HOMEM E LIBERDADE EM BAKUNINE O HOMEM FÁUSTICO POR EXCELÊNCIA
" Inimigo irredutível de todas as incarnações da repressão - Deus, o Estado, o Czar, a Policia - Bakunine tem um sentido frenético da liberdade. Mais vale a desordem, a grande desordem cruel e jovial, o apocalipse de bount camponês, o fogo e a chacina, do que a ordem infame defendida pelos lacaios do poder czarista, do que a coorte das aviltantes servidões internas.
Duas noções dominam a ideologia bakuninista: indivíduo e liberdade. São os dois pólos passionais em nome dos quais Bakunine trava um incessante combate com as instâncias da repressão.
A defesa bakuninista do indivíduo e da sua liberdade decorre a um tempo de uma repulsa quase instintiva por todas as formas da escravização e de um espiritualismo religioso que se manifesta frequentemente nos escritos de Bakunine."
Bannour, Wanda - "Bakunine" in História da Filosofia Ideias, Doutrinas- direcção de François Châtelet, Pub. D. Quixote, Lisboa, 1978, págs. 258-259. (sublinhados meus).
"Os anarquistas do Jura escreveram na Souvillier Circular, de Novembro de 1871, depois de desencadeado o ataque de Marx: "Como querem voçês que uma sociedade igualitária e livre possa surgir de uma organização autoritária? É impossível. a Internacional, o embrião da futura sociedade humana, deve ser desde o início a imagem fiel dos nossos princípios de liberdade e de federação, e rejeitar do seu seio qualquer princípio que implique autoridade e ditadura."
Jolle, James - Anarquistas e Anarquismo, Pub. D. Quixote, Lisboa, 1977, págs. 119-120. (sublinhados meus).
"Tudo o que vive...tende a realizar-se na plenitude do seu ser. O homem, simultâneamente ser vivo e pensante, para se realizar tem primeiro de se conhecer. (...) Para se realizar na plenitude do seu ser, o homem tem de se conhecer, e nunca se conhecerá de um modo real e completo, enquanto não conhecer a natureza que o cerca e da qual ele é produto. A não ser que queira renunciar à sua humanidade, o homem tem de saber, tem de penetrar com o seu pensamento o mundo real e, sem esperar atingir o fundo, tem de aprofundar sempre cada vez mais , a coordenação e as leis, pois a sua humanidade só se atinge por este preço... para que ele possa compreender a sua própria natureza e a sua missão neste mundo, sua pátria e seu teatro único; para que neste mundo de cega fatalidade, ele possa inaugurar o seu mundo humano, o mundo da liberdade. Tal é a tarefa do homem."
Bakunine - Conceito de Liberdade, Edições Rés limitada, colecção substância, nº3, Porto, 1975, págs. 7-8. (sublinhados meus)
"A realização desta tarefa não é só uma obra intelectual e moral; é antes de mais, tanto à escala do tempo como do ponto de vista do nosso desenvolvimento racional, uma obra de emancipação material. O homem só se torna verdadeiramente homem, só conquista a possibilidade da sua emancipação interior, quando conseguir romper as cadeias da escravatura que a natureza exterior faz pesar sobre todos os seres vivos."
Bakunine - Conceito de Liberdade, pág. 9. (sublinhados meus).
"...cada indivíduo tem, ao nascer, em graus diferentes, não ideias e sentimentos inatos como pretendem os idealistas, mas a capacidade material e formal de sentir, de pensar, de falar e de querer. Só traz consigo a faculdade de formar e desenvolver ideias e, como acabo de dizer, uma capacidade de actividade formal, sem nenhum conteúdo. Quem lhe dá o seu primeiro conteúdo? A sociedade."
Bakunine - Conceito de Liberdade, pág. 17. (sublinhados meus)
"Só serei verdadeiramente livre quando todos os seres humanos que me cercam, homens e mulheres, forem igualmente livres... de modo que quanto mais numerosos forem os homens livres que me rodeiam e quanto mais profunda e maior for a sua liberdade, tanto mais vasta, mais profunda e maior será a minha liberdade...eu só posso considerar-me completamente livre quando a minha liberdade ou, o que é a mesma coisa, quando a minha dignidade de homem, o meu direito humano... reflectidos pela consciência igualmente livre de todos, me forem confirmados pelo assentimento de toda a gente. A minha liberdade pessoal, assim confirmada pela liberdade de todos, estende-se até ao infinito."
Bakunine - Conceito de Liberdade, pág. 22-23. (sublinhados meus)
"Toda a teoria consequente e sincera do estado baseia-se essencialmente no princípio da autoridade, isto é, nesta ideia eminentemente teológica, metafísica, política, segundo a qual as massas,sempre incapazes de se governarem, deverão sofrer o jugo benfeitor dum sabedoria e duma justiça que, de uma maneira ou de outra, lhes serão impostas de cima".
Bakunine - Conceito de Liberda, págs. 28-29. (sublinhados meus)
"O Estado foi sempre o património de uma classe privilegiada qualquer: classe sacerdotal, classe nobiliária, classe burguesa; - classe burocrática e por fim, quando todas as outras classes estão enfraquecidas, o Estado cai ou eleva-se, como se quiser, como uma máquina. O Estado é a autoridade, a dominação e o poder organizado das classes possuidoras e supostamente esclarecidas, sobre as massas. Ele garante sempre o que encontra: a uns a sua riqueza, a outros a sua pobreza; a uns a liberdade baseada na propriedade a outros a escravatura, consequência fatal da sua miséria."
Bakunine - Conceito de Liberdade, págs. 29-30. (sublinhados meus)
"...hoje assentamos na absoluta necessidade de destruir os Estados ou, se quiser, na sua completa e radical transformação, querendo dizer com isto que, deixando de ser forças centralizadas e organizadas de cima para baixo, tanto pela violência como pela autoridade dum princípio qualquer, eles reorganizavam-se, - com liberdade absoluta para todas as partes."
Bakunine - Conceito de Liberdade, págs.31-32 (sublinhados meus).
