Monday, February 19, 2007

TEORIA DAS MÚSICAS ELECTRÓNICAS COMO OBRA ABERTA E PERCEPÇÃO ESTÉTICA

"Para descobrir formas sonoras verdadeiramente novas, importa utilizar sistemas de produção sonora fundamentalmente distintos dos da massa orquestral, onde exercem a sua função: por exemplo, o cravo, a harpa judaica, a guimbarda, a ocarina, etc. Mas também é sabido que estes instrumentos não podem adaptar-se àdinâmica da orquestra; por isso nunca se tentou utillizá-los, a despeito da marcada originalidade dos sons que produzem e que, infelizmente, pertencem a outra gama de níveis dinâmicos. Este exemplo é típico da relação que une os produtos duma arte aos meios técnicos que lhe dão origem."

Moles, Abraham - "Les Musiques expérimentales" in Samuel, Claude- Panorama da arte musical Contemporânea, pág. 521 (sublinhados meus)

Música Electrónica

"Os meios electrónicos não permitem "fazer música", no sentido habitual da expressão. Quando instrumentos electrónicos o tentam, representam apenas música de substituição ... A nova produção sonora exige antes novas ideias criadoras de composição, e estas só podem provir do próprio som: da "matéria sonora" ... Hoje (o compositor) já não tem só que tratar com setenta ou oitenta sons, com seis ou sete intensidades, com meios, quartos ou oitavos de tom, mas sim com frequências eléctricas de cerca de cinquenta a quinze mil vibrações por segundo, com mais de quarenta intensidades exactamente medidas e com uma imensidade de durações (centímetros de fita sonora) que saem do quadro habitual da notação."

H. Eimert, La Musique eléctronique in Samuel, Claude- Panorama da Arte Musical Contemporânea, pág. 523. (sublinhados meus)

"A exemplo do pintor, o músico passa agora a produzir a obra executando-a, o que neste caso, equivale a realizá-la em sons; a obra nasce no decurso da sua sonorização. O papel dos aparelhos electroacústicos já não é, portanto, o dos instrumentos: compõe-se para estes, tendo em conta as respectivas particularidades; mas compõe-se com aqueles, pois a sua função é de fabrico... Manejar os aparelhos electroacústicos não desumaniza o músico, não mecaniza a música, antes humaniza os aparelhos."

Schloezer, Boris de e Marina Seriabine - Problèmes de la musique moderne. in Samuel, Claude - Panorana da Arte Musical Contemporânea, pág. 523. (sublinhados meus)

"Totalidade e continuidade definem o universo sonoro da música electrónica. Esse poder de fazer evoluir qualitativamente a matéria, de maneira contínua, o músico já não o limitará aos fenómenos sonoros de elaboração estritamente electrónica, se éque não o estende aos sons instrumentais e à voz: assim, pode atingir novas regiões de expansão e de diferenciação da matéria instrumental ou vocal, ligadas a novas formas."

Boncourechliere, André - Musique Électronique in Samuel, Claude- Panorama da Arte Musical Contemporânea, pág. 524. (sublinhados meus)


Música Concreta

"Onde reside a invenção? Quando se produziu? Respondo sem hesitar: quando cheguei ao som dos sinos. Separar o som do ataque constituía o acto gerador. Toda a música concreta está contida, em germe, nessa acção propriamente criadora, exercida sobre a matéria sonora. Não tenho qualquer recordação especial do instante em que essa tomada de som se realizou ...
Basta, por exemplo, ter gravado algumas rotações duma lata de conservas vazia. A partir dessa gravação, é possível trabalhar durante horas, e já se não trata de lata de conservas, de tal modo o som fica transposto, irreconhecível. Com efeito, duma caixa de fósforos podem sair melodia, harmonia, bateria ... A matéria sonora possui, em si mesma, uma inesgotável fecundidade. É um poder que lembra o do átomo, com reservatórios de energia escondidos ns partículas e capazes de surgimento, desde que se descubra a cisão nuclear."

Schaeffer, Pierre - À la recherche d'une musique concrète in Samuel, Claude - Panorama da Arte Musical Contemporânea, pág. 524. (sublinhados meus)

"O elemento mais revolucionário da música concreta não consiste em ter revelado novos aparelhos, nem mesmo novos sons, mas sim em ter revelado ao ouvido musical possibilidades potenciais, muitas vezes evidentes, de que o ouvido não tinha tomado consciência, e que ainda menos sonhara utilizar."

Schaeffer, Pierre - Vers une musique expérimentale, in Samuel, Claude - Panorama da Arte Musical Contemporânea, pág. 524-525. (sublinhados meus)

"A música concreta beneficiou, desde o princípio, duma curiosidade por vezes justificada. O interesse puramente técnico que então despertava degradou-se a pouco e pouco, por determinados motivos, e pode ter-se a certeza de que o seu papel não se reveste hoje de importância alguma e de que as obras por ela suscitadas não são para fixar ... Possuem apenas os respectivos títulos, para se apresentarem à posteridade; desprovidas de qualquer intenção criadora, limitam-se a ser pouco engenhosas ou pouco variadas montagens, contando sempre com os mesmos efeitos, onde a locomotiva e a electricidade fazem de vedetas: nada é função dum método algo coerente. Trabalho de amadores em peregrinação, a música concreta nem sequer pode, no domínio do gadget, fazer concorrência aos fabricantes de "efeitos sonoros" que trabalham na indústria cinematográfica americana."

Boulez, Pierre - "Encyclopédie de la Musique, in Samuel, Claude - Panorama da Arte Musical Contemporânea,pág.525. (sublinhados meus)

"La poétique de l'oeuvre "ouverte" tend, dit Pousseur, àfavoriser chez l'interprète "des actes de liberté consciente", àfaire de lui le centre actif d'un reseau inépuisable de relations parmi lesquelles il élabore sa propre forme, sans être déterminé par une nécessité dérivant de l'organisation même de l'oeuvre. On pourrait objecter (en se reportant au premier sens, au sens large, du mot "ouverture") que toute oeuvre tradicionelle, encore que matériellement achevée, exige de son interprète une réponse personelle et créatrice: il ne peut la comprendre sans la réinventer en collaboration avec l'auteur."

