Thursday, January 25, 2007

OS MILITARES E O ESTADO

Porventura mais ainda do que os membros das elites administrativas, os militares de alta patente têm tendência para se verem. e os outros a eles, como pessoas totalmente isentas do partidarismo ideológico e político que atinge outros indivíduos. Esta imagem de dedicação exclusiva a um "interesse nacional" e às "virtudes militares" - honra, coragem, disciplina, etc. - longe de estar livre de conotações partidárias, tem sido alimentada e reforçada pelo facto de, nos países capitalistas avançados, os militares terem estado regra geral afastados da política, na medida em que quase nunca se têm envolvido directamente no processo político visível desses países.
Também aqui é manifestamente falsa a ideia de que os militares não comprometem ideologicamente, como é falsa a opinião de que a sua influência na conduta dos assuntos de Estados não é, pelo menos, considerável.
É ocioso insistir na verdade, bem conhecida, de que nesses países os oficiais superiores têm constituído um elemento profundamente conservador e até reaccionário no sistema de Estado e na sociedade em geral, e que a sua origem social, a sua situação de classe e o seu interesse profissional têm feito com que vejam com desagrado, suspeita, e até hostilidade, o carácter da política "democrática". Sociedades há em que certos sectores do corpo de exército têm sido movidos por impulsos radicais e "modernizadores", e onde os militares têm dirigido movimentos destinados a derrubar, ou pelo menos a reformar, as estruturas sociais económicas e políticas arcaicas. Nos países capitalistas avançados, por outro lado, as elites militares têm sido sempre a favor de um "interesse nacional" concebido em termos retintamente conservadores, que poderá não excluir uma aceitação de certos processos "democráticos", sujeita às contingências, é certo, mas que na prática se tem traduzido por uma implacável hostilidade a ideias, movimentos e partidos radicais. descrevendo os valores do oficialato françês, um autor nota a ênfase no papel da força e do nacionalismo, a preferência pela unidade, pela abnegação, pela hierarquia e pela ordem, em detrimento do individualismo e da política democrática. Todas as descrições do espirito militar nos países de capitalismo avançado batem nesta mesma tecla.
Aqui, como no caso dos funcionários públicos, não basta falar de conservatorismo militar em termos gerais, porquanto esse conservantismo há muito que assume um carácter mais específico, no sentido de que, por um lado, abrange uma aceitação frequentemente explícita, não apenas das instituições existentes ou de valores particulares, como também de um sistema económico e social específico, e, por outro, uma rejeição de qualquer alternativa significativa a esse sistema. Numa fase anterior da história do capitalismo, as elites militares olhavam com aristocrático desdém para os avarentos empresários, ao mesmo tempo que defendiam valores procedentes de uma época pré-capitalista, que os colocou em posição a regimes industriais, burgueses e de orientação civil, nos quais eles se consideravam servidores. Poderão ainda persistir atitudes derivadas destes valores, mas tal como a aristocracia civil há muito logrou alcançar uma feliz reconciliação com os valores e os objectivos capitalistas, também as elites militares - as quais passaram por um processo limitado mas bem definido de diluição social - chegaram já a um estádio de paz ideológica e política com os regimes capitalistas. Em toda a parte os militares chegaram a um ponto de estreita associação entre os dois blocos. deste ponto de vista, o complexo industrial-militar não é apenas uma figura de retórica, mas um facto sólido, cimentado por uma autêntica comunidade de interesses.
Resta analisar o papel exacto dos militares no sistema de Estado de uma sociedade. Isto porquanto se, por uma lado, o conservantismo das elites militares poderá ser considerado um facto, é preciso ver até que ponto ele encontra expressão no processo de tomada de decisões. Isto é tanto mais verdade quanto se sabe que os regimes políticos de capitalismo avançado se têm caracterizado por um certo grau de predomínio civil sobre o militar. Nestes países, com raras excepções (uma delas o Japão dos anos trinta), as elites militares nunca falaram como grandes senhores a governos essencialmente civis. Além disso, nunca tentaram a sério substituir o poder civil. As ditaduras que estes países ocasionalmente têm conhecido não foram ditaduras militares: Hitler era um ex-cabo civil e Mussolini era igualmente uma figura civil. Ambos subiram ao poder como apoio de oficiais de carreira, mas também ambos subjugaram as suas elites militares, como nunca tinha acontecido até então e como nunca mais voltou a acontecer. É muito provável que os generais britânicos na Inglaterra dos anos 20 tivessem mais influência na tomada de decisões do que os seus homólogos sob Hitler na Alemanha, o Mussolini na Itália.