I
1. Bakunine e a ideologia Faústica
"Quem não conhece o seu Fausto, o nosso Fausto?"
Miguel de Unamuno
O titulo acima exposto é deveras um titulo intrigante. Este é um trabalho sobre Bakunine e especificamente sobre o seu conceito de Homem e Liberdade. Só por isso, temos de ser realistas e considerar que é um tema um tanto ou quanto arriscado, não pelas teses que se vão aqui apresentar e defender pois quanto a isso estamos sossegados, mas porque Bakunine é um pensador quase esquecido.(1) Basta ver a ínfima bibliografia que nos últimos anos se vem publicando sobre este pensador que consideramos sui generis. Mas tentarmos estabelecer uma relação entre Bakunine e Fausto trata-se no meu entender de uma empresa ousada que por isso tem os seus riscos. Quando falamos de Fausto não nos queremos referir às diversas interpretações que inúmeros pensadores deram sobre ele. (2) Só isso, era tema para o trabalho e não o esgotaríamos. Trata-se de aqui levantarmos algumas questões sobre as possíveis relações que podemos estabelecer entre Bakunine e Fausto no seu sentido, mais geral, ou seja, o que está por detrás, da história, e parafraseando André Dabezies e João Barrento, chamaríamos de homem faústico e de ideologia faústica.
A primeira interrogação que poderíamos levantar é a seguinte: Até que ponto é Bakunine exemplo do homem faústico? Como o título, esta questão poderá deixar alguns confusos. Vamos tentar explicar o nosso pensamento. A história do mito de Fausto é uma história que mete respeito, primeiro pela antiguidade do mito que segundo os comentadores mais abalizados remonta ao século XVI segundo pelo número de pensadores que lhe têm feito referência. Perante esta problemática não pretendemos dar nunhum novo contributo mas há um conjunto de interrogações que queremos levantar. Em primeiro lugar já que falamos em homem faústico e ideologia faústica é importante marcar bem uma distinção entre faústico e faustiano. João Barrento faz esta distinção da seguinte maneira: "Mas, se é certo que o "faústico", como ideologia e como filosofia, deriva modernamente de Goethe, é também um facto que não encontramos o adjectivo neste autor. Conviria, aliás, para esclarecer o âmbito semântico dos adjectivos portugueses, por um pouco de ordem no uso, muitas vezes indiferenciado e pouco rigoroso, dos termos "faústico" e "faustiano". João Barrento vai prosseguir dizendo que: "O adjectivo "faustiano" servirá mais para referir, ainda antes de Goethe, mas também depois dele, uma figura histórico-lendária, depois também literária, e tudo aquilo que a caracteriza, quer num sentido mais neutro, quer, mais frequentemente, negativo, de acordo com a imagem dominante de Fausto até ao século XVIII. A temática faustiana é assim, a do hereje condenável, religiosa, moral, e politicamente, de que ainda encontramos ecos nas próprias versões modernas que, passando por cima de Goethe, regressam às origens (por exemplo a de Hanns Eisler). O Fausto primitivo não é, assim, "faústico", se entendermos que este adjectivo refere, depois de Goethe, um tipo humano, ideológica e filosoficamente marcado e positivamente conotado. Neste "segundo mito de Fausto" (Dabezies), em que os traços fundamentais da aspiração ilimitada e do esforço contínuo transformam a figura num modelo positivo, vamos encontrar as raízes, quer de uma "ideologia faústica" espedificamente germânica, quer de uma filosofia e de uma psicologia do "homem faústico universal". (3)
Naturalmente que não vamos defender a "ideologia faústica especificamente germânica" mas pelo contrário "uma filosofia e de uma psicologia do homem faústico universal".João Barrento ainda nos vai dizer mais uma coisa que a nós interessa especialmente: "Em conversas com o seu secretário Eckermann, Goethe não deixa dúvidas quanto à forma como o seu Fausto deve ser lido: não como epopeia nacional - assim como assim impossível numa Alemanha sem qualquer unidade -, mas antes como obra cujo sentido é universal e cósmico e cuja ideia central, se uma existe, é a do esforço humano como factor positivo de libertação."(4)
Relembro a interrogação atrás deixada sem resposta: Até que ponto é Bakunine exemplo do homem faústico? As duas características básicas do Fausto, é em primeiro lugar o culto da acção e em segundo lugar o universalismo cosmopolita. A dimensão faustiana mais importante é a da existência humana. Isto são dados que considero adquiridos e que não vou aqui discutir. Por aquilo que pretendo dizer sobre o conceito de homem e liberdade em Bakunine as características básicas do Fausto e a sua dimensão fundamental aplicam-se integralmente ao pensamento bakuniniano. Mas dizer isto parece muito pouco, pois sabemos bem como Hitler apreciava a frase faústica "No princípio era a Acção" e quando falamos em culto da acção em relação a Bakunine é num sentido diferente - o da prática revolucionária libertadora. Temos que procurar por outro lado. Fausto representa o homem ocidental por excelência, o que há de mais específico nele, os seus encantos, as suas desilusões, as suas ansiedades, as suas angústias, a sua vontade de agir, o seu universalismo, enfim o que há de mais representativo da tradição ocidental. Chegados a esta altura temos que perguntar pelo seguinte: Se Fausto é o representante da tradição intelectual até que ponto é Bakunine pertença dessa tradição? Esta é grande questão. Pela originalidade do seu pensamento, pela ousadia das suas propostas, pela recusa dos valores fundamentais dessa mesma tradição, pela recusa da constituição duma doutrina dada como evangelho, será Bakunine ainda um pensador da tradição? (5) A resposta ficará para o fim deste trabalho. Entretanto vamos expor o pensamento de Bakunine sobre o que ele pensa do homem e da liberdade.