Eco, Umberto - L'Oeuvre Ouverte, pág. 18. (sublinhados meus)

"Dès lors, l'oeuvre est "ouverte" au sens où l'est un débat: on attend, on souhaite une solution mais elle doit naître d'une prise de conscience du public. L'"ouverture" devient instrument de pédagogie révolutionnaire."

Eco, Umberto - L'Oeuvre Ouverte, pág. 25. (sublinhados meus)

"O facto específico que sugeriu a presente comunicação consistiu no aparecimento, nestes últimos tempos, e em sectores diferentes, de obras cuja "indefinitude", cuja abertura, o fruidor pode realizar sob o aspecto produtivo. Trata-se, pois, de obras que se apresentam ao fruidor não completamente realizadas ou ultimadas, em relação às quais a fruição consiste no acabamento produtivo da obra: acabamento produtivo em que se esgota também o próprio acto de interpretação, porque o modo de acabamento manifesta a visão particular que o fruidor tem da obra."

Eco, Humberto - A Definição de Arte, págs. 156-157. (sublinhados meus)

"Trata-se, portanto, de compreender a obra como um organismo aberto; organismo, porque dotado de uma formatividade originária própria que não pode deixar de condicionar as escolhas efectuadas de entre uma gama de possibilidades; aberto, justamente porque a forma não obriga o fruidor a seguir uma direcção necessária, mas apresenta-se-lhe como campo de possibilidades."

Eco, Umberto - A Definição de Arte, pág. 172. (sublinhados meus)


2 - O problema da obra aberta na música contemporânea

A nossa investigação vai partir do conceito de obra aberta tal qual o apresenta Umberto Eco nas obras Oeuvre Ouverte e A Definição de Arte. Eco considera que as composições de música instrumental caracterizam-se pela liberdade que concedem ao intérprete. Este não tem só, como na música tradicional, a faculdade de interpretar segundo a sua própria sensibilidade as indicações do compositor: trata-se de agir sobre a estrutura da obra, e de determinar a duração das notas ou a sucessão dos sons, num acto de improvisação criadora, ou seja: o intérprete de uma composição de música contemporânea não é o executante de uma obra totalmente pré-determinada em que toca da mesma maneira as vezes que for preciso, mas é como o compositor, um criador. A improvisação torna-se desta maneira fundamental na determinação duma estética para a música contemporânea. Mas podemos perguntar: que composições obedecem a este esquema? Umberto Eco responde dando-nos alguns exemplos, aos quais outros poderíamos acrescentar(1). Portanto, o que se está a querer dizer é que as obras musicais contemporâneas, não constituem mensagens acabadas e definitivas, formas determinadas uma vez por todas. Não estamos mais perante obras que pedem para ser repensadas numa direcção estrutural já dada, mas perante obras "abertas" oeuvres ouvertes, que o intérprete concluiu no momento em que assume a mediação.(2) Eco vai explicitamente afirmar: "... toda a obra de arte, mesmo que seja forma acabada e "close" na sua perfeição de organismo exactamente calibrado, é "ouverte" pelo menos no que ela pode ser interpretada de diferentes maneiras sem que a sua irreductível singularidade seja alterada. Fruir duma obra de arte passa por dar-lhe uma interpretação, uma execução, a fazê-la reviver numa perspectiva original."(3) Em cada obra o compositor prevê um resultado diferente para cada execução da obra, deixando-a dependente da escolha do intérprete. De facto, a partitura tem um aspecto um tanto ou quanto invulgar, como uma grande folha contida numa moldura, feita propositadamente, sobre a qual surgem grupos de notas, como frases musicais nitidamente separadas umas das outras.(4)
Na obra A Definição de Arte Umberto Eco levanta um aspecto importante da relação música contemporânea-público: "enquanto certas experiências de obra aberta a uma fruição vaga exprimiam ainda uma sensibilidade de tipo decadente e um desejo de fazer da arte um instrumento de comunicação teoricamente privilegiado, os últimos exemplos de obra aberta a um complemento produtivo exprimiam uma evolução radical da sensibilidade estética."(5)


3 - Música para o século XX

As teorias de música no nosso século são revistas (o neo-classismo), reformadas a (o realismo) ou revolucionadas (dodecafonismo). É precisamente sobre este último sistema musical que irei falar.(6)
O dodecafonismo começa por reflectir sobre os elementos primários da música: as notas. Os tratamentos descritivos destas formas primárias são tidos como unidades puras, de funções acústicas criteriosamente determinadas.
O som complexo é combinado em estruturas abertas (complexo de sons complexos). O silêncio do dodecafonismo é um combinatório racional, o ruído inclui-se como valor minimal da textura sonora, mas mantém-se a noção de oitava de tonalidade.(7) Com o serialismo declara-se o fim da oitava. O som é um elemento acústico puro, dá-se a unicidade do material e da forma. A composição estende-se a todos os elementos sonoros da estrutura musical. A arte musical torna-se físico-científica, a teoria da música é a prática, o instrumento delimita na sua mais global especificidade a composição e o compositor domina a totalidade da matéria.
A independência com que se estuda a unidade sonora permite ao compositor a experimentação matemática das diversas conjunturas sonoras.(8)
Este hiper-racionalismo evidencia o avanço tecnológico do homem e é contemporâneo do pensamento electrónico. Perigosamente tecnocrata, anti-lírica, plena de referências a um tempo cósmico que as massas na maioria esmagadora estão longe de conceber ou viver, a música serial nasce e cresce em pequenos grupúsculos cuja inteligência científica não permite o menor contacto com a classe popular submetida como está ao terror do empirismo.

