Friday, January 26, 2007

Proudhon: Da Análise dos Conflitos à Teoria da Justiça


A partir desta aproximação entre os dois conceitos de conflito e de justiça, queria colocar um problema inerente à obra de Proudhon: como é que Proudhon explicou, justificou, a passagem dum mundo de conflitos, de antagonismos generalizados para um mundo de Justiça? Como é que esta “transmutação”, como ele escreve, poderia realizar-se concretamente e porquê? E quais os instrumentos intelectuais que permitem justificar esta transmutação? Proudhon não agravou este paradoxo sublinhando a importância do conflito, afirmando a perenidade dos conflitos através da história, multiplicando as suas formas, evocando a violência dos conflitos no período que lhe era contemporâneo? Todavia é bem uma tese constante nele que esta “transição”, esta “transmutação” é possível. Para responder a este problema, devemos colocar três questões:
Antes de tudo, que análise fez Proudhon dos conflitos e o que é preciso entender por isso? Os textos consagrados a este aspecto são, como o sabemos, bastante numerosos e muitas vezes embaraçosos pelas suas nuances e a sua subtilidade. Sobre este aspecto, parece-me que é preciso mostrar que não há em Proudhon uma teoria unilateral do conflito, mas, pelo contrário uma série de distinções entre diferentes tipos de conflitos que é preciso distinguir e diferenciar. A história passada, do mesmo modo que a sociedade do XIX século, são atravessadas por múltiplos conflitos, económicos, políticos, ideológicos, de natureza diferente, de intensidade variável, desde a violência das guerras até às formas atenuadas das relações de antinomias.
A segunda questão é portanto a da passagem dos conflitos às instauração da sociedade justa. O que significa, por exemplo, a transmutação do conflito a este equilíbrio que Proudhon evoca desde os seus primeiros escritos? E parece-me que as distinções a fazer entre os tipos de conflitos ajudar-nos-ão a compreender a possibilidade da passagem: a transmutação, se ela se realiza, far-se-ia por vozes divergentes conformemente a esta heterogeneidade dos conflitos.
Por fim, este estudo da passagem nos conduz a retomar o problema da Justiça ela própria, e a repensar a teoria do conflito no interior mesmo da sociedade justa: será que a Justiça suprime os riscos de conflito? Será que ela fecha a era dos conflitos e será que lhes dá novas características? Seria o alvo deste desvio pelo estudo dos conflitos em vez de retomar, deste ponto de vista, a teoria da Justiça, e de reconsiderar o status do conflito, se tiver lugar, no seio da sociedade de justiça.
Antes de começar, devo confessar que este programa de trabalho é demasiado vasto para uma única exposição. Não pretendo portanto fazer a volta de todos os problemas que deveriam ser evocados neste quadro: não procurava que colocar questões e algumas hipóteses. Convinha, em particular, reconsiderar atentamente as palavras que emprega Proudhon, e em fazer uma análise mais atenta; ficarei , a este sujeito, por indicações sumárias.
A Análise dos Conflitos. Se colocarmos a Primeira Memória (1840) e o Sistema das Contradições (1846) no contexto intelectual destes anos 1820-1848, será fácil mostrar que Proudhon se insere, sem ambiguidade, entre os que poderíamos nomear os “conflitualistas” desde Saint – Simon. A sua originalidade em relação aos liberais não é duvidosa. Os liberais podem, certos, reconhecer a existência de conflitos sociais; Tocqueville não nega a permanência dos conflitos ligados à avidade dos bens materiais; Guizot pode chamar a atenção sobre a realidade dum conflito de classes, mas estes liberais consideram que estes conflitos são parciais, provisórios, e, para Tocqueville, o movimento inelutável em direcção à igualdade das condições diminuirá a importância. Proudhon, pelo contrário, com Eugene Buret e antes de Marx, mais próximo dum movimento social de contestação, desenvolve a tese segundo a qual a sociedade está atormentada por um conflito económico radical entre o capital e o trabalho, por um roubo incessantemente renovado pelo regime da propriedade. Há bem uma “guerra” ao redor do facto fundamental da propriedade. Desta primeira análise, podemos aclarar uma primeira definição de um conflito social: Proudhon precisará de seguida duas noções complementares, a de força e a de antagonismo. O conflito supõe o afrontamento de forças, e veremos como estas forças são diversas. No caso que nos ocupa, o do “roubo” proprietário, as forças em presença são bem o capital e o trabalho ou, noutros termos, os proprietários e os trabalhadores. Estas forças estão em relação de antagonismo, de oposição, de afrontamento pois que, neste caso, estas forças opõem-se pela partilha dos valores produzidos, pela apropriação da “força colectiva” que emana do processo de trabalho, por uma entrada comum constituída pelo conjunto dos valores produzidos.
