Tuesday, February 20, 2007

STIRNER E O ÚNICO OU O ÚNICO STIRNER

"Só o não-pensar me salva dos pensamentos."

"Quando ataco os pensamentos, é a minha pele que defendo contra eles."

"Só pela carne posso sacudir a tirania de espírito, só quando um homem compreende assim a sua carne se compreende inteiramente é que é inteligente ou racional."

STIRNER - O único e a sua Propriedade


Max Stirner, pseudónimo de Johann Kaspar Schmidt, nasceu em 1806 em Bayreuth e morreu em 1856. Foi aluno de Hegel em Berlim. O seu livro O Único e a sua Propriedade (Der Einzige und Sein Eigentum) publicado em 1845 mas escrito em 1844, ano do nascimento de Nietzsche, cuja filosofia foi muitas vezes aproximada da de Stirner, sem que se possa aliás provar esta filiação, é o produto espantoso, mas não menos autêntico, do hegelianismo chegado ao fim da sua corrida desenfreada.
A alienação em Stirner ultrapassa o domínio religioso, engloba todos os poderes que não saíram directamente do indivíduo, e, muito particularmente, o Homem feuerbachiano, ou seja, o homem como categoria, superior também a ele, ainda que lhe peses, ao homem particular.
Todo o esforço do pensamento stirneano tende a reconduzir estes poderes ao âmago do indivíduo original. "As nossa sociedade e Estados existem sem que sejamos nós a fazê-lo, são reunidos sem o nosso consentimento, são predestinados, têm uma existência própria, independente, estão contra nós individualistas, o que existe de maneira indissolúvel. Hoje em dia, o mundo está, como se diz, em luta contra "o estado de coisas existente". No entanto, as pessoas enganam-se, em geral, acerca do sentido desta luta, como se não se tratasse de trocar o que existe actualmente por uma ordem nova que seria melhor. Devia ser antes a toda a ordem existente, quer dizer ao Estado, que a guerra deveria ser declarada, não a um Estado em particular, e ainda menos à forma actual de Estado. O objectivo a atingir não é um outro Estado (o "Estado popular" por exemplo), mas a associação, associação sempre em mutação e renovada de tudo o que existe."
Uma vez cumprido este trabalho de recuperação libertadora, o homem tornado Ùnico transforma tudo o que antes se lhe opunha em propriedade que ele organiza o seu bel-prazer. Não é, no entanto, a liberdade absoluta que Stirner exalta, mas reivindica o direito absoluto à originalidade. Não ensina a liberdade total, mas proclama a unicidade que nenhuma norma abstracta poderá fazer desaparecer. A revolta que Stirner prega é uma revolta interior, a tomada de consciência da nossa unicidade que nos permitirá proceder a uma mudança de óptica. Venceremos todas as forças de opressão na medida em que nos dermos conta de que elas só tiram o seu valor e a sua força da ignorância em que nos encontramos do nosso papel de criadores soberanos e absolutos.
O Único e a sua Propriedade, livro dividido em duas partes de que a primeira se intitula "O Homem" e a segunda "Eu", traz em epígrafe a célebre frase de Feurbach: "O Homem é para o homem o ser superior", acompanhada da seguinte observação de Stirner: "Olhemos, pois, este ser supremo". A intenção do autor fica assim claramente definida. Trata-se de lutar num primeiro tempo contra todas as alienações, sobretudo contra a alienação mais recente, o humanismo feuerbachiano, e de proceder num segundo tempo às sucessivas reapropriações. À luta contra o Estado responde a reconquista do Estado pelo "seu poder", a sociedade uma vez vencida será incorporada no "meu comércio", o mais duro e mais encarniçado combate que será travado contra o humanismo encontrará um fim glorioso no "Meu gozo pessoal". É neste sentido que se insere a célebre passagem do Ùnico: "Revolução e Revolta não devem ser tidos como sinónimos. A primeira consiste numa perturbação do estado de coisas existente, do estatuto do Estado ou da sociedade, sendo assim um acto político ou social. A segunda, implicando inevitavelmente uma transformação da ordem estabelecida, não faz desta transformação o seu ponto de partida.
(...) A Revolução tem como objectivo novas instituições. A Revolta conduz-nos a não nos deixarmos gerir nunca mais, mas a gerirmo-nos a nós mesmos (...) o meu objectivo não é derrubar o que existe, mas elevar-me acima do que existe, os meus actos não têm nada de político ou social, só têm por objecto eu próprio e a minha individualidade."
A alienação política, segundo Stirner, não cessa de se agravar. Qual é, com efeito, a diferença entre o Antigo Regime e a Nação soberana, filha da Revolução? Sob o Antigo Regime, o poder monárquico não se exercia directamente sobre o súbditos. A corporação intercalava-se como elemento mediador entre o rei e os súbditos. O homem dependia em primeira instância de um grupo social, de forma que o pretenso "Absolutismo" estava de facto limitado por inumeráveis poderes secundários. Mas a partir do dia em que a Nação se instituiu soberana, o súbdito entrou em dependência directa face ao poder. O reino dos privilégios do Antigo Regime transformou-se num reino de direito contra o qual ninguém tinha doravante o direito de se insurgir. No fundo, e por mais paradoxal que tal pareça, a Revolução substitui a monarquia moderada do Antigo Regime pela monarquia absoluta do Estado moderno.