4 - Do Serial à Metamúsica

A música serial (que pode incluir a música electrónica) trabalha, neste campo particular com micro-estruturas e sons sinusoidais implica uma concepção de espaço e tempo absolutamente nova, utiliza material instrumental radicalmente inédito e exprime a mentalidade cibernética.
Mais acessível, porque exigindo uma disponibilidade máxima, dada a sua total originalidade, a música electrónica põe fim à noção de intérprete e desencadeia teorias abstratas do probabilismo e do acaso que a cibernética tão cientificamente situou na galáxia do pensamento humano.
Paralelamente, e aproveitando a nova tecnologia, surge a música concreta que procura restituir o som natural à sociedade humana que dia após dia se perde na floresta de máquinas, se degrada no inferno da burocracia e se aliena na sua própria natureza - a intenção não corresponde ao resultado. Seria, porém, um fim pessimista querer deixar este retrato da música dos nossos dias. A música levantou uma hiper-complexa indústria, exigiu uma infindável série de dispositivos sociais, apoderou-se duma ultra-sofisticada tecnologia e apresenta-se ao consumidor e ao músico na polivalência dos seus estilos.
Referindo as mais variadas terminologias, escolas, conceitos, recorrendo às mais insólitas bases psicológicas que vão do hiper-racionalismo ao hiper-intuicionismo, historiando todos os tipos musicais hoje susceptíveis de actualização desde a música oriental antiga à música medieval, inventariando desconhecidas formas de música etnográfica (dispersa e perdida nos confins do planeta), a indústria musical, melhor: a arte musical, abriu-se no esplendor da sua magnitude, na totalidade dos seus imensos valores, na longevidade da sua história. A metamúsica surge como a primeira revolução verdadeiramente universal da história da música.(9)

5 - Economia Musical e Praxis

A música é uma variação colectiva do imaginário. Como tal liberta o trabalho da ligação das formas, para lá da individualidade. A obra é uma recolecção da vida dos povos, pois que os signos foram produzidos por um esforço colectivo.
As forças produtivas dos grupos, das culturas e das civilizações modificaram, sempre, as condições de produção de música e é pela liberdade da música que se antecipa a realização da sociedade livre.
Entendamos neste sentido a música como transgressão expressiva, produção original e específica de ilusão.
Original porque invenção e criatividade permanente, específica porque substancialmente limitada ao mundo da acústica. Seria ignorância e pressuposto da alienação acrítica pensar que mesmo os grandes génios da música (Bach, Beethoven, Debussy ou Stockhausen ...)(10) puderam criar fora das condições materiais e ideológicas da sua época.

5.1 - Aparelho ideológico da Música

Na sequência deste trabalho e dentro da organização duma tipologia musical que se quer coerente quero falar naquela massa bruta de produção sonora que se chama música ligeira, comercial e/ou de consumo.
Não é despropositada a minha intenção pois que focarei a música ligeira na dupla perspectiva da crítica musical e da crítica económica musical.
A música ligeira é uma emanação anti-estética da indústria capitalista da música e é, sobretudo, um discurso estruturado da mais-valia musical da música de massas e/ou da música erudita.
Mais-valia musical da produção autêntica de música porque utiliza e rouba todos os resultados do trabalho que a história geral da música conseguiu atingir; isto quer no plano estético teórico quer no âmbito técnico-instrumental.
Convém agora introduzir aqui a noção que eu dou ao sistema da indústria musical do aparelho ideológico da música(11).
Entendo por aparelho ideológico de música toda a engrenagem tecno-burocrática de que a indústria musical se reveste para produção de determinada mercadoria musical. Esta mercadoria tem um nítido conteúdo ideológico e movimenta forças económicas definíveis. A música ligeira serve como melhor exemplo deste aparelho ideológico de música ao nível da sociedade capitalista. O termo aparelho ideológico musical não se refere, como erradamente se pensaria, apenas à indústria capitalista musical mas a toda a espécie de produção artística musical, já que, toda a música veicula uma ideologia. O aparelho ideológico musical a que a música ligeira pertence pode ser analisado sob várias perspectivas. O que aqui interessa, penso, que é enunciar sumários sintomas da ideologia capitalista que são detectáveis na música ligeira. Ao fim e ao cabo a única forma de politicamente analisar a música é passar do seu sistema semântico para a sua funcionalidade social.

5.2 - A Música Ligeira

Entendo a música ligeira como subproduto inestético da arte musical que inelutavelmente canaliza a ideologia pequeno burguesa da economia capitalista.
A música ligeira alimenta-se da força de trabalho da arte musical, na medida em que a sua semântica se organiza a partir de extirpações, decalques, plágios da produção musical verdadeira.
O termo verdade aqui posto em conflito com a falsificação que pretendemos imputar à música ligeira é, dentro de um critério de dialéctica materialista(12), a coincidência existente entre o trabalho e a produção, a coerência entre o conteúdo e a forma, a fidelidade entre a actualização e a história. A moral da música ligeira(13) é a mais que perfeita emolduração da ética pequeno burguesa. No sentido em que a música ligeira veicula (através do "poema" escolhido ou através da prática instrumental) a necessária ideia da áurea mediocritas camufladora da injustiça social ou da perfeição do belo.
O "poema" (de natureza literária baixíssima, paupérrima, ignóbil) é primário e o significante musical é subjugado para uma função secundária. O significado literário sobrepõe-se desta forma ao significante musical a ponto de o relevo e a força desta música ligeira estar na ideologia do "poema" (na maioria dos casos). Nenhuma outra arte desceu tanto (pela mentira, pela alienação, pela mediocridade) como a música ligeira. Os problemas das relações sociais e humanas são trocados pela melodia fútil e/ou pelo poema laudatório da paz pequeno burguesa, o erotismo da música é atraiçoado pelo pornográfico símbolo do amor idealista, a complexidade semântica do sensível, conditio sino qua non da participação e da autenticidade, é imitada por uma entorpecente facilidade de produção estética ou técnica.
O aparelho ideológico da música ligeira é a mais brutal das alienações. Arrasta a humanidade nos lamaçais da subcultura, impede os povos de se promoverem esteticamente, separa o quotidiano do revolucionário.
Embora vá lesar muitos teóricos politiqueiros, incluo na música ligeira e no seu abominável aparelho ideológico aquela dita música "contestatária" ou "revolucionária" que se apoia sobre a mesma semântica musical (apologia da melodia fácil) e a oculta, a essa miséria e a essa mediocridade, com a fachada dum poema de cariz esquerdista ou panfletário.
Aqui o aparelho ideológico musical serve de demagogia e utiliza-se da estrutura estética pequeno burguesa sem nela provocar qualquer subversão ou alteração - desta forma aliena-se de qualquer proposta revolucionária. Pode servir, e serve o reformismo; mas jamais pode ser considerada como música revolucionária, como música verdadeira, como música que transpareça a evolução do homem para a liberdade e para o engrandecimento cultural.
Só resta denunciar que a música ligeira é uma ofensa à dignidade humana, representa a privação do belo, afunda as massas no sistema ideológico, aliena o homem da necessária força do trabalho sensível que a arte musical solicita. Numa palavra: negaremos lucidamente a música ligeira, a indústria capitalista que a permite, a mentira cultural que a reforça, a bárbara traição que desumaniza a cultura revolucionária. Não é de assombrar que na sociedade capitalista a música ligeira ocupe noventa por cento do aparelho ideológico musical porque neste regime político-económico e cultural sempre vigoraram o negativo, o repressivo, o reaccionário e o medíocre.