É de facto notável o corpo militar nos países de capitalismo avançado raramente ter desempenhado um papel político independente, e que ainda mais raramente tenha tentado desempenhado um papel político independente, e que ainda mais raramente tenha tentado tomar o lugar de governos civis através de um putsch ou coup d'état. O exemplo clássico desta inibição é o dos militares alemães após o colapso militar de 1918 e durante toda a república de Weimar, quando os oficiais do exército desempenharam um papel importantíssimo na vida política, embora recusando-se sempre terminantemente a evitar a queda de governos fracos e indecisos. Mesmo no Japão, no final da década de 30, havia limites ao poder do exército. Este não podia governar o país directamente. Na verdade, preferiu o tradicional método japonês de governo indirecto. Não podia passar sem os políticos, sem os funcionários dos Ministérios dos Estrangeiros. sem os burocratas e sem os industriais. A experiência francesa em anos recentes constitui uma excepção parcial e duvidosa à regra. O exército françês, que nunca foi uma instituição particularmente democrática nem de espírito republicano, estava totalmente desmoralizado pelas derrotas e humilhações sofridas na Indochina e na Argélia, pelas quais culpava os governos fracos e vacilantes da Quarta República. Apesar disso, não revelou até finais de década de cinquenta qualquer predileção por um repto ao poder civil, não obstante a degradação política do regime e a aguda crise militar no campo das operações. A revolta que estalou na Argélia em maio de 58 foi uma acontecimento semi-cozinhado em parte devido à ansiedade com que os oficiais superiores in loco se agarravam à aparência de "constitucionalidade": o facto de a rebelião ter derrubado a Quarta República ficou a dever-se muito menos à decisão dos militares na Argélia do que à fraqueza e desmoralização dos dirigentes políticos em Paris. Tornando possível o acesso de De Gaulle ao poder, os rebeldes e breve trecho chegarem à conclusão de que não podiam confiar em de Gaulle para alcançar os seus objectivos. Foi esta a causa de nova rebelião de generais na Argélia, três anos mais tarde. foi um exemplo genuíno de uma tentativa de golpe de Estado: a facilidade com que foi dominado põe a nú as limitações e dificuldades de tais empresas nas sociedades capitalistas avançadas.
A mais importante dessas dificuldades nos países de capitalismo avançado está em que nenhum desafio aberto "inconstitucional" lançado pela Direita tem qualquer hipótese de êxito sem um apreciável grau de apoio de um sector das classes subordinadas, de preferência da classe operária, desiludida com as organizações económicas e de defesa política. Além disso, esse apoio popular tem de ser integrado e mobilizado no seio de um partido com organizações de massas. Por outras palavras, um repto da Direita requer qualquer coisa como um movimento fascista com uma ampla base popular. Porém, a organização de um movimento desse tipo de liderança - popular, demagógica, carismática - que os oficiais superiores raramente possuem, dada a tradição em que se inserem. E mesmo que se encontrasse um homem ou homens com tais qualidades dentro da elite militar, a tentativa de por em prática essas qualidades dentro da elite militar, a tentativa de por em prática essas qualidades dentro da elite militar, a tensivas de por em prática essas qualidades não tardaria a conduzir à exclusão do exército: é muito difícil, senão mesmo impossível, pelo menos nos países de que estamos a ocupar, dirigir um movimento político de tipo fascista de dentro do exército. Este facto ajuda a explicar por que razão oficiais superiores têm desempenhado um papel importante como aliados de movimentos de Direita contra-revolucionarios, como na Alemanha e na Itália, sem jamais terem sido os iniciadores ou os dirigentes desses movimentos.