Entretanto, se Proudhon é original em relação aos pensadores do liberalismo, também o é em relação aos conflitualistas tais como Eugene Buret ou Marx. Para ele, seja qual for a importância desta “guerra” de classes, ela não é suficiente para pensar o conjunto das relações de antagonismo próprias ao regime proprietário. O Sistema das Contradições dá conta do conflito das classes situando-o num sistema mais alargado de contradições múltiplas. Esta análise de 1846 põe em evidência um conjunto de dialécticas por antinomias que são, por exemplo, as dialécticas estruturais do valor de uso e do valor de troca, ou a dialéctica conflitual da concorrência e do monopólio. Os conflitos não são eliminados igualmente: encontram-se, pelo contrário, multiplicadas. A concorrência, por exemplo, “ permanece uma guerra civil onde os produtores, em vez de se entenderem no trabalho, esmagam-se e trituram-se uns e outros pelo trabalho”. O mesmo, a livre troca, Proudhon diz-nos: “ O livre comércio, quer dizer, o livre monopólio, é a sagrada aliança dos grandes feudatários do capital e da indústria, o monstro de argamassa que deve acabar sobre cada ponto do globo a obra começada pela divisão do trabalho, as máquinas, a concorrência, o monopólio e a polícia; esmagar a pequena indústria, e submeter definitivamente o proletariado”. O mundo da produção e do consumo está atravessado por conflitos económicos múltiplos que recordam os termos: exploração, roubo, corrupção, concorrência, exterminação, violência, “pilhagem legal e oficial”.
Um segundo conjunto de conflitos caracteriza as relações políticas. Há uma especificidade do conflito político ou devemo-lo rebatê-lo sobre os conflitos económicos? A resposta de Proudhon é, sobre este aspecto, bastante clara e não neglicencia as situações históricas particulares. Houve circunstâncias, aquando dos acontecimentos de Junho de 1848, por exemplo, a acção política obedece directamente aos interesses dos que têm posses e reproduz a guerra das classes.” O poder... encontra-se acorrentado fatalmente ao capital e dirigido contra o proletariado” escreve Proudhon nas Confissões dum revolucionário. Mas a critica do político tende a levar mais longe a análise da relação conflitual entre o político e o social, entre o Estado e a sociedade civil. Para além dos afrontamentos que traduzem as oposições de classes e de interesses, Proudhon faz aparecer um conflito estrutural entre a criatividade da sociedade civil e as reacções burocráticas do Estado, - entre as exigências de liberdade e o monopólio das iniciativas pelo Estado -, entre o pluralismo criador da sociedade e a tendência centralizadora e destrutiva do Estado. Mais que um conflito visível e aberto entre duas forças afrontadas, Proudhon mostra um antagonismo permanente e fundamental, mesmo se escapa à consciência de bem dos cidadãos, entre o social ( plural, criativo, móbil, variável...) e o político sob a sua dupla forma institucional e executiva (única, repetitiva, imóvel, constrangedora). Este conflito é por inteiro atravessado pelo exercício do poder e da dominação.
