Saturday, January 27, 2007

Proudhon como Pai do Anarquismo


Não vamos proceder a uma análise completa da doutrina proudhoniana. Este trabalho é bem mais limitado.Tentaremos simplesmente mostrar em que medida Proudhon é o pai do anarquismo. Antes de tudo, parece-nos ser necessário o quanto este pensador é variado, gradual, contraditório mesmo. “Há poucas teses que possamos, procurando bem, apoiar um dos seus aforismos”, verifica C. Bouglé. E o facto é que os mais diversos agrupamentos fizeram apelo ao seu patrono. Independentemente dos anarquistas, certos monárquicos, sindicalistas, puderam reclamar-se - com ou sem razão - de Proudhon, e dos seus escritos, a sua própria pessoa foi diversamente e contraditoriamente interpretada.
A sua pessoa? Mas não há dois comentadores que estejam de acordo! Para Marx ele é alternadamente “proletário, operário” e “pequeno-burguês”, para Cuvilier é indiscutivelmente um rural. Maxime Leroy vê nele um proletário reforçado de um burguês ou dum artesão. Edouard Dolléans pensa que ele foi camponês e operário” e Bouglé estende-se elegantemente declarando que ele é povo.
Quanto aos seus escritos e às suas teorias, tornou-se um lugar comum sublinhar as contradições. Limitar-nos-emos a dar alguns exemplos.
Materialista ou idealista? O que foi Proudhon? Após ter declarado que “ a associação, a moral, as relações económicas” devem ser estudadas “ objectivamente nas coisas” pretendeu “ escapar às reprimendas de materialista afirmando que “ os factos não são inteiramente matéria (...) mas manifestações visíveis de ideias invisíveis”.
Num outro domínio, tornou-se clássico mostrar que aquele que criou um dia “ A propriedade é um roubo” ou ainda: “ A propriedade é o direito de fruir e de dispor à sua vontade do bem do próximo” foi igualmente aquilo que defendeu, com sinceridade aliás,, esta mesma propriedade na qual via um contrapeso ao despotismo poder do Estado, uma garantia da liberdade individual.
Poderíamos continuar. Em matéria de religião, o estado de alma de Proudhon não era um enigma pois o mesmo homem que declarava: “Deus é o mal”, estimava igualmente que a mulher que reza é sublime e fazia elevar cristianamente as suas filhas...
O pensamento proudhoniano é portanto variável, complexo, não dizemos forçosamente contraditório - a posição tomada por Proudhon em relação à propriedade por exemplo é perfeitamente lógica - e, em que concerne o seu carácter “ anarquista”, é possível notar uma certa evolução. Os anos de 1850-1855 marcam o ponto extremo do anarquismo de Proudhon. Como consequência sob a dupla influência dos acontecimentos exteriores - guerra da Crimeia e de Itália - e do impasse ao qual ele se opôs na construção do seu socialismo de permutas - desaire do Banco do povo e do projecto de exposição perpétua - Proudhon, insistindo precedentemente sobre o carácter económico da revolução indispensável, mostra-se entretanto menos absoluto na sua negação do Estado e dá mais importância ao problema político.
Feita esta reserva, parece-nos justo considerar a obra proudhoniana, pela sua natureza, como pela influência que irá exercer, como a primeira expressão da doutrina anarquista.
O próprio Proudhon declarou “ Sou anarquista” e deu o nome de “anarquia” ao que ele considera ser a organização social ideal.
“Anarquista”, “anarquia” poderiam entretanto não serem mais que palavras. Isto não é nada, e a obra proudhoniana está dominada pelos dois princípios que são dados como sendo os da anarquia: princípio negativo, luta contra a autoridade sob a sua tripla forma política, económica e moral; princípio positivo, luta pela liberdade e pelo bem estar. Numa palavra, se Proudhon excede sem dúvida o quadro da anarquia, pelo menos podemos dizer que toda a anarquia
é, na sua essência, contida na sua obra.
