percebe-se as razões que levam os seres humanos a se integrarem nos movimentos sociais que estão na base do incremento da religião, do racismo, da xenofobia e do nacionalismo. Percebe-se ainda as razões profundas que decorrem do vazio existencial dos indivíduos e grupos, que, não sabendo como sobreviver nesta sociedade, recorrem à droga, e ao crime.
Como consequência deste panorama existencial, os processos de socialização dos indivíduos e grupos que constituem a sociedade capitalista actual tendem a perder a sua importância nas funções de controle e de integração que outrora eram protagonizados pela família, a escola, comunidades locais e espaços públicos, mediatizados pelo conhecimento da praça pública, dos jardins, dos cafés e das associações recreativas e culturais. Em sua substituição, desenvolve-se o papel do Estado, das suas tecnologias, da comunicação social e da religião.
No caso específico das novas tecnologias, tendo presente os efeitos estruturantes da sua acção, sublinhe-se as transformações operadas pela informática, a micro electrónica, a telemática e a robótica. Como resultado lógico, assiste-se a supressão de milhões de empregos resultantes da extinção dos sectores da economia que estavam identificados com a “Segunda revolução industrial”. Por dedução lógica, todas as qualificações do factor de produção trabalho ligadas a essas actividades económicas foram também extintas ou foram objecto de uma mudança substancial com efeitos manifestos na sua desqualificação. Deste modo, o conjunto dos trabalhadores que integravam as actividades dos sectores industrial, agrícola e comercial clássicos foram progressivamente substituídos por outros que, na ocorrência, possuem qualificações ajustadas aos requisitos das funções e tarefas das novas tecnologias, modernamente denominadas como pertencentes à “terceira revolução industrial”.
Na plasticidade da sua representatividade social, o desemprego, a precaridade do vínculo contratual e a segmentação do mercado do trabalho transformaram-se nos grandes dilemas existenciais da vida quotidiana de qualquer trabalhador assalariado da modernidade capitalista. As novas tecnologias, ao permitirem a socialização da informação e da energia subjacente à acção dos seres humanos, de forma exponencial, reestruturaram radicalmente o espaço-tempo comunicacional e relacional do processo de trabalho. Todos os aspectos confinados na concepção, decisão, participação e execução de tarefas relacionadas com a produção de bens e serviços já não são passíveis de realizar num espaço tempo estruturado por relações sociais assentes na observação directa e em situação de presença física, mas através dos mecanismos externos e abstractos das novas tecnologias. Como corolário lógico, a divisão social do trabalho, a autoridade hierárquica, o controle e a integração social que enformam o processo de trabalho actual adaptam-se a um tipo de socialização que aprofunda drasticamente a institucionalização e formalização das relações sociais. Os signos e os significados da codificação e descodificação das linguagens confinadas à emissão e à recepção da informação e da energia que está directamente relacionada com a execução de tarefas e funções complexificam-se e demonstram-se cada vez mais abstractos aos indivíduos e nos grupos que manipulam as novas tecnologias.
Todos os aspectos analisados circunscrevem-se a todas as instituições e organizações que compõem a sociedade capitalista à escala mundial. Embora existam situações diversas em nível local, regional e nacional, em relação ao seus desenvolvimento específico, a desigualdade social e a exclusão social são o denominador comum da modernidade da opressão e da exploração capitalista. O Estado e o patronato, assim como a comunicação social, a religião, os nacionalismos e os integrismos religiosos na sua fase moderna, são a expressão mais genuína dessa realidade. A conflitualidade social actual é o resultado de uma acção individual e colectiva que tenta superar estas contradições e antagonismos. Paradoxalmente, os meios e os objectivos das reivindicações e movimentos sociais expressos na forma de greves, guerras, manifestações, eleições e outras acções não têm sentido, na medida em que hoje a mudança serve para que tudo continue como está.