Nota-se claramente nos primeiros anos do Segundo Império durante os quais se manifesta a tendência decididamente centralizadora e “contra-revolucionária” do governo. A dominação pode adquirir formas múltiplas, desde a corrupção até ao recurso á violência das armas, mas a linha permanente está para o bem do exercício do poder e da dominação contra as forças sociais.
Contra esta dominação, as formas de oposição e de resistência variam segundo as circunstâncias históricas: “resistência legal” e ilegal, campanhas públicas, manifestações, apelos, declarações … Estas oposições simbólicas confirmam o carácter prático e simbólico do político.
3/ Ao evocar estes conflitos simbólicos (conflitos das ideias, das crenças, das doutrinas, das ilusões e das imaginações também), nós chegamos a um terceiro tipo de conflitos ao qual Proudhon concede uma importância considerável. É o tema central do seu grande livro, A justiça na Revolução e na Igreja, que opõe dois sistemas de convicções, duas filosofias, nesta segunda metade do século XIX. Sem dúvida, a religião e a teoria revolucionária sucedem-se num esquema de evolução: o pensamento revolucionário é posterior à religião e permite compreendê-la. Mas se a religião declina, ela não tem nem força nem consequências, e é mesmo no conflito que ele se move entre a fé religiosa e a razão revolucionária. Conflitos, críticas, daitribes, inventivas, são tanto mais importantes e significativas que as ideias não são somente palavras ou símbolos, elas mantêm sempre, de qualquer forma, relações com as estruturas, com as instituições, com as práticas, mesmo que elas os inspirem, os legitimizem, lhes deêm sentido, ou os contestem e os debilitem. Todavia, este conflito entre o pensamento religioso e o pensamento revolucionário não esgota o enorme campo de conflitos simbólicos. Poderá afirmar-se que todos os escritos de Proudhon expõem, retratam as oposições de ideias, de debates, de choques de teorias e de convicções. A Primeira memória expõe detalhadamente as diferenças teóricas visando legitimar a propriedade e, fazendo a crítica. As obras históricas, As confissões de um revolucionário, contam ao pormenor os combates ideológicos entre reaccionários e democratas, conflitos entre os partidos e representantes dos diferentes partidos. E Proudhon toma o seu lugar com impulso nestes conflitos misturando inventivas e argumentos de base.
Se a importância é assim considerável que ele mantêm ao provar conflitos no passado e no presente, vê-se o problema em que ele próprio se encontra, e pode-se interrogar sobre a possibilidade de construir uma teoria convicente da justiça e de um mundo justo.
4/ Antes de prosseguir neste sentido, é preciso regressar à concepção proudhoniana do conflito e, destacar que as indicações que nós vimos a recordar não constituem de modo algum, todos os conflitos das fontes de destruição ou de regressão. Mesmo à volta das páginas de A guerra e a paz sobre às quais eu regressaria, muitas advertências são feitas sobre o carácter criador dos conflitos, ou pelo menos, de certos tipos de conflitos.
É um tema essencial do sistema das contradicções que as antinomias são mesmo condições da vida e que portanto, os conflitos que elas provocam, participam da vida da história: “A antinomia é … a lei íntima dos seres, o príncipio das flutuações do espírito e, por conseguinte dos seus progressos, a condição sinequanon da vida na sociedade, como no indíviduo. É o príncipio desta audiciosa construção que analisa as dialécticas antagónicas da economia e demonstra que toda a vida e todas as violências da ecomonia se explicam por este sistema das contradicções. Proudhon pode portanto, fazer uma defesa e apologia da negação, esta força de desconstrução da positividade, força que cria o movimento pelo conflito e, proibe a imobilização da tese.
A nível empírico das relações sócio-políticas, o facto de opôr-se, de afirmar-se contra, não é, certamente destruidor. Proudhon faz a apologia da afirmação de sua natureza contra as forças esteriores; como ele o aconselha aos operários de 1846: “Distinguir-se, definir-se, é ser; assim como confundir-se e absorver-se é perder-se”. A “separação”, diz ele ainda, “é a condição da vida”. Esta afirmação colectiva de sua natureza não é necessariamente o motim, ela pode ser “um corte digno e racional”, a forma de conflito adaptada à vida política num período relativamente não violento. É ao distinguir-se, ao afirmar-se contra, que uma classe acede à sua consciência e à capacidade política.