Ensaiemos antes de tudo de dar um esquema por sua vez simples e exacto da doutrina proudhoniana. Por todo o lado reina o regime detestável da autoridade. Este regime exprime-se pela centralização no plano político, pela exploração e a concurrência no plano económico. Destruam et aedificabo. Destruir e, por este mesmo facto construirei. Sabotemos então a autoridade e sobre as suas ruínas, edificar-se-à uma sociedade de liberdade e de bem estar. Liberdade sobre o plano político pelo federalismo, claro no plano económico pelo mutualismo. O essencial do Proudhon que estudamos está contido nestas linhas.
Para ele “ o verdadeiro problema a resolver não é em realidade o problema político, é o problema económico” e “ a unidade constitutiva da sociedade é a oficina”.
Predominância portanto, claramente marcada, da economia sobre o político. O Estado político deve disaparecer. “ Fundar, emergir e fazer desaparecer o sistema político ou governamental no sistema económico, reduzindo, simplificando, descentralizando, suprimindo um após outro todos os serviços administrativos desta grande máquina que tem o nome de governo ou de Estado”, tal é o fim a alcançar.
Desde então, no seguimento desta absorção do político pelo económico, desta redução das funções políticas às funções industriais, a ordem social resultante do único facto das transacções e das permutas, “ cada um poder-se -ia dizer autocrata dele próprio”.
Penetremos mais à frente no pensamento proudhoniano. O nosso teórico levanta-se com força contra toda a autoridade na qual vê um instrumento destruidor do seu eu. “ Autoridade, governo, poder, Estado - estas palavras designam todos a mesma coisa - cada um vive o meio de oprimir e de explorar os seus semelhantes”, considera Proudhon que declara : “ Qualquer um que põe a mão sobre mim para me governar é um usurpador e um tirano, declaro-o meu inimigo”.
O sufrágio universal não poderia entretanto permitir ao povo escolher honestos representantes que fariam boas leis? Proudhon protesta. “ Tenho tanta necessidade de mandatários, que de representantes? E já que é preciso determinar a minha vontade, não a posso exprimir sem a ajuda de ninguém? Ñão me custará mais e não estarei mais seguro de mim que do meu advogado?”
Quanto às leis, não as quer. “ Não reconheço nenhuma”, escreve ele. “A lei da maioria não é a minha lei, é a lei da força; por consequência o governo que daí resulte não é o meu governo, é o governo da força.”
A sociedade não tem o direito de julgar nem o direito de punir, prossegue Proudhon. “ Só o homem tem o direito de se julgar, e se se sente culpado, se acredita que a expiação lhe é boa, de reclamar para ele uma punição. A justiça é um acto de consciência, essencialmente voluntária: ora a consciência não pode ser julgada, condenada ou absolvida que por ela própria.” Segue-se portanto que “ a abolição completa, imediata, sem transição nem nenhuma substituição, dos tribunais, é uma das primeiras necessidades da revolução”.
Mas talvez reformas sejam possíveis e não é pior governo se puder corrigir-se. Erro, erro, proclama Proudhon. Toda a reforma é impossível, pois “ de todas as reformas que a sociedade em perigo solicita, nenhuma é da competência do poder; nenhuma pode ser por ele realizada, porque a essência do poder repugna tal acto, e não foi dado ao homem unir aquilo que Deus dividiu”.
Queríamos, para acabar com esta virulenta crítica da autoridade, citar a página onde Proudhon com um lirismo veemente, denuncia as consequências do governamentalismo: “ Ser governado é ser, a cada operação , a cada transacção, a cada movimento, notado, registado, recenseado, tarifado, selado, medido, avaliado, patenteado, licenciado, autorizado, apostilado, admoestado, impedido, reformado, reeducado, corrigido. É, com o pretexto de utilidade pública, e em nome do interesse geral, ser pedido em empréstimo, exercitado, espoliado, explorado, monopolizado, abalado, pressionado, mistificado, roubado; depois, à menor resistência, à primeira palavra de queixa, reprimido, multado, injuriado, vexado, encurralado, maltratado, batido, desarmado, garrotado, aprisionado, fuzilado, metralhado, julgado, condenado, deportado, sacrificado, vendido, traído e, ainda por cima, jogado, escarnecido, ultrajado, desonrado.Eis o governo, eis a sua justiça, eia a sua moral! E dizer que há entre nós democratas que pretendem que o governo tem coisas boas; socialistas que apoiam, em nome da liberdade,da igualdade e da fraternidade, esta ignomínia; proletários que se candidatam à presidência da República! Hipócrisia!...”