II
2. Bakunine e o Anarquismo
Bakunine não foi o primeiro anarquista da história. Antes dele outros pensadores formularam pensamentos que se enquadram perfeitamente na teoria anarquista. Só para citar alguns podemos mencionar Godwin, Stirner e Proudhon. Mas os antecedentes segundo alguns, irão até muito mais longe. Mas se é verdade que Godwin nunca nos seus escritos se chamou anarquista, se Prodhon em determinadas fases do seu pensamento defendeu, sob certas condições, a propriedade privada se Stirner foi fundametalmente um individualista que não compreendeu ou não quis aceitar toda a temática da solidariedade humana de que o genuíno anarquismo deferido, só em Bakunine é que estão expostas todas as grandes linhas que os seguidores de Bakunine haveriam de desenvolver. Só para citar dois nomes : Kropotkine e James Guillaume. Portanto pensamos que não se tratará de um contrasenso se dissermos que Bakunine é o pensador que tornou o anarquismo um pensamento original de características universalistas.
A utopia directriz da doutrina de Bakunine é portanto a anrquia, ou antes, para seguir o uso estabelecido pelos pensadores anarquistas, a an-arquia. ao inserirem assim um hífen entre o prefixo e o substantivo "arquia", eles pensam fazer deste termo o equivalente do não-governo ou ainda do autogoverno. Segue-se que é o problema do Estado, do poder político, que se encontra no eixo das suas preocupações. Vamos ver ao longo deste trabalho como é que Bakunine coloca o problema de Estado e a sua relação com a questão do homem e da liberdade.
É verdade que se o anarquismo esteve muito activo durante o século passado e até à gerra civil de espanha conquistando largos sectores do proletariado e da intelectualidade, hoje em dia já não parece dar que falar. Existe somente a nível de consciências individualizadas. O anarquismo sofreu o assalto de três correntes políticas que contribuiram para ocultá-lo: a burguesia lutou muitas vezes ferozmente contra os anarquistas, mesmo quando realmente os não temia. Eram a má consciência do sistema, e isso é o que uma sociedade aceita menos bem, O marxismo oficial sempre viu no anarquismo uma doença infantil do comunismo, (6) suportou mal a utopia e o ideal libertários fundadores do anarquismo. Finalmente, os movimentos esquerdistas desprezaram muitas vezes os anarquistas, vendo neles irmãos inimigos pouco eficazes e embaraçosos. Assim, repelido de toda a parte, o anarquismo sofre o destino que lhe parece se fatal: o da marginalidade política que sempre lhe deixam os encartados de todas as revoluções.
Embora o anarquismo Bakuniniano não seja um sistema filosófico, como já ficou referido, refere-se-lhe implicitamente pelos seus ideais e pala sua filiação. Ignora-se frequentemente com efeito, que Hegel foi o guia de pensamento de todos os revolucionários do século XIX, mesmo quando esse pensamento se opôs rapidamente ao sistema hegeliano. Reconhece-se hoje que Marx estabeleceu o marxismo sobre a inversão do sistema de Hegel, donde tira particularmente os conceitos de espírito objectivo, de alienação, e mesmo uma filosofia da história. É mais ignorado, no entanto, que existe uma filiação directa e legítima entre Hegel, Stirner e Bakunine. A um hegelianismo que apresenta o espírito absoluto como devir na história, mas que apenas lhe dá uma finalidade ideal e por fim abstracta, os primeiros pensadores anarquistas opôem o princípio do carácter concreto e imanente do espírito e do indivíduo. O seu absoluto, isto é, o indivíduo, é a base do pensamento anarquista. Indivíduo que está em luta contra a alienação sexual, social, política, moral e religiosa. A revolução anarquista é uma luta contra todas as formas de constrangimento.
3. A vontade da emancipação total do homem
3.1. Não há liberdade pessoal sem revolução social.
Os anarquistas e Bakunine em especial reclama-se dos ideais humanistas da Revolução Francesa e, em primeiro lugar, do estabelecimento da liberdade.(7) Trata-se de trazer todos os homens à livre determinação de si: por isso o anarquismo é fundamentalmente o sentimento da revolta e da recusa. É o protesto duma subjectividade que não suporta outros constrangimentos que não sejam aqueles que livremente escolheu dar-se. A liberdade é a base de toda a moral anarquista, e a da sua luta contra os sistemas, o Estado e a burocracia, é acima de tudo a marca dum individualismo por vezes arrebatado. À mecânica fria e monstruosa dos grandes sistemas, o anarquismo bakuniniano opõe a recusa libertária que é feita de protesto veemente e de reivindicação da existência política das massas.
Mas esta liberdade só é individual na aparência porque a liberdade de cada um confunde-se e quer-se com a liberdade de todos. Não se pode ser livre só por si, e é na solidariedade que a liberdade se emancipa socialmente. (8)
3.2 Ser livre, sendo libertário
A liberdade é pois proclamada como valor absoluto e deve ser o fundamento de toda a revolução. A um marxismo que consigna como objectivo à revolução a libertação da classe oprimida (o conceito de classe é um conceito objectivo, ele próprio abstracto em relação ao conceito de indivíduo), o anarquismo não quer fazer nenhuma concessão no que diz respeito às liberdades pessoais.
Afirma por consequência a irredutibilidade do indivíduo à sociedade e às necessidades revolucionárias ou, mais exactamente, e essa será a divergência fundamental entre marxismo e anarquismo, entre Marx e Bakunine, não há sociedade ou classe libertada se a liberdade pessoal não for vista como valor final da luta.
Por isso as formas que a liberdade toma para exprimir-se são tão importantes como o seu conteúdo. O ideal libertário é um estado de espírito e um comportamento social que consiste em querer a liberdade inteira e imediatamente. O homem não deve nunca, a pretexto de necessidades tácticas ou estratégicas consentir compromis-sos com os atentados à liberdade. (9) Mas, mais profundamente, Bakunine quer a expressão social dessa liberdade: daí a florescência de pequenos grupos, de pequenas comunidades libertárias, dos manifestos e das publicações, todos partindo do princípio de que a liberdade é uma conquista de todos os instantes contra todas as formas de opressão.