O que é verdade num partido, numa classe social, o é também para o indíviduo que, para ser, deve opôr-se e diferenciar -se. Proudhon não esconde o seu gosto pela polémica, a sua satisfação em entrar em conflito com os seus contradictores. É uma virtude do “humor combativo” que permite uma clarificação das diferenças e dos desacordos em vista de uma melhor compreensão das posições. Enfim, nesta apologia dos conflitos, acrescentamos o caráter intelectualmente benéfico das construções onde se opõem os príncipios, as teses e as anti-teses brutalmente definidas. Proudhon afeiçoa as posições radicais junto dos seus opositores: em A justiça, ele não se atrasa nas subtilezas da história da religião, nas múltiplas heresias e reformas, ele prefere polimecar mais contra Bossuet ou de Bonald do que com Fénelon ou Lamennais porque lhe parece mais claro ao colocar em evidência os príncipios fundamentais da religião, que lhe parecem mais legíveis junto dos tradicionalistas. É também o sentido do prólogo no sistema das contradicções no qual Proudhon explica a utilidade intelectual de uma polémica (num caráter romântico poderia-se dizer) contra Deus, conflito imaginário mas que esquece ao pensar na totalidade da história, a totalidade do sistema social e, exerce o espírito ao pensar dialecticamente a totalidade. A este nível também, nível puramente intelectual, o conflito é criativo. A imaginação teórica a um valor heurístico, é um instrumento de procura, de reflexão e, a construção de grandes oposições dramáticas, - o homem contra o sagrado, a liberdade contra o poder, o progresso contra a fé, é um meio priviligeado de conhecimento.

II - O problema da “transmutação”. Chegamos assim à dificuldade central, a da “transição”, esta “grande transição” da qual fala desde já o sistema das contradicções e, que marcaria o acesso ao mundo da justiça. Não existe lá um único paradoxo e não chegaremos nós. A uma evidente dificuldade? O universo sócio - histórico de Proudhon é um universo iminentemente conflituoso em todas as suas dimensões; os conflitos sociais, económicos, políticos, intelectuais acompanharam toda a história através dos permanentes antagonismos; e, como nós veremos, um pensamento conflitualista é necessário e produtivo. Nestas condições, existe um paradoxo audaz junto de Proudhon, o paradoxo ao afirmar que o mundo de justiça é possível, provável, então tantas afirmações conduziriam sobretudo a concluir que a humanidade está condenada às divisões, aos antagonismos e aos conflitos. O paradoxo atende a toda a sua intensidade nas últimas páginas da guerra e a paz, o quinto livro intitulado “Transformação da guerra”, apesar de Proudhon, depois deter amplamente demonstrado que a história foi feita por guerras sucessivas e que as guerras destacam uma verdade de direito, o direito da força, conclui que a era das guerras chega a seu termo e que a humanidade vai entrar na era da paz. Muitos leitores puderam pensar que a demonstração do livro não conduzia a esta conclusão optimista.
A este problema de passagem , da transformação, do conflito ao justo, não existe, penso, uma resposta única, como não existe, para Proudhon, um momento único de ruptura onde, bruscamente e definitivamente se passaria de universo das lutas a um universo de paz. Pode-se atribuir a Marx este modelo de filosofia da história já que a destruição da propriedade privada teria como efeito fatal destruir todo o edifício do velho mundo e instalaria a sociedade comunista. O modelo de pensamento de Proudhon é elogiado nesta perspectiva que adquire simultâneos de catástrofe e libertação definitiva. As soluções para o problema têm que se procurar, parece-me, não numa transição apocalíptica do conflito à justiça, mas na convergência de três dinâmicas: económica, política e ideológica. É, pelo aprofudamento destes três tipos de conflito que Proudhon pode argumentar a possibilidade da “transmutação”. Não existe, pois , argumentação simples, nem de adiamento pela síntese dialética, mas de convergência das três espécies de conflitos segundo as diferentes vias de “transição”.