A ideia capital, decisiva da revolução a vir é portanto a seguinte: “ Não mais a autoridade, nem na Igreja nem no Estado, nem na terra nem no dinheiro.” O ideal de justiça absoluto, que é aquele de Proudhon comporta igualdade e liberdade, A igualdade realisar-se-à pelo mutualismo, a liberdade pelo federalismo e teremos assim um estado que poderemos chamar de anarquista. “ Nesta simples sinonímia ( federalismo e mutualismo) é dada a revolução inteira, política e económica...”
Proudhon encara aliás uma vida societária complexa e desdobrada. No seu federalismo que é a sua teoria das relações humanas, a lei autoritária vai ser substituída pelo contrato concebido livremente por uma vontade livre. Rousseau, ao qual pensamos imediatamente, “ nada entendeu do contrato social”. Com efeito, “ o contrato social, segundo Rousseau, não é outra coisa que a aliança ofensiva e defensiva daqueles que possuiem contra os que não possuiem.”
O que é então este contrato social que preconiza Proudhon? “ O contrato social é o acto supremo pelo qual cada cidadão compromete à sociedade o seu amor, a sua inteligência, o seu trabalho, os seus serviços, os seus produtos, os seus bens; em troca da afeição, das ideias, trabalhos, produtos, serviços e bens dos seus semelhantes: a medida do direito para cada um estando determinada sempre pela importância da sua quota, e a cobrança exigível à medida das entregas... O contrato social deve ser livremente debatido, individualmente consentido, assinado, manu propria, por todos aqueles que participam...O contrato social é de essência do contrato comutativo: não deixa somente o contratante livre, aumenta a sua liberdade, não somente lhe deixa a integridade dos seus bens, acrescenta à sua propriedade; não prescreve nada ao seu trabalho, só assenta nas permutas... Tal deve ser, segundo as definições do direito e a prática universal, o contrato social.”
Este contrato, em lugar de ser social, pode ser federal. Sinalagmático e comutativo, é agora chamado a reger as relações entre particulares, entre comunas, cantãos, províncias ou Estados. O que faz o seu interesse é que sempre, por um tal pacto, cada um, ninguém físico ou moral, reserva-se “ mais direitos, liberdade, autoridade, de propriedade” do que abandona.
Transportados na esfera económica, o federalismo torna-se mutualismo ou garantismo e enquanto que o federalismo liberta o cidadão, o mutualismo liberta o produtor e o consumidor. Com efeito, o valor de troca duma mercadoria estando medidos pela quantidade de trabalho necessário para a produzir, todas as trocas poderiam ser feitas por um Banco nacional que consentiria empréstimos sem interesses e aceitaria em pagamento as vantagens do trabalho. deste modo, a tirania do ouro seria suprimida, cada produto tornar-se-ia moeda corrente, produtores e consumidores estariam associados por um acto de livre vontade. A verdadeira mutualidade sendo “ aquela que dá, permite e assegura seviço por serviço, valor por valor, crédito por crédito, garantia por garantia”, a sociedade compreenderá “ camponeses mestres do solo que cultivam...”, “ miríades de pequenos fabricantes, artesãos, mercadores...”, enfim “ as companhias operárias”. O fim destas companhias operárias será de fornecer à sociedade os produtos e serviços pedidos “ ao preço mais perto do custo”. Os operários serão associados com “ direitos indivisamente na propriedade da companhia”, terão a possibilidade “ de encher todas as categorias” e deste facto terão de possuir “ uma aptidão enciclopédica”, participarão aos benefícios e cada um será “ livre de deixar voluntariamente a associação”.