5.3 - A Música Erudita

Não há a menor dúvida em afirmar que a ideologia da música erudita de vanguarda atinge o estádio mais evoluído da cultura humana, pela incomensurável complexidade ou grandiosidade estética e técnica das suas produções. Mas o aparelho ideológico musical que movimenta está perigosamente comprometido com a superestrutura cultural burguesa. Música elitista, resultando da mais alta especialização da divisão de trabalho do sistema dominante, do desenvolvimento desenfreado da tecnocracia, da selectividade cruel que a actual aristocracia científica exige. Música do admirável mundo novo com recursos intelectuais impressionantes, manipulando tecnologias fabulosas, exigindo do auditor o investimento total da própria sensibilidade e da própria razão.
A beleza da música não reside porém na complexidade (nem apenas no lirismo); pode o simples ser extremamente belo - este é um lugar comum da estética, portanto serão injustificáveis certos subsídios, que o povo suporta, tão exagerados por vezes, e a manutenção abusiva de tertúlias hiper-racionalistas e cibernocratas.
Um paralelismo com o problema de moral económico-político que a investigação astronáutica suscita, não será impróprio, mutatis mutandis.
O aparelho ideológico musical da produção clássica (que não incluiu compositores vivos, pois são todos do passado) tem uma topologia social quase coincidente com a da música contemporânea mas estende-se, na sociedade de consumo, a uma camada burguesa senil ou senilizada, presumida e hipócrita, decadente e abjecta. Este estrato social que todos conhecem tão bem das salas de concertos e dos clubes elitistas não corresponde na totalidade e o quase supramencionado objectiva a diferença abissal que vai entre o amador de musica erudita e o farsante auditor. Este último não pode suportar a força revolucionária semântica da música contemporânea (electroacústica, serial ou concreta) pela simples razão que, da música clássica, apenas consome o convencional e a superfície, ignorando sempre aquilo que ela tem de inteligente, magnífico, enorme.

6 - Vanguarda Versus Retaguarda

Edgard Varése afirmou certo dia: "não há uma vanguarda, há pessoas atrasadas". As fundamentais diferenciações entre a música clássica e a música de vanguarda residem essencialmente sobre dois aspectos - a instrumentação e o processo de criação sonora, e é sobre estas duas axiais estruturantes que iremos perspectivar o nosso trabalho.
Podemos então constatar uma diferente interpretação do executante: deixada pelo compositor a possibilidade infinita de conjugar os dados fundamentais do texto a música torna-se sujeita à versatilidade do intérprete, rica em variações, liberta enfim da ditadura escrita.
Entramos no campo do aleatório em que a responsabilidade do compositor concerne apenas à latitude dos resultados sonoros, à vontulariedade do auditor. Reconhece-se pois ao intérprete a expressão da própria personalidade o enriquecimento da obra com a sua iniciativa, ao contrário de ser um leitor mecânico da prescrição musical. Há certas obras, que dão livre arbítrio ao executor de coordenar a estrutura com apelos gestuais, sinais diversos que guiam a peça no espaço e no tempo, horizontal e verticalmente.
O músico de vanguarda é ele próprio o tradutor duma situação individual-colectiva que condiciona o momento da criação e não apenas um recriador de alteridades sócio-temporais como será um intérprete de Bach. Falamos da função do intérprete mas podemos citar, dentro do campo da música acústica, certas obras de Stockhausen, por exemplo, que preconizam a abolição do intérprete, condicionando o som a vozes, ruídos, vibrações, que o próprio público produz e são imediatamente sintetizadas em computadores programados.
À maneira da música do Bali é a própria manifestação institiva do público que coordena o acontecimento musical. Em Nova Iorque, o público da J.C.O.A. tem ao seu dispor uma gama infinita de instrumentos outrora reservados aos músicos e, pode desta forma executar os seus números, criar o sua música.
O papel do compositor não está de modo algum infravalorizado, ele é o responsável pelo evento sonoro, pela estruturação probabilíctica das fases musicais, pela possibilidade, pela possibilidade dos conjuntos sintáxicos. O léxico é estabelecido pelo compositor e a execução fica implicitamente subordinada às suas regras musicais, escritas ou sugeridas.

6.1 - A Panóplia instrumental

O que podemos constatar é uma reabilitação de instrumentos tidos outrora como secundários (seja o trombone, seja o clarinete baixo) numa consequente ilustração de sonoridades específicas; mais: Pierre Boulez formula textos reservados para determinada espécie de instrumentos que serão executados em outros de tipo diverso (ex.: uma peça de contrabaixo que é executada a fortiori por uma trompa). Quando Pascal se referia ao pavor do silêncio dos espaços infinitos a música do seu tempo era barroca: anti-silêncio, ornamento, excesso de acontecimentos sonoros. Hoje os espaços infinitos e o seu silêncio não nos horrorizam, antes nos seduzem como estupefacientes. É o tempo, hoje, da música que trabalha os silêncios, que vive da exiguidade, do mais simplesmente belo, do subtilmente significativo, do cosmicamente imaginativo.
A panóplia instrumental foi engrandecida por vastas inovações mesmo dentro do campo acústico e os naipes de percussão beneficiaram de um extenso número de figuras inéditas que certo anticonvencionalismo autorizou.
Não menos importante foi a aquisição de instrumentos orientais e africanos o que veio obrigar a uma revisão orientadora de novas fórmulas de escrita, de conjugações manifestamente policentristas a que um crescente espírito comunitário e colectivizante não esteve alheio.
O mesmo tipo cénico da criação artística oriental se imprimiu nos espectáculos de vanguarda onde a coreografia e o jogo de volumes se inscrevem como elementos integrativos da composição. As pequenas peças instrumentais folclóricas que na música clássica adornavam composições massivas, de maneira epidérmica, assumiram planos relevantes na actual música de vanguarda num processo evolutivo que vem de Bartok e Villa-Lobos. Vistas generalizadamente as duas perspectivas da música de vanguarda facilmente nos apercebemos da viragem cultural que estas formas simbolizam: que a música é inseparável do individuo social, que o músico está comprometido com a sua função de transformador da cultura decadente.
A música ao separar-se das dimensões regionais, alimentando preocupações planetárias, é a abolição irreversível de fronteiras, a descoberta do mundo e dos seus problemas. A música de hoje não é feita para distrair ou mecanizar mas para por questões, inquietar e desfazer as estruturas injustas. Arte para viver o tempo e jamais para passar o tempo.
Vamos agora observar a importante estética musicológica de alguns compositores-musicológicos cujas teorias e cuja influência na música viva, de hoje, se tornou fulcral. Consideremos portanto seis musicólogos compositores de música erudita e vejamos qual a intervenção histórica destes no imenso panorama da música contemporânea. São eles, Pierre Boulez (para a música serial), Xenakis (para a música estocástica), Herbert Eimert (na música electrónica), Pierre Schaeffer (na música concreta), John Cage (na música experimental) e Karlheinz Stockhausen na metamúsica.