1/ A primeira transformação, aquela da economia, é, seguramente, aquela sobre a qual Proudhon mais meditou, sobre a qual ele enunciou as hipóteses, por vezes nuances na expressão, mas prosseguindo uma linha permanente desde A celebração do Domingo até A Capacidade política das classes operárias.
A primeira memória podia deixar pensar que o regime económico estava inteiramente fundado sobre a exploração do homem pelo e que a única conclusão possível não poderia ser a destruição da propriedade. Ora, O sistema das contradicções precisa que este conflito, por muito importante que ele seja, deve ser, para ser compreendido e explicado, reposto na série das contradicções: a propriedade é “inexplicável fora da série económica”. Ela é um termos dos antagonismos e importa procurar a transformação e não a ocultação. E nesta perspectiva, Proudhon desenvolve a tese segundo a qual os conflitos económicos, o choque dos antagonismos, fazem aparecer, apesar de tantas aparências contrárias, as regulações que constituem as premissas e as condições dos futuros equilíbrios. A teoria da “constituição do valor”, que devia escandalizar Marx, mostra sobre um fenómeno também fundamental este do valor de troca, não só a possibilidade da regulação dos valores, mas sobretudo o facto que o desenvolvimento conflitual das trocas injustuas contem as premissas da “proporcionalidade dos valores”. Seguramente, o regime proprietário, tal como está instituído, impede a realização deste “valor ao instituído”, mas esta constituição realiza-se parcialmente, apesar destes obstáculos e anuncia o que serão as trocas na sociedade justa. É dizer, outros termos, que a “transmutação” não será a destruição radical dos antagonismos anteriores, mas a sua transformação pelo desempenho do que eles admitem de pontencialidades para os “equilíbrios económicos” futuros.
Para nosso problema, esta noção de “equilíbrio” é essencial. Proudhon faz o seu uso alargado na “A justiça”. Será que o equilíbrio é uma simples pacificação dos benefícios ou é resultante de forças opostas, de forças antagónicas nas quais o confronto conduziria a um equilíbrio dinâmico? É mesmo, certamente, esta segunda interpretação que lhe convêm reter. O equilíbrio é, não uma conciliação pacífica, mas a continuação não violenta dos antagonismos, regulada, mantida por direito. Estes termos de equilíbrio ou de “balança” não devem ser cumpridos para designar uma nova ordem, mas antes para designar uma nova forma de afrontamento, de equilíbrio entre forças, equilíbrio que seria, por vezes, criador de direito e regulado pelo direito. Tomemos dois exemplos desta concepção: a teoria da propriedade tal como ela é repensada no livro terminado em 1862 e não publicado pelo activo Proudhon e, a teoria da concorrência. Na Teoria da Propriedade, ele parece legitimar a propriedade e moderar as suas críticas nos anos de 1840, mas é para retomar e radicalizar uma teoria conflitualista dos benefícios entre a propriedade e o poder político. Ele destaca bem que o equilíbrio não é comparável a um benefício imóvel, estático, entre os pesos diferentes onde a propriedade seria um simples contra-peso ao poder do Estado. Ele faz deste equilíbrio um afrontamento continuado entre dois princípios ameaçadores, entre dois absolutos, entre duas ameaças permanentes. A propriedade é um absoluto, ela é um absoluto, ela é essencialmente egoísta e associável, repete Proudhon. O proprietário tende continuamente a romper o laço social. E, até, o Estado é essencialmente e sempre uma ameaça para os libertos e uma força de destruição. O equilíbrio atendido é pois, presenciado por duas forças antagónicas, o resultado deste confronto permanente, a continuação de um conflito que, deixando de ser evidente e violento, permanece oculto e reprimido. O equilíbrio é o reencontro das violências potenciais que não estão aniquiladas, mas que são devolvidas compatíveis no direito. E Proudhon sustenta que o equilíbrio é obtido pela “luta dos elementos, a oposição dos contrários”, por outras palavras, pela manutenção do antagonismo.