Reconhece-se aí a ideia de justiça cara a Proudhon, com os seus dois compostos: igualdade e liberdade. Estamos ainda longe - e não o estamos a dissimular - dum colectivismo de Bakunine ou dum comunismo dum Kropotkine. Mas se repararmos que a ideia essencial em Proudhon é a liberdade, veremos imediatamente que é em suma sobre os meios que difere Proudhon e os libertários que o continuarão. Pelo federalismo e o mutualismo em direcção à liberdade diz um, pelo federalismo e o comunismo “antiautoritário” em direcção à liberdade dirão os outros. O objectivo permanece o mesmo.
Quanto a saber se para chegar aos seus fins, Proudhon era partidário ou não da violência, cada um conhece os textos contraditórios que podemos juntar ao dossier.
Terminaremos esta exposição das ideias proudhonianas por uma página que nos parece resumir bastante bem o que precede:
“... Menos autoridade, quer isso dizer o que nunca vimos, o que nunca comprendemos, o acordo de cada um com o interesse de todos, identidade da soberania colectiva e da soberania individual.
Menos autoridade! quer dizer dívidas pagas, servidões abolidas, hipotecas levantadas, rendas reembolsadas, despesas de culto, de justiça e de Estado suprimidas; crédito gratuito, trocas igual associação livre, valor regulado; educação, trabalho, propriedade, domicílio, bom mercado, garantias; Menos antagonismo, menos guerra, menos centralização, menos governo, menos sacerdotes. Não é a sociedade saída da sua esfera, caminhando numa posição invertida, de baixo para cima?
Menos autoridade! quer dizer ainda, o contrato livre em lugar da lei absolutista; a transacção voluntária em lugar da arbitragem do Estado, a justiça equitativa e recíproca em lugar da justiça soberana e distributiva; a moral racional em lugar da moral revelada; o equilíbrio das forças substituídas pelo equilíbrio dos poderes; a unidade económica em lugar da centralização política. Mais uma vez, não é isto o que ousei chamar uma conversão completa, uma rotação sobre si mesma, uma revolução?”
Os anarquistas, que repugnam aceitar o patronato duma individualidade, mesmo ilustre, não hesitaram entretanto a reclamarem-se de Proudhon e em verem nele o primeiro teórico da doutrina.
Desde 1874, encontramos no Bulletin de la Fédération jurassienne, orgão dos primeiros anarquistas militantes após a sua ruptura com Marx, a seguinte declaração precisa: “ A anarquia não é uma invenção de bakunine; se queremos ligar absolutamente ligar as doutrinas a nomes de homens, é necessário dizer anarquia proudhoniana, pois Proudhon é o verdadeiro pai da teoria an-arquista.”
Na sequência todos os teóricos libertários, sejam eles anarquistas-comunistas como Grave e Tcherkesooff, anarquistas-individualistas como V.Serge ou Benjamin R. Tucker, anarquistas sindicalistas como P. Besnard - e só estamos a citar alguns nomes tomados ao acaso - e todos reivindicam Proudhon.
Bakunine e Kropotkine, cujo testemunho faz autoridade, celebraram ao desafio o quanto eles eram devedores a Proudhon. O primeiro, protestando pelo seu “ terno respeito (...) pela memória de Proudhon...”, vê no anarquismo “o proudhonismo largamente desenvolvido e empurrado até às suas últimas consequências”.
O segundo, tomando de aluguer as “páginas admiráveis sobre o Estado e a anarquia”, desenvolvidos por Proudhon, exalteceu este pensador “que sem conhecer a obra de Godwin, colocou de novo os fondamentos da anarquia”. Mas o testemunho mais célebre e o mais frequentemente citado é certamente o de Kropotkine no Processo de Lyon: “Censuraram-me ainda de ser o pai da anarquia. É muita honra que me querem fazer. O pai da anarquia é o imortal Proudhon, que a expôs pela primeira vez em 1848.”
Deste modo Proudhon aparece, tanto pela sua obra como pela homenagem que lhe foi feita, como o fundador da doutrina anarquista.