A escravidão exterior do Antigo Regime converteu-se numa escravidão interior, ou seja, numa escravidão cuja legitimidade é por nós reconhecida. O Antigo Regime, afirma Stirner, era de certa forma católico, pois concentrava-se com um reconhecimento exterior do poder superior, a democracia moderna, em contrapartida, é protestante, pois exige o acordo interior entre o cidadão e a Nação.
No entanto, o Estado liberal deixara ao indivíduo um último domínio onde lhe era permitido refugiar-se, a propriedade privada. Ora, eis que o comunismo reclama para a sociedade esse último vestígio da autonomia individual. De ora em diante a sacrossanta Sociedade tudo possui, o indivíduo nada mais possui. O comunismo instaura assim o reino da "indigência universal".
A alienação política tem o seu prolongamento na alienação social. Para lhe pôr termo, Stirner propõe o estabelecimento de uma associação. É preciso demolir a Sociedade tal como ela existe actualmente, Não é criada pelos indivíduos; situa-se fora e acima deles. Além disso, está definitivamente estabelecida, estável, digamos mesmo atingida pela esclerose. Desta forma, bem assente na sua soberania e na sua permanência, qualidades fictícias e provisórias, é certo, mas não menos reais enquanto os homens não compreenderem que ela não passa do efeito do seu poder criador, que é amassada pelas suas próprias mãos e que o seu destino depende apenas deles, a Sociedade deforma, oprime e aniquila a vontade individual.
A associação, pelo contrário, é o encontro momentâneo, a união instável e perpetuamente modificada dos indivíduos que a adaptam às suas necessidades e que não perdem o seu controle. A associação permanece subordinada à soberania do EU; dura enquanto for susceptível de servir os indivíduos e desaparece logo que torna inútil.
Stirner não se opõe, no entanto, à organização do trabalho. Julga, pelo contrário, que estamos muito a tempo de por termo ao regime da livre concorrência, sob o qual o homem, ávido de adquirir tudo o que o liberalismo pôs aos seu alcance, se torna vítima de um materialismo aviltante. A organização do trabalho permite ao homem consagrar menos tempo às exigências puramente materiais de vida, ou seja, ao trabalho social que Stirner qualifica de "humano".
Ao libertar o indivíduo do fardo pesado acabrunhante dos "trabalhos humanos", a associação favorece a execução dos "trabalhos únicos", ou seja, dos trabalhos que são da sua exclusiva competência, que ele é o único a poder realizar, como os trabalhos artísticos e literários. Dado que só o trabalho "humano" é organizado na associação, a individualidade do Eu escapa a toda a influência colectiva.
Quanto às relações entre os indivíduo, a Sociedade repousa sobre um amor "humano", isto é, sobre um amor que tem por objecto não o individuo em particular, mas o homem abstracto e normativo. Trata-se, no fundo, de um amor fictício que se transforma facilmente em ódio e justifica todas as perseguições por pouco que o individuo particular não corresponda à imagem que nela se faz do homem em geral, A associação, em contrapartida, só conhece o amor "egoísta", ou seja, um amor que considera o ser amado como um objecto da satisfação egoísta, com "um alimento oferecido às paixões do Eu". Assim, mesmo no domínio dos sentimentos em que o coração humano gosta de se abandonar e entregar a outrem, o indivíduo conserva a autonomia da sua vontade.
A associação garante ao indivíduo um máximo de liberdade dado que as imposições sociais nela são imprimidas. Mas é preciso ter bem em conta, e Stirner insiste muito particularmente neste aspecto do problema humano, que o homem não pode ser inteiramente livre, quanto mais não seja por causa das limitações que o seu corpo lhe impõe. A vantagem da associação não é tanto, pois, a conquista de uma liberdade que no fundo permanece sempre fictícia, como a salvaguarda da nossa individualidade. Como todas as restrições da associação se fundam num contrato, é com toda a soberania que o indivíduo renuncia temporária e passageiramente ao exercício de alguns dos seus direitos.
A alienação moral por fim, atinge o seu ponto extremo no humanismo, para o qual concorrem, aliás, todas as outras alienações. O humanismo compromete-nos a cooperar na criação de um homem ideal que reúna em si todas as perfeições. Ora uma tal tentativa é vã, poiso homem ideal que enfeitamos com todas as nossas qualidades não esgota a nossa originalidade e contém apenas a parte do nosso ser que possuímos em comum com os outros Eu. É além disso uma tarefa ingrata, que, precisamente pelo facto de o seu fim ser irrealizável, nos mantém num estado de inquietação permanente. Só a consciência do nosso Eu. , não de Eu ao lado de outros Eu, mas de um Eu indefinível, de um Eu "único", de um Eu que, portanto, renuncia a todo o pressuposto comum, nos faz aceder ao que Stirner chama "o meu gozo pessoal".
"É só a partir do momento em que Eu estou consciente de mim próprio, e em que Eu não Me procuro mais, que Eu sou verdadeiramente propriedade minha: Eu possuo-Me, logo, Eu consumo-Me e Eu usufruo de Mim. Ao contrário, Eu nunca poderei usufruir de Mim enquanto Eu pensar que Me é preciso ainda encontrar o Meu verdadeiro Eu e reduzir-Me a que Cristo, e não Eu viva em Mim, ou então um outro Eu espiritual, quer dizer, fantástico, como, por exemplo, o verdadeiro homem, a essência do homem..."