Segundo exemplo, a concorrência, que não é um jogo amável entre actores benévolos, mas um conflito de interesses individuais ou colectivos. Ela é o sistema de afrontamento entre produtores ansiosos em aumentar os seus benefícios e que, pelo reencontro dos interesses antagónicos, são afectados ao confrontar-se às disciplinas variáveis do mercado. Vê-se nas páginas de Ideia geral da Revolução, consagradas às actividades comerciais onde o reencontro das agressividades concorrentes impõe o espírito de iniciativa e não exclui os insucessos. A concorrência é um equilíbrio conflituoso entre forças antagónicas múltiplas: “… nesta arena da indústria, as forças estão em luta não menos ardente sobre os campos de massacre; também lá existe a destruição e absorção mútua”.
2/ A segunda transmutação, a da política, não é menos difícil de conceber à proporção do ponto de partida radical de Proudhon. Como, efectivamente, chegar a superar o carácter radicalmente destruidor? O que faz aparecer os textos anteriores a 1848 e compostos durante o período revolucionário, é mesmo este carácter opressivo e destruidor do Estado que, em todos os pontos, opõe-se aos carácteres criadores da sociedade civil. Proudhon, repete-o em inúmeras formulações:
“O governo é de sua natureza contra-revolucionário, ou ele resiste, ou ele oprime, ou ele corrompe, ou ele danifica. O governo não sabe, não pode, não quererá nunca outra coisa”.
Se ele assim o é, se o poder é essencialmente “liberticida”, a exigência revolucionária não deve visar a sua eliminação e é, efectivamente, a reivindicação de Proudhon em 1851: “Questão de autoridade, questão de governo, mesmo popular: a Revolução está lá”.
Mas nós não estamos lá numa concepção “positiva e realista do poder social”, como ela será procurada na Justiça. Sabe-se que Proudhon incidirá a sua concepção e introduzirá, pela sua teoria do federalismo, uma dialéctica, “positiva e realista”, entre a Autoridade e a Liberdade. Mas será que o federalismo faz desaparecer os benefícios de força e os potenciais conflitos? A Centralização não será ela uma ameaça permanente e um perigo sempre presente? É certamente uma das dimensões do federalismo: o federalismo proudhoniano sendo, não a extinção dos conflitos, mas o meio de opôr obstáculos à dinâmica destruidora dos governos e dos Estados. Ainda o federalismo político é insuficiente para deter este tendência à centralização liberticida. Esta defesa só é possível se tomar apoio sobre um federalismo generalizado, sobre a federação “agrícola industrial”. Pode-se pensar que com a ausência deste degrau económico, o federalismo político seria incapaz de resistir aos antagonismos.
3/ O terceiro nível, o simbólico, coloca de novo outros problemas e mais complexos. Ele não actua mais aqui ao passar de uma estrutura política para uma outra, do estado centralizado para federalismo, mas em executar todo um conjunto de mutações intelectuais e morais cuja lista é longa. Ele actua, seguramente, ao passar de uma filosofia da transcendência a uma filosofia de iminência e, neste domínio, Proudhon pode pensar que esta transição começou desde de já e actua sobretudo ao desempenhar fortemente as significações gerais. Mas, se se faz uma recurssão das mutações atendidas, a lista é muito considerável e permanece a questão das transições em tais domínios: - sobre o plano das representações sócio-políticas, ele actua ao passar das representações de insolariedade às representações de justiça e de igualdade, - dos hábitos de rivalidade às práticas dos ajustes contratuais -, das ilusões do centralismo político às representações mutualistas;
- Sobre o plano psicológico e moral, ao passar dos egoísmos individuais para o respeito de outrém, - de desfazer-se da imoralidade ligada ao regime proprietário -, ao passar da ânsia burguesa ou da passividade plebeia à dignidade e à responsabilidade;
- E sobre o plano teórico, ao passar dos sectarismos a uma representação teórica e prática da justiça, - da cumplicidade e da tolerância aos olhos das injustiças ou das corrupções à exigência da justiça.