6.2 - Boulez e o Dodecafonismo

O dodecafonismo como já o dissemos nasceu de Berg, Webern e Schonberg. O serialismo desenvolveu-se na dita escola post-weberniana e teve como principais cultores um Bruno Maderna, um K. Stockhausen ou um Boulez entre outros.
Mas falaremos deste último dadas a relevante bibliografia que dele e sobre ele possuímos, a intransigente posição de formalista, a deslumbrante colecção de obras em cada qual expressou com a máxima clarividência o seu mundo musicológico. Boulez é extremamente difícil de analisar por quem apenas possui rudimentos de musicologia serialista(14) e pela principal razão de que o formalismo bouleziano consiste numa elevada reflexão sobre a musicografia clássica.
Boulez pensa a música da história ocidental e actualiza-a numa concepção arquitectural de estruturas autónomas e imutáveis.
Boulez continua o pensamento de Stravinsky mas o seu formalismo organiza-se através de acontecimentos ou séries estruturais de mobilidade para-científica. Distingue Boulez novas noções de espaço sonoro e divide-as em dois grandes grupos: os espaços homogéneos, formulados com objectos sonoros de natureza idêntica e os espaços não homogéneos, constituídos de objectos dessemelhantes.
A técnica serial, na actualidade, procura organizar numa escala fixa de valores estas antigas relações espaciais. A série implica um tratamento detalhado do pormenor e conduz, desta forma, a uma espécie de puntilismo musical em que o silêncio é criteriosamente elaborado e em que se exige uma organização integral dos sons.
A sua musicologia é severa e implicitamente austera adversária da improvisação. Boulez nega qualquer valor estético à improvisação. O problema dos valores, que constantemente sobressai na sua obra musicológica, coloca-nos perante uma nova perspectiva de ética musical, que não será a ética conservadora e académica dos formalistas do princípio do século, mas sim uma ética cibernocrática, consequência da nova tecnologia.
O serialismo vingou na música do após guerra e tornou-se a espinha dorsal do magnífico corpo estético da arte contemporânea e garantiu a imensa possibilidade de renovação das formas antigas(15). Ilustres cultores são os seguintes entre outros: Jolivet, Ligeti, Pousseur, Kagel, Luigi Nono, Heuze, E. Nunes, todos eles igualmente musicólogos destacados.

6.3 - Xenakis e a Cibernomúsica

Verifique-se que não estamos a querer suturar a obra musical destes compositores nem tão pouco descrever conquistas fundamentais de obras específicas mas sim traduzir literariamente conceitos musicológicos e considerações abstractas duma globalidade de criação cujo significado é de particular interesse para esclarecer certas tipologias musicais.
Na generalidade qualquer um destes músicos (Stockhausen, Berio, Boulez, Xenakis ... entre outros ...) abordaram os mais diversos estilos musicais e prosseguiram as grandes invenções dos mestres Charles Ives, Edgard Varése, Olivier Maessian que são considerados os pioneiros da música de vanguarda. Passemos portanto à situação da musicologia de Xenakis.(16)
A música estocástica considera os sons estatisticamente independentes e estuda-os através do cálculo das possibilidades. As massas sonoras são autonomizadas no conceito estatístico, as noções de espaço revolucionadas e a música estocástica pode ser definida como a tradução em música da entropia multidirecional. As flutuações da matéria sonora são determinadas pelo controle do acaso. A estratégia do jogo, a teoria dos jogos, a teoria do conjunto tudo isto está implícito na música de Xenakis. O uso da teoria da informação é decisiva para a realização de tão ambiciosos campos criativos.
Para os músicos a musicografia de Xenakis é pobre, os arquitectos afirmam ser uma teoria arquitectónica limitada a tópicos herdados do seu mestre Le Corbusier(17) e para os matemáticos, Xenakis é um pensador vulgar. Mas o que acontece é que este gigantesco vulto da música contemporânea soube aliar múltiplas formas de conhecimento num ciclópico sistema epistemológico. As propostas de Xenakis são um pouco estas: para o artista a música sai da sua esfera privada e integra-se na harmonia ecológica.
Manifesta-se contra a noção de periodicidade, a música é um permanente devir, insusceptível de retroacção. As formas luminodinâmicas executadas relativisticamente com raios sonoros microtemporais foram já realizadas e é preocupação musicológica da obra aberta de Xenakis. Grandes cultores da musicologia que se debruçam sobre o uso ordenador são: o polaco Penderecky, os franceses Barrault e Phillipot (da dita música algoritmica), Berio e os compositores do Estudo de Tecnologia de Milão, Ligeti, Babbitt e outros.

6.4 - Eimert, O profeta da música Electrónica.