Quanto à tentativa militar de usurpar o poder sem uma dose considerável de apoio popular, o perigo de um fracasso é enorme. Para começar, o exército não é, deste ponto de vista, um bloco monolítico, e as diferenças de patente afectam de maneira crucial a propensão para o aventureirismo - sendo os oficiais superiores muito menos inclinados a tais tentativas do que os coronéis, os majores, os capitães e os subalternos. Os oficiais do exército, seja qual for a sua patente, têm de contar com a presença dos milicianos, de cuja obediência em condições de inconstitucionalidade não podem estar certos. Foi este um dos factores que precipitou o colapso de rebelião militar na Argélia, em 1961, e que tem muitas vezes contribuído para a derrota de semelhantes tentativas noutros países, como foi o caso do putsch kapp na Alemanha, em 1920.
Esta falta de confiança nos oficiais de patente inferior é apenas uma expressão específica de uma desvantagem de ordem mais geral e, em última análise, decisiva, que militares putschistas em potência enfrentam nos países capitalistas avançados, ou seja, a hostilidade e a resistência que podem provir do movimento operário organizado. Praticamente qualquer governo civil desses países, por mais fraco que seja, pode dar conta os militares rebeldes se apelar para o auxílio do movimento operário organizado. Assim, mesmo Noske, que presidira à liquidação da sublevação Spartakus e que teve pelo menos responsabilidade indirecta no assassínio de Rosa Luxemburg e Karl Idebknecht, pode dizer aos conspiradores militares alemães, em 1920: "Se usarem a força, declaramos uma greve geral". Na verdade, quando se deu o putsch de kapp, o governo de que Noske era membro declarou a greve geral, o que contribui em grande parte para a derrota dos putschistas. Só quando o movimento operário é demasiado fraco, ou se encontra paralisado, podem os militares apostados na conquista do poder ignorar a sua hostilidade e derrotá-lo. Se o movimento não é fraco nem se encontra paralisado, o Bonapartismo é uma aventura extremamente perigosa nestes países. Para ter qualquer possibilidade de êxito, nas condições do capitalismo avançado, a subversão da Direita tem de assumir formas diferentes, mais "populares". Nas ocasiões em que assume na realidade tais formas, os militares, como atrás dissemos, podem oferecer precioso auxílio.
Os riscos e dificuldades que o putschismo militar enfrenta nas sociedades capitalistas avançadas não constituem, contudo, uma explicação cabal para a sua raridade. Os homens correm riscos quando as circunstâncias o exigem. A razão pela qual nestas sociedades os militares não têm procurado mais frequentemente desafiar o poder civil pode atribuir-se factos que não tem que ver com riscos nem com dificuldades. A razão mais importante é que, tal como os funcionários públicos, os militares têm servido com políticos e governos cujos objectivos jamais diferem radicalmente dos seus. Mesmo quando têm estado no poder governos de "esquerda", os militares raramente tiveram ocasião de sentir uma alienação política e ideológica total. Afinal, esses governos têm regra geral levado a cabo uma política externa e de defesa que nunca levou os militares a pensar que era impossível colaborara com tais governos. Os militares alemães colaboraram com os sociais-democratas Ebert e Noske em 1918 e depois, de forma a garantir uma "estabilidade social" que era tão desejada pelos civis como pelos militares. Se os novos dirigentes tivessem dados uma imagem de não "moderados", é muito pouco provável que os oficiais superiores tivessem aceite pacificamente a sua inevitável demissão, apesar de certos autores considerarem que havia uma tradição de os militares não intervirem directamente no campo dos partidos políticos.