3.3. Querer o humano no homem
Para Bakunine e para o anarquista em geral, a alienação não é somente económica, afecta a totalidade do homem na sua dignidade de ser humano. E, é preciso insista aqui, o ideal do homem que Bakunine desenha é profundamente humanista e inspira-se directamente, por intermédio da Revolução Francesa, num certo naturalismo de J.J. Rousseau. Não se trata, claro está, do humanismo abstracto dos filósofos e das religiões: esse não tem em conta as exigências de justiça social. Também não se trata do humanismo burguês, que esconde de facto os seus interesses económicos. O humanismo anarquista bakuniniano é fundado ao mesmo tempo na liberdade como sendo o seu ideal, mas também na aspiração à felicidade dos indivíduos entre si.
Há pois uma crença numa essência do homem em devir que deve querer tudo o que há de humano. Neste sentido, o anarquismo é um pensamento do século XIX, e Bakunine esclarece que não há progresso da sociedade se não houver humanização do homem e do todo social.(10) É pois quase sempre uma ideia falsa acreditar que os anarquistas são indivíduos sem fé nem lei.
3.4. Querer a justiça
A liberdade seria uma utopia se não encontrasse o seu fundamento na exigência de justiça. Não se trata apenas da igualdade de todos perante a lei, que a Constituição da Revolução Francesa proclamou. O facto de serem iguais em direito não significa de modo algum que os indivíduos o sejam no domínio económico, social e cultu-ral. Se não há liberdade para quem tem fome, é porque a justiça é inseparável das condições de vida e de existência. Ela reivindica-se num nível duplo: as relações sociais são relações de desigualdade e de injustiça.(11) O ideal de justiça é um projecto ao mesmo tempo individual e colectivo que supõe que o fruto do trabalho seja repartido entre os trabalhadores e que o meio de trabalho responda às aspirações humanas dos indivíduos e dos grupos.
Para a realizar, a justiça, como a liberdade, não se delega, conquista-se e deve ser querida directamente pelas comunidades de base que são o meio de trabalho e o meio de vida. Não se trata portanto de confiar-se a um partido-providência e de transferir para organismos revolucionários o poder que cada indivíduo possui de lutar pela justiça. Também não basta entregar-se a um homem ou a teorias: ninguém pode querer em meu lugar a justiça para todos.
3.5. O comunismo anarquizante
A justiça não pode conceber-se de maneira abstracta e ser objecto de "bons sentimentos", porque desde que se toca no problema da justiça levanta-se a questão da organização do Estado, isto é, do conjunto dos meios pelos quais a sociedade se constitui em relações de força. E sobre este ponto da relação entre a justiça social e a construção do Estado, a divergência entre Marx e Bakunine é fundamental. Mas a divergência existe entre as próprias correntes anarquistas. Proudhon, por exemplo, mantém a necessidade da propriedade privada, porque pensa que não há liberdade individual possível se não assentar na propriedade económica. É preciso lutar contra os detentores do capital, mas organizando os operários em mútuas que têm por fim substituir os grandes proprietários fundiários por associações de rendeiros e as grandes indústrias por companhias operárias.
O mutualismo de Proudhon choca com uma concepção mais marxista, que é a da Kropotkine: este chama a si a ideia de que a propriedade privada é a fonte da opressão social e de que é preciso lutar pela apropriação segundo a divisa "tomai aquilo de que precisardes." (12) O anarquismo, sob variantes comunistas, mutualistas ou associacionistas, visa libertar os trabalhadores do capitalismo, mas entregando o poder aos trabalhadores, sem que uma intervenção autoritária dum Estado revolucionário seja necessária.
3.6. A contradição entre a sociedade e o indivíduo
A ideia fundamental do anarquismo bakuniniano consiste em encontrar o meio de conciliar a justiça e a liberdade na base de associações de produção e de trabalho. Os próprios conceitos de associação ou de comuna supõem que sejam promovidos os valores de liberdade pessoal e de solidariedade interindividual. Mas implicam também a sua eficácia revolucionária e a sua capacidade para transformar concretamente a sociedade, porque a justiça vai até aos fundamentos económicos e sociais do sistema de produção, assim como da organização do trabalho. Ao querer conciliar as exigência da revolta individual, essencialmente libertada como vimos, com a aspiração a realizar a justiça na sociedade, achamo-nos na contradição de que os interesses individuais e os inte-resses colectivos não coincidem necessáriamente.
Daí a falha relativa dos anarquistas em fazerem triunfar as suas ideias em matéria de organização social: acontece sempre um momento em que a liberdade dos indivíduos choca com a organização social, mesmo quando esta foi escolhida. E, inversamente, a sociedade é um conjunto de constrangimentos que reprimem as aspirações individuais. Mas o mérito do anarquismo bakuniniano é precisamente exacerbar as contradições indivíduo--sociedade e apresentar no absoluto o que é da ordem do relativo. Neste aspecto, o anarquismo terá sempre um lado utópico que o situa ao mesmo tempo no real e no sonho.
III
4. A abjecção do Estado: a revolta contra a Autoridade
4.1. Uma fonte de energia para a revolução: as massas.
Insistimos já no carácter visceral do individualismo anarquista; há agora que acrescentar-lhe a confiança total na espontaneidade das massas para conduzir as lutas revolucionárias. As massas são forças produtivas totalmente inorganizadas, mas que, por instinto e pela sua condição de miséria, sentem logo a sua situação proletária e são levadas à revolução. (13) Há nesta confiança nas massas a procura da identidade delas, ao mesmo tempo económica e social, que lhes permita afirmar a sua autonomia e a sua personalidade. A massa, para o anarquismo bakuniniano, é o contrário do rebanho anónimo e solitário. Por outro lado, o conceito de massa opõe-se ao de partido ou de vanguarda revolucionária. Permite por a tónica no facto de que uma revolução não se decreta de cima, antes é o fruto paciente e misterioso duma gestão que chega à maturidade graças à explosão das forças revolucionárias, que será preciso ajudar e não conduzir, no seu desejo de mudança e de instauração dum mundo novo.