Outro mundo maravilhoso e incompreendido é o da música electrónica. Sendo inicialmente uma forma experimental de controle de sons esta música assume formas altamente sofisticadas e expressamente definidas na musicologia de Eimert. Para o compositor alemão a ambiguidade rítmica dos sons electrónicos pressupôs e permitiu o seu desenvolvimento formal. Os factores do som (altura, intensidade e duração) actuam com valor próprio e contra os índices da periocidade simétrica. A música electrónica é uma arte minimal, constroi o próprio organismo sonoro desde o mínimo componente controlável até à forma total. o autor não indica, aqui, a forma mas sim a matéria musical. Os sons da música electrónica já estão devidamente seriados na estética de Eimert: os sons naturais (reconhecíveis) e uma nova espécie de sons: os sinusoidais. Estes sons sinusoidais consistem na matéria sonora mais simples e obtêm-se com geradores electrónicos de frequências. A seriação é conseguida a partir de misturas de sons - a música electrónica é, para Eimert, a representação de sons reais a sua metáfora sinestésica. O electrónico, em música, é o serial, organiza-se do som isolado ao mais complexo. Eimert insurge-se contra a psicologização patético-burguesa da música e diz-nos que a verdade da música é a sua percepção acústica e não dos procedimentos.
O carácter cósmico da música electrónica, segundo Eimert, distancia o mundo sideral do âmbito subjectivo. Os expoentes da música electrónica são, desde a notável escola de Colónia, Due Ferrari, Nono, Stockhausen, Pierre Henri, Merton Subotnik, Ivo Mabec, Boulez etc..., e os grandes centros mundiais donde emana vastíssima obra musicológica localizam-se em Paris, Tóquio, Varsóvia, Utreque, Estocolmo e Nova Iorque.

6.5 - Schaeffer e a Música Concreta

Intimamente relacionada, de passado comum, com a música electrónica está a música concreta que embora muita gente as confunda, se destacou hoje num ponto de vista formal. Não há dúvida que o seu grande teórico é Pierre Schaeffer. Começa por nos dizer que a música institui um instrumento novo: o microfone. A técnica é a tomada de sons, o fazer sons. A magia desta técnica é a mistura, a acoplação e a acumulação de sons.
O potenciómetro é o modulador de formas (ele é que transforma as matrizes sonoras) os correctores e as filtros dão a transmutação da matéria sonora. As reverberações artificiais que consistem em impulsões isoladas criam o novo organismo desta música concreta. As transposições de matérias sonoras edificam o que ele chama de "fonógeno universal". As fontes da música concreta são os sons puros, sem espectro harmónico, sopros naturais, batimentos originais.
Schaeffer formula então um inaudito tratado de objectos musicais concretos que consiste num catálogo/inventário de sons naturais próprios à transposição material e aos métodos desta transposição.
A música concreta é, como a electrónica, uma música de laboratório e a banda magnética substitui os intérpretes e as orquestras. Os nomes que demos para a musicologia electrónica são os mesmos, ou quase, os da musicologia concretista. De evidência que grande parte das experiências da nova poesia concreta são simultaneamente criações de música e artes plásticas.

6.6 - Cage e a Revolução Experimentalista

Até aqui, e neste relato sobre a musicologia contemporânea congeminada pelos próprios músicos, descrevi certo modus operandi das músicas mais formalizadas, esperando que a posteriori se possa fazer certos juízos. Mas a música não se altera simplesmente a partir da elaboração das suas matérias e da evolução das suas formas. Não só os musicólogos (não-músicos) nos mostraram este facto mas também um grande número de músicos de vanguarda se propuseram revolucionar a estética musical partindo de reflexões exteriores à música e utilizando os materiais sonoros de maneira desrespeitosa para a tradição académica, destruindo a torre de marfim em que a música intoleravelmente se ia fechando. Foi o que aconteceu ao teatro com as noções do Living-theatre, à poesia com Maiakovsky, às artes plásticas com Marcel Duchamp, ao cinema com Jodard, ao bailado com Isadora Duncan, à literatura com Erzra Pound, James Joice, William Burroughs ...
Eric Satie, os negros do jazz New-Orleans, abordaram já no início do século esta irreverente formulação de estética musical. Mas nos dias de hoje John Cage, para o após guerra e Karlheinz Stockhausen para a mais viva vanguarda são mentores exemplares duma nova perspectiva de criar a música. Ambos são figuras polémicas e controversas e vamos então tentar definir a sua radical situação no nosso mundo musical.
Cage é um revolucionário. Inspirado pela libertinagem de Varése, pela ousadia de Charles Ives, pela demência teosófica de Seriabine em primeiro lugar desvincula os instrumentos acústicos da tonalidade clássica - o que representa uma revolta anarquista contra a ideologia dominante da História da música: o sistema tonal e mais: o sistema serial que a tecnologia e o pensamento informático impuseram contra a tonalidade. A subversão de Cage, é pois, e essencialmente contra o cibernantropo, o homem unidimensional da sociedade electrónica.
Para Cage o som musical é tão digno como o ruído, o objecto cultural é, logo, uma chamada imediata para a natureza. O compositor até Cage ordenava o discurso e agora passa a ser um mero artesão de sonoridades.
A funk-music de Cage é organizada por sons parasitários e/ou desprezíveis. Cage revolta-se contra o colectivismo autoritário (dos partidos de direita e de esquerda) que favorecem demagogicamente o produto cultural medíocre e acessível. Abre um debate: vai contra a falsa hipocrisia de músicos e artistas que dizem dar a sua música ao público. Daniel Charles, o musicólogo anarquista que melhor divulgou e compreendeu a musicologia de Cage e dos experimentalistas, corrobora esta posição dizendo que a obra só é aberta ao público quando este teoricamente conhecer o que se vai passar na criação musical. O esoterismo da musicografia dominante é brutalmente contestado.
Cage está atento às diversas metodologias da criação musical planetária e vai buscar à India uma nova noção. Não lhe interessa na sua definição de intérprete apenas a representação teatral mas também o acto e prática do próprio actor.
O intérprete fica, na música experimental, liberto de autoritarismo da composição e entregue à sua própria concepção da música. Desmassificado o conceito de música, o experimentalismo desequilibra a ordem dominante.
Rebela-se contra as ordens sócio-políticas, as inibições do formalismo, os pudores obscuros da moral, a escravatura inconsciente aos media e às ideologias. A música experimental é provocação, excitação, insolência, acto do instante, simultaniedade vivida, anti-memória.
Vai destruir as noções de consumo e arquétipo, basilares do neo-capitalismo, arrasa o estereotipo que marcou profundamente as nossas ideias, músculos, sistema nervoso. O insólito substitui o belo. É a música experimental eminentemente lúdica, satisfação imediata do prazer. A música de Cage é projecção miocinética da última personalidade, é informe, verdadeiramente anarquista. Como não implica pré-conceitos ela é aleatória, fruto do acaso, lagos da vertigem.
A teoria da improvisação total é decisiva no experimentalismo de Cage e foi sempre uma significação distintiva, da música formalista que permanentemente se opõe a qualquer relação imprevista do acto de criar.
As músicas ditas "repetitivas" americanas que impulsionaram o rock planante vêm do Oriente e triunfam na nova sociedade em palpitação cardíaca improvisada.