Visão ambiciosa que diz respeito às mentalidades, aos modos de pensamento, a psicologia colectiva e a psicologia individual. Proudhon acumulou sobre estes sujeitos das indicações múltiplas o que eu não pretenderia de modo algum recordar e me agarraria ao único problema que nós tinhamos colocado sobre o conflito e a justiça.
Conflito e Justiça. Esta questão da transmutação das representações e das teorias reconduz-nos ao problema do qual nós estamos de partida, aquele saber se esta mutação conduz a um universo pacífico onde os conflitos seriam evacuados ou ultrapassados ou sufocados? O que nós dissemos dos equílibrios, podemos reter que as trocas económicas, as concorrências, as práticas contratuais requerem, pelo contrário, a acção dos produtores e o seu empenho nas formas equilibradas dos conflitos. E até, o federalismo supõe a acção contínua dos cidadãos na sua comuna e contra os riscos de centralismo. É pois a mesma resposta que Proudhon formula no que diz respeito às representações reguladoras de um mundo de justiça. Tem-se uma clara ilustração na sua concepção da razão colectiva. Esta não está certamente oposta aos debates, aos discursos e às polémicas; ela é antinomia de um saber transcendente que seria imposto às consciências doces, ela nasce da confrontação e é destas múltiplas discussões que ela se cria. Proudhon formula-o assim nos vínculos literários e há espaço para pensar que esta fórmula seria idêntica num mundo de justiça: “Esta razão geral, impessoal, sintética, que rebenta de todas as ideias em conflito …”.
A última resposta á nossa questão, nós poderiamos proculá-la na representação que Proudhon propõe do cidadão - produtor no seio desta sociedade justa, no seio destes equílibrios, destes “balanços” e destes debates. Este cidadão, tal como Proudhon imagina, está também afastado do cidadão fechado sobre ele mesmo e cercado nas suas satisfações individuais, que afastam o cidadão conformista e docilmente adaptado a uma ordem repressiva. Proudhon condena também vigorasamente a indeferença política do pequeno - burguês satisfeita a obediência servil do cidadão adorador de um poder absoluto. Este cidadão livre, Proudhon imagina-o:
- Liberto de ignorância, chegado a uma “atitude enciclopédica” como ele diz na ideia geral da revolução, graças a uma “educação integral”, como ele diz na capacidade política e portanto, iminentemente capaz de agir, de intervir, de ser um actor social;
- Cidadão respeitado e respeitador, como ele é repetido na justiça que definir o benefício da justiça, tudo primeiramente como um benefício de respeito entre os seres. Respeitador de sua natureza e inquieto em ser respeitado na sua dignidade;
- Cidadão empreendedor, artesão, comerciante e levado a tomar riscos nas suas pequenas empresas;
- Negociador exigente nos contratos, medindo o seu direito à importância da sua quota “inquieto para que os seus contratos sejam realmente justos e recíprocos e, no mutualismo, inquieto em assegurar a reciprocidade generalizada”;
- Produtor activo se ela faz parte de uma companhia operária numa grande empresa, trabalhador participante nas decisões, nas eleições tal como ele participa nos benefícios;
- Cidadão, enfim, activo na sua comuna na sua nacionalidade e inquieto e assegurar e defender da sua comuna e sua nacionalidade.
Compreenderemos, pois, os “equilíbrios”, os “balanços”, não como as estruturas que se manteriam imóveis desde logo que elas fossem estabelecidas,mas como relações dinâmicas, asseguradas pelas iniciativas e as acções dos cidadãos; relações que não destroem os antagonismos mas perseguem-os num sistema não fechado, não congelado, num não - sistema aberto às iniciativas e às discussões. A sociedade justa não marca o fim das acções, nem marca o fim da história: a revolução não é o fim dos antagonismos como não há fim de história.