4.2. Necessidade de despertar das massas: a acção minoritária
Este acto de fé na espontaneidade das massas não é por si só suficiente para fazer eficazmente uma revolução. Graças aos acontecimentos de 1848, e também aos da Comuna de Paris, os anarquistas tomaram consciência de que as massas eram capazes, por si mesmas, e espontaneamente, de se organizarem. (14) Contudo, após este optimismo muito na tradição populista do anarquismo bakuniniano, os teóricos encontram-se a braços, aliás como os marxistas, com um grave dilema.
A espontaneidade das massas, mesmo sendo a única força revolucionária, não chegou a um grau de maturidade tal que a revolução dela decorra automaticamente. Daí a necessidade de acções políticas de vanguarda por uma minoria, para suscitar o despertar e tomar conscientes as potencialidades revolucionárias. Daí a necessidade duma minoria (muitas vezes intelectual) capaz de pensar a acção política. Mas então põe-se em evidência uma élite que pode confiscar às massas a sua revolução, que fala e age em seu lugar, tendo como evolução possível a instauração dum novo domínio burocrático que as substitui e pode paralisar as suas iniciativas.
4.3. As massas contra a democracia burguesa
O problema posto pela organização das massas põe a claro o carácter fundamental autoritário do anarquismo, mas põe igualmente a questão da democracia. Não tendo nem porta-voz, nem intérprete, nem delegado, o poder das massas só pode proceder de si próprias, e é por isso que nenhuma assembleia, nenhum eleito, pode pretender falar em nome das massas. Tal como o indivíduo anarquista não delega a sua liberdade, assim as massas não delegam o seu poder; e os anarquistas falam por experiência: uma vez delegados, o poder e a liberdade são confiscados em proveito duma casta que delas defruta para si mesma. Eis porque Bakunine recusa o regime democrático e todas as teorias do sufrágio universal tal como J. J. Rousseau, particularmente, as expôs (15) e que são o fruto da Revolução Francesa.
A democracia é um logro, uma astúcia, porque é uma nova maneira de sujeitar as massas. Assim o voto, muito longe de constituir o povo em soberania, é um logro que consiste, para as massas, em darem-se a ilusão duma partilha do poder, o que é um "conto do vigário". (16)
4.4. Contra o Estado e o Governo
Para Bakunine, (17) "O sistema representativo, longe de estar garantido para o povo, cria e garante, pelo contrário, a existência permanente duma aristocracia governamental contra o povo." Nestas condições, a democracia nunca é real, uma vez que sempre é delegada. Além disso, essa elite, que a apropria do poder político das massas, é quase sempre a classe proprietária. A democracia dissimula aqueles a quem o poder aproveita, é uma máscara por trás da qual "se esconde o poder realmente despótico do Estatuto, fundado na banca, na política e no exército, um meio excelente para oprimir e arruinar um povo em nome e a pretexto duma suposta vontade popular."
Desta concepção resulta a táctica anarquista que consiste em boicotar as eleições e em preconizar as mais das vezes a abstenção. Ao afirmar a prioridade da luta das classes, conduzem uma acção directamente revolucionária, mas recusam-se a deixar-se apanhar pela "ratoeira" da legalidade burguesa, que só acaba por aproveitar à classe dos priviligiados. Contudo, sem ir tão longe como Stirner, que declara que "o governo do homem pelo homem é a servidão..." "Quem quer que ponha a mão sobre mim para me governar é um usurpador, um tirano. Declaro-o meu inimigo", os anarquistas reconhecem que o sistema representativo e democrático é um progresso sobre a monarquia, mas quebra, no entanto, segundo Bakunine, "as aspirações reais e as forças vivas dum país."
4.5. O Estado é sempre uma abjecção
Os anarquistas são contra o estado porque são em primeiro lugar contra a ordem e a autoridade. O sistema estatal incarna, com efeito, os meios repressivos por intermédio da escola, da burocracia, e mais directamente do exército e da polícia. O Estado é sempre o que é estranho às massas e ao indivíduo, sobretudo quando é idolatrado sob a forma da pátria ou da nação. O anarquismo bakuniniano desmistifica o Estado centralizador e jacobino, nega que ele seja a expressão duma qualquer solidariedade ou fraternidade: não há "filhos da pátria", mas um povo que renunciou ao seu poder. Daí as troças e os ataques acerbos contra o Estado e os seus representantes. E Bakunine vitupera os "autoritários" (18) que se inclinam perante o poder, maltrata os partidos que viram incessantemente o seu olhar para a autoridade, como o seu pólo único, espera o momento em que "a renúncia à autoridade terá substituído no catecismo político a fé na autoridade."
É por ser, por essência, contra todas as formas de liberdade e de expressão espontânea e criadora que o Estado é execrado pelo anarquismo bakuniniano. A liberdade não pode nunca acomodar-se com o Estado, os dois são forçosamente contraditórios, e a tendência natural do aparelho estatal é concentrar todos os poderes, em suma, tornar-se totalitário. Arregimenta o povo e constitui pequenos chefes, legisla, dirige, regulamenta, decreta. É omnipresente ao ponto de "não me permitir tirar dos meus pensamentos todo o seu valor e comunicá-los aos homens, a não ser que sejam os seus próprios pensamentos; doutra maneira fecha-me a boca", observa Stirner.
4.6. Contra o Estado Revolucionário e proletário
Todo o problema do Estado constitui a querela essencial que rebentou entre os diferentes revolucionários do século XIX. E o drama da cisão entre marxistas e anarquistas bakuninianos cristalizou-se em torno da questão do poder estatal. O "anticomunismo" anarquista alimenta-se desta questão crucial para o futuro, e o êxito duma revolução de saber o que será o Estado em regime socialista ou comunista. Proudhon, rapidamente, Bakunine, mais tarde, pressentiram que as organizações comunistas, e Marx à frente, pelo seu método e pela sua organização, segregavam embriões de Estados autoritários, e mesmo ditatoriais. Bakunine não acredita na ditadura das massas e denuncia a "revolução de cima" que traz em germe a própria negação da liberdade e da espontaneidade. Acusa os comunistas de substituir o Estado burguês por uma ditadura do proletariado, para Bakunine tambor um, caixa de rufo outro. Acusa-os de querer manter o Estado após a Revolução e passar assim ao lado do essencial: abolir todo o poder, sobretudo a estrutura que é geradora de todos os poderes: o Estado; porque "o governo é na sua natureza contra-revolucionário... Proudhon um S. Vicente de Paula no poder: será Guizot ou Talleyrand." Esta fórmula lapidar de Proudhon que poderia ser subscrita por Bakunine exprime bem o desprezo em que o anarquismo tem todo o Estado, quer seja burguês, quer se diga proletário.