6.7 - A Metamúsica em Stockhausen

Como se deve ter depreendido o que distingue a música experimental da música formalista é que esta em relação à música tonal clássica é uma rotura semântica (os sentidos gramaticais são revolucionados) e naquela processa-se uma clivagem semiológica (os símbolos são de diversa natureza). Não confundir que há música electrónica ou concreta experimentais. O que as diferencia é a relação entre os seus signos discursivos.
Portanto voltamos à ancestral oposição entre empiristas e racionalistas, sensualistas e intelectualistas que hoje toma o nome de experimentalistas por um lado e serialistas e cientistas por outro. Chegamos então à altura de definir o conceito de metamúsica que centralizamos à volta da genial figura de Karlheinz Stockhausen.
A metamúsica sobredetermina a problemática ambígua do espiritual/corporal. Os signos da metamúsica existem há muito tempo na história do homem, desde tempos imemoriais, correlativos, à experiência e à tentativa de imposição de formas novas. É, numa síntese, a realização metafísica de ritos.
Stockhausen: homem decisivo nos remos da música contemporânea. As suas obras de música electrónica, de música concreta, de música electroacústica, de música dodecafónica, de música serial, de música experimental, são obras-primas de rara e privilegiada situação no panorama da história da música.
Mas o hiper-cerebralismo deste génio criador incansável e inesgotável em progresso estético volta-se para uma nova fase a que se dá o nome de metamúsica. Esta nova fase é corrosivamente vilipendiada pela crítica, pelos músicos, pelo público (numa palavra: pela musicologia geral).
Dissemos sem receio: metamúsica. E lembramo-nos de Bachelard que dizia ser a metafísica a ilustração dum novo conceito.
Há uma enorme corrente de pensamento que se liga à investigação cósmica, aos mistérios da ciência e da natureza, à própria formulação de hipótese de existência de outras formas de pensamento não-humanas, à experiência psicadélica que mobilize uma energia interior desconhecida - e esta corrente, em franco progresso não deixa, por isso, de ser excluída duma reflexão materialista.
A metafísica (não identificada com teologia) renasce da incapacidade da ciência em explicar a existência e a liberdade. A metafísica é uma ilustração da Arte - todos os músicos de todas as culturas arquitecturam a noção de música dentro de conceitos imaginários. Isso aconteceu desde a música mágica ritual à musica religiosa até à actual metamúsica.(18)
Repare-se no que diz Gaston Bachelard: "quando se atinge a perfeita abstração devem-se ilustrar os esquemas racionais com o imaginário filosófico." Este imaginário filosófico é o riquíssimo substracto da metamúsica. Stockhausen atingiu a perfeita abstração racional e voltou-se para outros problemas que a vulgaridade do pensamento dominante brutalmente sempre procurou ignorar: o enigma, o recital secreto de conjuntos sonoros formados por termos misteriosos.
A metamúsica é uma perda provisória do sentido da música dominante, um horizonte de reapropriação circular (o eterno retorno) do sentido próprio. O sentido da música reconstrói-se a partir da consciência do músico, que é o centro de toda a significação.
Ao signo profundo da forma musical junta-se o signo sublime do poético, construindo um mundo essencial que ultrapassa o imediatamente significativo do matemático e da ciência positivista. Heidegger diz que "o acto verdadeiramente transformador consiste em fazer ver qualquer coisa no seu ser-conjunto, fazer ver qualquer coisa com qualquer coisa". A forma na metamúsica é um processo de aprofundar abismos insondáveis do conteúdo e portanto numa emersão efectiva deste. A visão do mundo, em Stockhausen, é beatífica, o som glorificado.

7 - Da Música como Arte

Perguntamos: o que foi que distinguiu a música do homem com os deslumbrantes sistemas de produção sonora natural? Precisamente: a música não tem utilidade em si, não implica forçosamente conotações afectivas simultâneas (ou seja: não exprime a simultaniedade, mas antes se organiza numa reprodutividade futura).
Porque a música é uma arte - a sua função é eminentemente estética. Funciona dentro de critérios estéticos (as noções de belo) traduz a possibilidade de repetir as suas formas independentemente da situação afectiva ou utilitária. O que a música tem de "cultura" é o seu lado estético. Opinará um leitor sensível e intransigente: mas não há beleza no canto das aves, não haverá aí um sentido estético? O que esse leitor privilegiado pelo seu ouvido (e pode ser ele um camponês correctamente especializado na misteriosa linguagem das aves) conota como estético reduz-se a uma já complexa interiorização racional e sensorial de múltiplas linguagens acústicas que historicamente (na sua experiência vivencial) arquivou na memória auditiva e sistematizou através da inteligência.
É o homem que estetiza o canto das aves e não o canto das aves que é intrinsecamente estético. E relembro a inspiração que o canto natural das aves tão proliferamente se encontra na história da música, desde as primitivas flautas indonésias à macro-estrutura serial da música de Olivier Messiaen.
A música é recriação colectiva do imaginário, intersubjectividade em que o homem antecipa o repouso eterno da pulsão da morte.
Todo o ruído foi/é susceptível de ser ouvido musicalmente pelo homem.
Tudo isto é trabalho histórico - antropologia musical - a fazer, logo retrospectivo, mas também revolucionário e vanguardista nos seus conceitos, logo prospectivo.
Sobre a Arte só a Arte pode falar, e aí entendo - só posso entender - a musicologia como uma experiência poética.

Notas:

(1) Por exemplo o Klavierstuck XI de Karlheinz Stockhausen, a Sequenza pour flûte seule de Luciano Berio, Scombi de Henri Pousseur e ainda a Troisième Sonate pour Piano de Pierre Boulez. Estes quatro nomes não estão aqui por acaso. Trata-se de quatro compositores contemporâneos que fizeram progredir a música contemporânea nos seus respectivos países: Alemanha Ocidental, Itália, Bélgica e França.

