A REFLEXÃO DE PROUDHON SOBRE AS RELIGIÕES
Após o desaire da Revolução de 1848 e o refluxo das expectativas revolucionárias, Proudhon interroga-se sobre o sentido das mutações sociais em meados do século XIX. Pensa que através da confusão dos acontecimentos, se revela uma ruptura a longo termo entre dois mundos: o universo do passado, dominado pelas religiões, e o mundo futuro do qual sobra resgatar a nova filosofia: a “filosofia popular”.Para além duma crítica das religiões, Proudhon desenvolve a tese segundo a qual toda a sociedade aderente ao princípio duma transcendência divina entra necessariamente numa lógica com múltiplas consequências concretas. A religião não é , aos seus olhos, uma dimensão secundária que poderíamos relegar para o domínio do privado; ela é muito mais que um poder particular, o “poder espiritual” que seria equilibrado por contra-poderes temporais, como se tinha o costume de o repetir nesta época.Proudhon separa as situações particulares e os debates do momento, para considerar a importância histórica das tradições religiosas, melhor ilustradas pelo catolicismo, mas dos quais os traços essenciais e as consequências são, a seus olhos, universais. O exemplo do monoteísmo cristão mostra que a religião pode ser omnipresente à vida comum, desde a organização do trabalho até ao regime político, aos costumes e à vida privada. A religião não é portanto uma “ superestrutura” ou uma instância, ela é muito mais que um conjunto de crenças referentes ao lado de lá, ela tende a penetrar todas as dimensões da existência, tenham os participantes consciência ou não. Daí o plano de carácter enciclopédico deste somatório que percorre todos os aspectos da experiência humana, desde o status das pessoas, 2º estudo, até à vida moral, 12º e último estudo, passando pelo económico, o social, o político, o amor e o casamento.Todavia, estas páginas que fizeram escândalo não eram aos olhos de Proudhon, o essencial da obra. Como indica o título escolhido ( Da Justiça na Revolução e na Igreja), o projecto é muito mais contribuir à definição e à difusão desta “filosofia popular” que deveria animar a sociedade socialista, ou revolucionária, seja qual for a maneira pela qual a nomeamos.É nesta perspectiva que a reflexão sobre as religiões toma todo o seu sentido e toda a sua importância, porque, sobre cada uma das dimensões da vida social ( a propriedade, o trabalho, o Estado...) duas lições contraditórias terão que ser aprofundadas. Veremos antes de tudo que os princípios revolucionários se opõem radicalmente aos princípios religiosos: às doutrinas da transcendência, a revolução opõe o princípio da imanência da razão, da verdade e da Justiça. A obsessão do absoluto sob as suas múltiplas formas, a revolução opõe os princípios da relação, da reciprocidade e dos contratos.Uma segunda lição se retira das comparações com as sociedades da tradição. A história das religiões demonstra o carácter multiforme das consequências dos princípios fundamentais, os efeitos indefinidos da submissão ao dogma da transcendência. Podemos esperar que a adesão aos princípios revolucionários arrasta uma reorganização completa da sociedade, do mesmo modo que a adesão aos dogmas religiosos conduzia a organização geral das sociedades tradicionais.A ideia central de Proudhon é que todo o sistema de crenças num princípio transcendente engendra uma forma de pensar desigualitária que serve de justificação às hierarquias e às desigualdades. Todo um sistema de pensar serve de modelo analógico mil vezes repetido de maneira inconsciente: da mesma maneira que o homem é submetido a uma realidade que o ultrapassa, deve-se submeter-se aos seus superiores; do mesmo modo que o homem não é mestre do seu destino, é preparado a deixar-se despojar pelo seu mestre capitalista. Um jogo subtil de homologias e de repetições simbólicas indefinidamente expressas modelam as estruturas, preparam os espíritos e as sensibilidades a tolerar e a aprovar as desigualdades e as alienações. As análises de Proudhon valem frequentemente pela finura dos detalhes e a acuidade das intuições. Mostra, por exemplo, como os espaços, as arquitecturas, participam à conservação dos hábitos sem que os estejam conscientes, como a disposição dos lugares e das pessoas numa cerimónia ritual, confirma a separação dos sexos, o lugar central do padre, a superioridade dos ricos, o relegar dos pobres para o fundo da Igreja...Todas estas lições ajudam a pensar o que seria uma verdadeira sociedade revolucionária, tirando todas as consequências dos princípios de imanência e de pluralidade. Do mesmo modo que a injustiça religiosa se tornava presente em toda a organização social, a justiça revolucionária deveria inspirar toda a organização social segundo princípios radicalmente opostos. Como a concepção religiosa fundava a desigualdade económica e o poder do capital, o princípio revolucionário da Justiça funda a igualdade dos homens no trabalho e ilegitima o poder do proprietário. Como a religião legitimava os príncipes, o princípio revolucionário ilegitima os déspotas e os demagogos. O 6º estudo sobre o trabalho - ilustra perfeitamente este movimento alternativo. Proudhon radicaliza a oposição ao estabelecer que uma religião, ao exaltando a espiritualidade, arrasta inelutavelmente a ilegitimação e o desprezo do trabalho. Só a Justiça revolucionária, fazendo do trabalho o primeiro valor, em feito, em direito e em moral, poderia dar novamente ao trabalho toda a sua importância e aos trabalhadores todos os seus direitos.É uma outra lição vinda da religião que essa do poder da fé, pois que a força das religiões não residia somente nas estruturas e nas instituições: residia também na adesão íntima de cada um, na fé vivida dos crentes e a sua dedicação efectiva. Para Proudhon, a Justiça revolucionária deveria ter estes mesmos caracteres, não mais na cegueira e na ingenuidade, mas na clarividência dos princípios racionais. A evocação da religião é, ainda, esclarecedora, no que uma sociedade socialista não pode apoiar-se sobre a indiferença ou o cinismo de cada um. A Justiça não pode ser activa a não ser que ela seja também um princípio intensamente experimentado e compreendido por aqueles que a fazem existir.Este futuro é certo? Proudhon, apesar de algumas fórmulas confiantes, não está de modo algum seguro que o futuro se realizará nestes termos. A “decadência” é possível e as regressões a recear. É também o sentido deste livro e da sua escrita polémica como o de participar a uma defesa deste futuro para ajudar lucidamente à sua possível vinda.
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