4.7. Uma resposta à questão do Estado: o federalismo
A clarividência de Bakunine revelou-se no que diz respeito à natureza do estado proletário, profética: conhecendo o revés parcial da revolução operária por causa da gangrena que a coersão estatal representa, faziam, de antemão, a critica da organização leninista baseada na força e no poder repressivo, Entreviu a natureza despótica desse Estado que incarnará, cinquenta anos mais tarde, Estaline e a monstruosa aberração do seu sistema. Resta que, se a abolição do Estado é uma necessidade primeira da revolução, se põe o problema de saber o que o substituirá.
Proudhon e Bakunine estão, neste ponto, de acordo, pelo menos na análise duma contradição: a imensidade geográfica, económica e demográfica das nações supõe um mínimo de organização e de concertação. Mesmo num sistema económico autogerido, baseado na comunidade do trabalho, os burgos ou as cidades não podem já, como na Antiguidade, ser autónomos. É preciso um sistema administrativo por onde passa a unidade duma região e de um povo. Mas, em lugar do Estado que organiza, para as por em tutela, as comunas e as regiões, é preciso criar comunidades de base que aspirem, elas próprias, à unidade nacional. Em suma, é preciso substituir o centralismo autoritário e doutrinário, imaginando pelos "autoritários", por um federalismo societário que seja produto da livre adesão dos cidadãos.
4.8. Do Federalismo ao Internacionalismo
Multiplicar as comunidades de base que continuam a administrar-se e a governar-se, respeitar as divisões de todos os escalões onde se elaboram os projectos e onde se faz o trabalho económico e social, fazer com que cada célula social respeite a autoridade que por si própria exerce, é instalar um sistema de democracia directa graças ao qual o poder deixa de ser constrangimento para ser execução das livres escolhas. É, por antecipação, e à maneira ainda profética do anarquismo bakuniniano entrever a degenerescência do estado opondo-lhe um princípio de autogestão ao mesmo tempo económico e administrativo. "Os autoritários confundem sempre a unidade formal, dogmática e governamental, com a unidade viva e real que só pode resultar do mais livre desenvolvimento de todas as individualidades e de todas as colectividades e da aliança federativa e absolutamente livre das associações operárias nas comunas e, para além delas, das comunas nas regiões nas nações." (19)
Esta frase de Bakunine é mais um programa de organização política da cidade do que afirmação da destruição do Estado, que as sociedades nunca puderam dispensar. Como conciliar autoridade e liberdade, unidade da na-ção e respeito pela diversidade? O federalismo foi a resposta positiva a esta dupla exigência, mas não se bastava a si mesmo, porque é preciso passar além das fronteiras e ser internacionalista.
4.9. A procura duma Europa unida
O federalismo de Bakunine responde à organização interna da nação; é preciso, para as relações internacionais entre povos, encontrar o seu correspondente político: o internacionalismo. Bakunine, em virtude dos seus ideais de solidariedade e de fraternidade, desenham, muito antes de a Europa capitalista sentiu a necessidade disso, uma confederação de nações, a fim de, diz Bakunine, "tornar impossível a guerra civil entre os diferentes povos que compõem a família europeia." (20) Trata-se de agrupar os estados numa confederação (confederação das federações), partindo do mesmo princípio de que é preciso escolher-se livremente e dar um conteúdo revolucionário às relações internacionais. Mas, esta confederação dos Estados Unidos da Europa, e mais tarde do mundo inteiro, só pode ser fundamento sobre a recusa dos Estados que baseiam o seu poder na violência e na aurotidade; é pois por livre adesão que uma nação se une a outra e, sucessivamente, feita a revolução no interior do seu sistema social e político. Compromete-se igualmente a ajudar os outros países a fazer a revolução. Assim nasce o internacionalismo, que é a mistura de vontade revolucionária à escala internacional com o pacifismo e o espírito de solidariedade próprio da doutrina anarquista bakuniniana. É em virtude desta mesma tolerância que Bakunine admite que "o direito da livre reunião e da secessão igualmente livre é o primeiro, o mais importante de todos os direitos políticos, aquele sem o qual a confederação nunca seria mais do que uma centralização disfar-çada." (21)
5. Anarquia e revolução cultural
Não há domínio que escape ao anarquismo de Bakunine: o nosso saber e a nossa cultura, tão correctamente dispostos em sistema e em hierarquia, recebem os golpes duma palavra que quer recuperar o seu folêgo e a sua energia criadora. Porque no saber existem hierarquias, como existem nos diferentes escalões políticos. A poesia, o romance, a filosofia, a literatura, a pintura receberam do surrealismo (22) os meios de se libertarem de todas as regras da linguagem, da gramática, da perspectiva e da composição que mantêm a criação sob o jugo da lei e da proibição. Esta "tábua rasa" cultural é, na verdade, a expressão mais rigorosa, mas também a mais ocultada, do anarquismo; longe de ser apenas um fenómeno político e históricamente limitado, é uma dimensão do renascimento global da cultura e da sociedade.
Se a origem etimológica da palavra anarquia vem do grego que quer dizer "ausência de governo", então estamos em plena anarquia quando a revolução vem roçar as bases da herança cultural dum povo, mesmo quando essa revolução é invisível e não sangrenta: a nossa civilização está em estado de anarquia. Resta-lhe apenas inventar os meios políticos da sua expressão, que não serão da conta, repetimos, de partidos políticos, mas obra espontânea das massas.