(2) Eco tem a preocupação de nos tentar evitar um equívoco. Diz ele: "Il convient d'eliminer tout de suite une équivoque: l'intervention de cet interprète qu'est l'executant (le musicien qui joue une partition ou l'acteur que récite un texte) ne peut évidemment se confondre avec l'intervention de cet autre interprète qu'est le consommateur (celui qui regarde um tableau, lit en silence um poème ou écoute une oeuvre musicale que d'autres exécutent). Cependant, au niveau de l'analyse esthétique, les deux opérations peuvent être considerées comme des modalités différentes d'une même attitude interprétative: la "lecture", la "contemplation", la "jouissance" d'une oeuvre d'art représentent une forme individuelle et traite d'"exécution". La notion de processus interprétatif englobe l'ensemble de ces comportements". Ver L'Oeuvre Ouverte, pág. 38.

(3) Eco, Umberto - L'Oeuvre Ouverte, pág. 17.


(4) Stockhausen diz-nos o seguinte a propósito desta questão: "O intérprete olhará a folha sem intenções preconcebidas, ao acaso, e começará por seguir a parte do primeiro grupo que o seu olhar encontrar: ele próprio escolherá a velocidade, o nível dinâmico e o tipo de entrada em que este grupo deve ser articulado. Terminado o primeiro grupo, o intérprete lerá as indicações de velocidade, de dinâmica e de entrada, assinaladas no fim; depois, olhará, ao acaso, um outro grupo e tocá-lo-á de acordo com as tais três indicações...Cada grupo pode ser ligado a qualquer dos outros dezoito, de forma que poderá ser executado em cada uma das seis velocidades, das seis intensidades e das seis formas de entrada."
Mostra-se aqui que é óbvio que a causalidade das escolhas torna possível uma infinidade de execuções diferentes, pois muitos grupos poderão não aparecer nunca no decurso de outras execuções, e outros aparecem mais do que uma vez na mesma. Todavia, uma coisa que não podemos esquecer. Os grupos são aqueles e não outros; o autor, ao estabelecê-los, orientou e determinou implicitamente a liberdade do intérprete.

(5) Umberto Eco ainda vai acrescentar dizendo que: "Neste contexto, até fenómenos como os musicais, até agora ligados àrelação apresentação-contemplação típica da sala de concertos, implicava uma fruição activa, uma co-formação, que, ao mesmo tempo, consiste numa educação do gosto, numa renovação da sensibilidade perceptiva. Se uma das razões da falta de educação estética do público (e, portanto, da clivagem entre arte militante e gosto corrente) está no sentimento da inércia estilística, no facto do fruidor ser levado a fruir apenas os estímulos que satisfazem o seu sentido das probabilidades formais (por forma a apreciar apenas melodias iguais às que já ouviu, linhas e relações o mais óbvias possível, histórias com um final habitualmente "feliz"), deve admitir-se que a obra aberta de tipo novo também pode constituir, em circunstâncias sociologicamente possíveis, uma contribuição à educação estética do público comum."
Eco, Umberto - A Definição da Arte, pág. 159.

(6) Sem mais explicações, penso que se compreenderá porque éque o dodecafonismo é o sistema musical de que na nossa análise tomaremos como ponto de partida. Os grandes mentores deste sistema foram no princípio do século Schoenberg, Berg e Weberg.

(7) A propósito do silêncio na música e da sua importância lembramos que John Cage tem uma posição bem vincada. Diz-nos o seguinte: "O que me interessa, é de longe, em relação a toda a coisa que acontece, é como é que seria se nada acontecesse. Neste momento, quero que as coisas que acontecem não apaguem o espírito que se encontrava já sem o que foi, acontecesse. Quando digo, em relação a esta coisa "sem o que foi acontecesse" é o que chamo o silêncio, quer dizer um estado de coisas livre de intenção, porque - por exemplo - temos sempre sons; e não dispomos de nenhum silêncio no mundo. Estamos num mundo de sons. Chamamos silêncio quando não experimentamos conexão directa com as intenções que produzem os sons. Dizemos que é um mundo silencioso, quando em virtude da nossa abstenção de intenção, não nos parece que haja muitos sons. Quando nos parece haver muito, dizemos que há ruído. Mas entre um silêncio silencioso e um silêncio pleno de ruídos, não há diferença realmente essencial. O que vai do silêncio ao ruído, é o estado de não-intenção, e éeste estado que me interessa".
Cage, John in Charles, Daniel - "Alla ricerca del silenzio perduto" - notes sur le "train de John Cage" 26-28 Juin 1978, págs. 78-79.

(8) O exemplo mais bem acabado é o do compositor Iannis Xenakis, grego de naturalidade mas vivendo em Paris que numa dupla formação de músico e de arquitecto permitiu unir a matemática à música. Xenakis utiliza nas suas composições a teoria das probabilidades e é desta maneira um fiel discípulo de Pitágoras e da sua escola.

(9) É arriscado fazer uma declaração destas, mas éconscientemente que o fazemos e assumimos por isso o risco.

(10)Só para não citar outros, todos os outros do nosso ponto de vista.

(11)Logo económica, como não podia deixar de ser.

(12)Dialéctica materialista e não materialismo dialéctico... Não se trata dum jogo de palavras mas da única dialéctica que aceitamos, como a dialéctica de Proudhon e de Bakunine, dialécticas na origem dos movimentos libertários..

(13)Parte importante do aparelho ideológico musical.

(14)Como é o meu caso.

(15)Consultar as obras de Boulez.

(16)Na obra de Claude Samuel - Panorama da Arte Musical Contemporânea mencionada na Bibliografia, há um artigo inédito de Xenakis sobre a música estocástica.

(17)Discípulo de Le Courbusier, Xenakis foi com ele quem planeou o pavilhão de exposições de Bruxelas, e como se isso não chegasse, compôs uma composição "Metastasis" que utilizando regras matemáticas, traduz em música a geometria implícita no pavilhão.

(18)Compreende-se que não vamos desenvolver este aspecto, que é interessante mas que não cabe dentro do âmbito deste trabalho.