É certo que tem havido muitos exemplos de militares em sério desacordo com os dirigentes civis, a ponto de se gerar um clima de tensão nas relações entre eles - colocando-se invariavelmente os militares do lado da Direita. No entanto, dada a "moderação" política e ideológica dos governos que têm sido o poder nos países capitalistas avançados, bem como o conservantismo básico que eles compartilham com as elites militares, tem sido sempre possível acomodar as divergências que surjam, por mais graves que sejam. Reside aqui a chave da subordinação militar que tem caracterizado as relações entre civis e militares nos países de capitalismo avançado.
A "subordinação" é, todavia, uma descrição algo errónea da posição e do papel dos militares nos regimes capitalistas do nosso tempo. Efectivamente, tem-se adiantado o forte argumento de que, pelo menos nos Estados Unidos, a acentuado militarização da vida e o extraordinário crescimento dos domínios militares tem produzido uma situação em que os militares têm de ser considerados um grupo de poder em pé de igualdade com o governo e a elite das sociedades anónimas.
A afirmação poderá parecer exagerada, porquanto não há provas suficientes que demonstrem que, quer nos Estados Unidos, quer em qualquer outro país, as forças armadas tenham alcançado uma posição de igualdade face ao executivo político. Nem tão pouco é claro que apesar do seu controlo de recursos fenomenais, quer económicos quer militares, a elite militar norte-americana tenha conseguido estabelecer algo que se assemelhe a uma base independente de poder, ao mesmo nível da base de poder da elite económica, a partir da qual pudesse competir, em termos de igualdade ou mesmo de superioridade, com a presidência e com o governo civil. Simboliza isto o facto de ter sido um ex-presidente da General Motors quem governou o Pentágono durante sete anos, afirmando um substancial grau de controlo sobre as forças armadas. Também não se pode ignorar o facto de que foram civis e não militares que exerceram mais influência sobre presidentes como Kennedy e Johnson. Assim que se saiba, nenhum militar teve tanta influência como os conselheiros civis da Casa Branca na condução da guerra do Vietname. Exagerar o papel dos militares nos conselhos dos governos capitalistas tem os seus perigos, pois tende a desviar as atenções da responsabilidade dos detentores civis do poder pela acções e pelas políticas do Estado. Será verdade que estes detentores do poder, particularmente nos Estados Unidos, têm aceitado, segundo as palavras de certos autores uma definição militar da realidade. Mas não há razão para supor que tenham sido os militares, em qualquer parte do mundo, a impo-la sobre os senhores civis.
Dito isto, tem de se acrescentar que as elites militares nos países capitalistas avançados desempenham na verdade um importante papel em decisões cruciais da política nacional. A sua influência não se limita ao sector que lhes diz directamente respeito. Decisões no capítulo da defesa são necessariamente decisões que envolvem outros assuntos, desde a diplomacia à política económica ou financeiro que não esteja directa ou indirectamente ligado à defesa exterior. Além disso, essa influência não está limitada ao sistema de Estado; ela estende-se à vida política da sociedade em geral.
Na perspectiva deste estudo, o ponto importante a salientar não é tanto a grande influência que os militares exercem sobre o sistema de Estado. É um facto por demais conhecido para justificar qualquer realce. Mais importante é o facto de que esta influência se exerce sobretudo segundo direcções altamente conservadoras e que as elites militares estão sempre prontas a reforçar as tendências conservadoras do governo e a fazer os possíveis, seja qual for a esfera de influência, por agir como uma voz de prudência e de censura contra políticas que não correspondam àquilo que na sua conservadora opinião é o "interesse nacional". Além disso, e dada a sua orientação ideológica, é sempre de esperar que as elites militares e policiais apoiem, com particular zelo, o esforço do poder civil para combater a "subversão interna", pelo menos da Esquerda, para agir, sempre que for preciso, como agentes coercivos da ordem social existente, particularmente em períodos de agitação social e conflito de classes aberto. São os administradores da função coerciva, prerrogativa única do Estado. E embora o poder civil possa ter tido dúvidas quanto à lealdade e subordinação desses agentes, raramente terá havido ensejo para sérias dúvidas quanto à sua prontidão em tomar partido, por assim dizer, contra trabalhadores em greve, activistas políticos da esquerda, e contra quaisquer perturbações do status quo.