6. Filosofia e anarquia
O filósofo não é anarquista, uma vez que quase sempre as grandes filosofias andam à procura do princípio, do começo ou do fundamento. A razão e a racionalidade estão sempre em busca de ordem e de medida, de equilíbrio e de harmonia, que não contra o anarquismo bakuniniano. Produto da liberdade e do irracional, o anarquismo é rebelde aos conceitos e às categorias do entendimento. O anarquismo não raciocina, pensa. Mas o seu pensamento está virado para a expressão colectiva e acomoda-se mal com o aristocratismo do pensamento filosófico. Além disso, o anarquismo é rebelde à consciência, faz parte das forças que escapam a todo o "controlo" num momento dado da história: liberta energia para a criatividade. Se a filosofia pode dar ao anarquismo a ajuda do pensamento, é para melhor o obrigar a conhecer-se, a tomart consciência da sua identidade. Em Nietzsche, filosofia e anarquia dialogaram já, mesmo tendo sido para se ignorarem. A um anarquista espanhol, Joaquin Maurin, que declarava que "um anarquista que consegue ver claro, aprender a educar-se, deixa automaticamente de ser anarquista", um filósofo pode responder que as melhores obras do anarquista foram aquelas em que o pensamento anarquista e o simples pensamento fizeram obra comum para querer o homem mais livre e a socie-
dade mais justa. Ao "faz-te a ti mesmo" do anarquismo, será sempre necessário o famoso "conhece-te a ti mesmo" de Sócrates.
7. Bakunine e o homem Faústico
Chegados a esta altura do trabalho estamos em melhor situação para retomar o conjunto de interrogações que tinhamos posto acerca das relações entre Bakunine e Fausto. A questão fundamental que tinha ficado em suspenso era a seguinte: se Fausto pode ser considerado o espoente máximo da tradição ocidental até que ponto Bakunine pertence a essa tradição que tanto criticou e tanto quis modificar? Até que ponto é Bakunine um pensador da tradição? Perante esta questão a resposta só pode ser uma. Apesar de tudo, Bakunine é um pensador da tradição ocidental, pois como poderia ser de outro modo? Por muito que se critique a tradição e por muito que se queira alterar um estado de coisas é dentro desse estado de coisas que se deseja fazer esse tipo de alterações. Pelos antecedentes filosóficos de Bakunine e pelo próprio projecto anarquista só dentro da tradição se pode pensar em termos de mudança. Outros críticos perspicazes da tradição estão intimamente ligados a ela; só para citar um nome: Nietzsche. A nossa tese vai ainda mais longe. Não só o pensamento de Bakunine deve tudo à tradição ocidental donde ele emergiu, como Bakunine por aquilo que ficou dito quanto à sua concepção de homem e liberdade é o expoente mais bem acabado do homem faústico. Não o homem faústico em que subjaz uma ideologia, seja ela nacional-socialista, marxista, ou outra (23) mas o homem faústico "cuja ideia central...é a do esforço humano como factor positivo de libertação". (24) Nas aulas teóricas de Antropologia Filosófica dedicadas ao Fausto de Goethe defendeu-se a tese de que o que goethe pretendia captar no Fausto era o ser afectado por uma força viva, por uma afecção de si na terminologia de Paul Ricoeur. Esta força só podia ser sentida. O Fausto promoveria a afecção desta força viva que só podia ser sentida e não conceptualizada. A captação da força viva dá-se pela vontade, como afirmação de si. Pois digo eu essa força viva é o que há de mais essenci-al no ser humano que é ao mesmo tempo a afirmação de si: desejar ser livre para poder tranquilamente aspirar à felicidade. Também o anarquismo tal com Bakunine o defendeu uma vida inteira não pode ser conceptualizado, não pode ser apresentado como uma doutrina, como um sistema à maneira de Kant ou de Hegel. O anarquismo bakuniniano só pode ser sentido, desejado e posto em acção. Como nos diz Dabezies a respeito de Fausto também o poderíamos dizer em relação a Bakunine: "Sans doute verrons-nous plus d'une fois encore Faust surgir parmi nous, sous um masque chaque fois plus actuel, pour nous rappeler qu'il est donné à l'homme de choisir sa vie, d'etre, avec son dieu ou avec son démon, créateur de lui-même: c'est lá sa grandeur - et c'est là son dráme." (25)
Finalmente para acabar, não posso deixar de citar as últimas palavras de Fausto que são palavras anarquistas à maneira de Bakunine ou pelo menos têm um tom potencialmente anarquizante: "Eu gostaria de viver no meio dum povo livre numa terra livre."
Notas:
(1) Podemos com toda a legitimidade perguntar porque é que Bakunine é hoje em dia totalmente esquecido? Se o seu rival - Karl Marx - é por uns glorificado e por outros escorraçado, mas por ninguém desprezado e se tivermos em conta que na década de 60 do século passado enquanto que Marx era ainda um ilustre desconhecido, Bakunine era já célebre (Tão célebre que já tinha um artigo biográfico na Enciclopédia Britânica!) A resposta passará um pouco por aqui: enquanto que a prática revolucionária bakuniniana falhou, o papel de Marx e dos seus continuadores deu muitos mais frutos.
(2) Não está aqui em causa propriamente a interpretação específica do Fausto de Goethe, ou do Fausto de Valé ry, ou do Fausto de Thomas Mann, ou do Fausto dos Téosofos, ou do Fausto de Oswald Spengler, ou do Fausto nazi, ou finalmente do Fausto marxista. O nosso objectivo é mais restrito e ao mesmo tempo na tentativa de encontrar um tipo de relacionamento entre Bakunine e Fausto mais universalista. Não nos interessa analisar a história do Fausto de Goethe mas ver o que representa esse mesmo Fausto. Não o enredo, mas a importância do Fausto na tradição ocidental. Sobre as diversas interpretações do Fausto ver a obra de André Dabezies, Visages de Faust au XX siècle.
(3) Barrento, João - "Fausto, a ideologia faústica e o homem Faústico" in Fausto na Literatura Europeia, págs. 200-201.
(4) Barrento, João - Ibidem, pág. 201.
(5) Alguns comentadores consideram Bakunine um pensador medíocre, certamente porque Bakunine não tem um sistema filosófico à maneira Kantiana ou Hegeliana. Os que assim pensam não entenderam rigorosamente nada do essencial que Bakunine nos quis transmitir. Assim podemos ler em Wanda Bannour: "Filósofo medíocre como a maior parte dos seus compatriotas niilistas, Bakunine alimenta no entanto o seu pensamento em fontes bastante vivas para sobreviver - noutros lugares, é certo, que nas universidades e nas bibliotecas." E mais à frente: "Filosoficamente falando, Bakunine é uma marmita de ferver ideias que se derramam dele como uma lava e que, na biografia intelectual, se depositam estratificadas em aluviões. Há o período Schelling, o período Fichte, o período (quase maníaco) Hegel, o momento feuerbachiano. Quando quer comporuma obra de filosofia, é com naturalidade que plagia Comte. Há nele uma ingenuidade tocante, um "à maneira de Hegel" que vem comicamente alojar-se até as ternas missivas dirigidas às suas irmãs. Bakunine, como quase todos os escritores da época - incluindo os mais "demoníacos" niilistas -, vive religiosamente a filosofia. É por isso que ele afirma, apela, prega, mais do que raciocina e ensina." E ainda mais à frente: "O que devemos decidir é a legitimidade da inclusão de Bakunine numa história da filosofia. Bakunine foi filósofo? Se não, podemos considerá-lo como pensador político, um ideólogo da revolução? Digamos para já que não há uma filosofia bakuninista, que não se pode falar de um Bakunine filósofo. Com efeito, o seu pensamento tem falta de coerência, não é deduzido: todo impulsivo e explosivo, é muitas vezes motivado pela oportunidade das situações cuja mobilidade adopta. Pensamento todo em centelhas e golpes de teatro no qual vêm enxertar-se implantações teóricas provenientes de horizontes diversos.""Bannour, Wanda - "Bakunine" in História da Filosofia Ideias, Doutrinas - direcção de François Châtelet, Pub.D.Quixote, Lisboa, 1978, págs. 255-257. Estas longas citações só têm justificação, na medida que ao longo deste trabalho, tentaremos dar outra visão de Bakunine visto que esta perspectiva falseia o fundamental da questão.
(6) As relações entre Marx e Bakunine nunca foram amistosas e durante a I Internacional ambos se degladiaram tentando submeter a tendência contrária. Ganhou Marx tendo Bakunine e alguns dos seus adeptos sido expulsos da Internacional. No entanto Marx não ganhou muito com isso visto que a I Internacional era dissolvida pouco depois.
(7) Já Stirner na sua obra "O Único e a sua Propriedade" dizia: "Não procureis na renúncia a vós mesmos uma liberdade que vos priva precisamente de vós mesmos, procurai-vos a vós mesmos. Que cada um de vós seja um eu todo - poderoso. A única liberdade é aquela que o próprio indivíduo conquista."
(8) "Tudo o que é humano no homem", diz Bakunine, "e, mais do que qualquer outra coisa, a libredade, é o pro duto dum trabalho social, colectivo. Ser livre no isolamento absoluto é um absurdo inventado pelos teólogos e pelos metafísicos."
(9) Como a instauração da ditadura do proletariado como quer o marxismo, por exemplo.
(10)"A lei da solidariedade social é a primeira lei humana, a liberdade é a segunda lei. Estas duas leis interpenetram-se e, inseparáveis, constituem a essência da humanidade. Assim, a liberdade não é a negação da solidariedade, pelo contrário, é o seu desenvolvimento, e, por assim dizer, a sua humanização."Bakunine - Conceito de Liberdade, pág.17.
(11)"O homem nasceu livre, mas por toda a parte está sob grilhões", dízia Rousseau.Rousseau - O Contrato Social, cap. I.
(12)Kropotkine incita à expropriação violenta, "os camponeses expulsarão o grandes proprietários e declararão os bens propriedade comum, demolirão os usurários, abolirão as hipotecas e proclamarão a sua independência absoluta." Kroptkine - A Conquista da Paz.
(13)Proudhon foi o primeiro a reconhecer que "as revoluções não conhecem iniciadores; vêm quando o sinal dos destinos as chama... Todas as revoluções se cumpriram pela espontaneidade do povo."
(14)Por isso Kropotkine pôde celebrar "esse admirável espírito de organização espontânea que o povo possui em tão alto grau e que tão raramente lhe permitem exercer".
(15)Rousseau - O Contrato Social, cap. II, O problema do povo soberano.
(16)Proudhon observa, com o seu lúcido humor habitual, que "a democracia não é mais do que o arbítro constitucional. Foi graças à astúcia dos nossos pais que o povo foi proclamado soberano... ao delegar a sua soberania pelo exercício periódico do sufrágio universal, reniva todos os três ou cinco anos a sua abdicação."
(17)Ver Bakunine - O Conceito de Liberdade, a parte respeitante ao Estado, pág 24 e seg.
(18)Os "autoritários" eram como os marxistas se chamavam na I Internacional. Os "anti-autoritários" eram naturalmente o nome dado aos anarquistas bakuninianos.
(19)Bakunine - Conceito de Liberdade, ver o cap. "Vias para a sociedade socialista", pág. 207-230.
(20)Bakunine - Ibidem, pág. 207-230.
(21)Bakunine - Ibidem, pág. 207-230.
(22)Não esquecer que o Surrealismo foi herdeiro do anarquismo.
(23)Mais uma vez se recomenda a leitura do livro de André Daberzies, Visages de Faust au XX siécle.
(24)Barrento, João - "Fausto, a ideologia Faústica e o homem Faústico" in Fausto na Literatura Europeia, págs. 200-201.
(25)Dabezies, André - Visages de Faust au XX siécle, pág. 515.
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