Saturday, February 03, 2007

OS INTITULADOS SERVIDORES DO ESTADO

Nos países de capitalismo avançado, os altos funcionários públicos não são supostos revelar quaisquer afinidades políticas ou partidárias. Sem dúvida que nestes países os governos chamam ao aparelho administrativo indivíduos do seu próprio partido, ou dão-lhes prioridade nas promoções. Porém, na maioria dos casos, as elites administrativas desses sistemas políticos não são constituídas por indivíduos que pertençam a um partido político. Ao invés, afirma-se insistentemente (os próprios funcionários públicos o afirmam) que são politicamente "neutros", no sentido de que a sua preocupação dominante, senão mesmo a sua única preocupação, é o avanço dos negócios do Estado sob a orientação dos seus dirigentes políticos.
Indicou-se já que de forma alguma corresponde à realidade a pretensão de que os funcionários públicos são meros executantes de medidas políticas, para a deliberação das quais eles não concorrem. Não queremos dizer que os burocratas têm sede de poder e dirigem o país e que os ministros apenas oferecem a fachada para o governo burocrático. Também isto não corresponde a toda a realidade. A verdade reside algures entre dois extremos: temos de admitir que existe um padrão segundo o qual estes indivíduos na verdade desempenham um papel importante na tomada de decisões do governo, constituindo por isso uma força considerável na configuração do poder político das sociedades.
Quanto ao modo como esse poder é exercido é altamente enganadora a noção de neutralidade que frequentemente se lhe atribui; na verdade, basta um momento de reflexão para ver quanto ela é absurda: homens tão profundamente imersos nas questões públicas e que se desempenham um importante papel não só na aplicação como na deliberação de medidas políticas, por certo não estão isentos de inclinações ideológicas definidas, por muito pouco conscientes que delas estejam. Obviamente, estas inclinações não podem deixar de afectar todo o carácter e orientação dos conselhos que se dignam dar, bem como o modo como encaram as suas tarefas administrativas.
Também poucas dúvidas devem existir quanto à natureza dessas inclinações: é de esperar que os altos funcionários públicos nos países de capitalismo avançado desempenham um papel conservador nos conselhos de Estado, reforcem as propensões conservadoras dos governos onde essas tendências estão já altamente desenvolvidas e sirvam de elemento inibidor no caso de governos onde elas são menos pronunciadas.
Como no caso de dirigentes políticos conservadores, essas inclinações podem admitir um interesse liberal ou progressivo neste ou naquele aspecto da ordem social. Em todos os países capitalistas, os funcionários públicos têm esporadicamente desempenhado um papel importante em reformas sociais, económicas, administrativas e militares. Mas essa tem sido a excepção e não a regra. Nos casos em que ocorre, esta tendência reformadora tem siso inteiramente a ordem social existente.
Em face destas inclinações ideológicas, não há evidentemente qualquer razão que impeça os altos funcionários públicos de serem mais ou menos neutros entre diferentes partidos conservadores que se sucedam no poder, e há todas as razões para que eles sirvam com igual zelo, dentro deste espectro limitado, qualquer governo impelido às alturas pela onda do sufrágio universal.
Também não tem necessáriamente de haver qualquer afastamento desta neutralidade quando o espectro é alargado, ou seja, quando governos sociais-democratas sobem ao poder, Estes, nunca tentaram pôr em prática em coerente conjunto de medidas que fosse tão contrário aos interesses e ao pensamento conservadores que estes o não pudessem tolerar. Face a tais governos, os funcionários públicos nunca foram portanto forçados a optar entre servir o que eles entendem ser o interesse nacional, ou servir o governo que está no poder.
É por esta razão que parecem ingénuos, patéticos até, os tributos que inúmeras vezes ministros sociais-democratas têm prestado à lealdade, à dedicação e ao zelo dos seus funcionários públicos. Isto é porquanto a lealdade que eles elogiam é muito menos uma expressão da infinita adaptabilidade ideológica e política dos funcionários públicos, do que da adaptabilidade dos dirigentes sociais-democratas aos objectivos conservadores.
Será plausível argumentar-se, uma vez que num país capitalista avançado o guião nunca foi escrito antecipadamente, que continua a ser pura especulação avaliar qual o papel exacto que os altos funcionários públicos desempenhariam se um governo revolucionário tomasse o poder. Seja como for, tal governo introduziria certamente transformações de longo alcance no aparelho administrativo e chamaria indivíduos com o zelo e apoio em que pudesse confiar. De facto, a simples vontade de operar mudanças administrativas de vulto seria um importante critério de avaliação da seriedade do seu objectivo. Se tal vontade não existisse, o resultado estaria à vista: manter-se-ia um corpo de funcionários com a preocupação dominante de limitar os danos que tal governo causasse e de fazer tudo quanto estivesse ao seu alcance para intervir administrativamente em programas que não fossem do seu agrado e que eles, pese na sua honestidade, considerassem prejudiciais ao interesse nacional. Nalguns casos, poderíamos encontrar o tipo de sabotagem administrativa que a esquerda tem previsto e receado. O que é importante frisar é que, embora dependendo deste ou daquele país e das circunstâncias de dado momento, os governos dispostos a operar mudanças revolucionárias não podem de forma alguma contar com a neutralidade das tradicionais elites administrativas para a aplicação de tais mudanças, para já não falar em apoio dedicado e entusiástico necessário à implantação das novas medidas a preencher.
E, contudo, nem só governos deste tipo contam com dificuldades levantadas pelas elites tradicionais. Qualquer governo apostado em reformas com implicações radicais poderá deparar com hostilidade por parte de muitos, senão de todos, os conselheiros de carreira. Um dirigente político que seja dotado de uma forte personalidade e tenha o apoio dos colegas poderá ser capaz de resolver os problemas a seu contento. Isto não quer todavia dizer que os problemas não existem, quanto mais não seja porque, segundo alguns, em relação aos Estados Unidos, os especialistas que ocupam os cargos mais elevados da hierarquia pública possuem reservas ilimitadas desse enorme poder que provém do simples facto de terem postos fixos. Quanto à Grã Bretanha, outros opinam que a função do funcionário público superior, bem a da coroa, é manter a continuidade, acrescentando que a sua profissão o obriga a cuidar mais da continuidade do reino do que do êxito do partido político. Trata-se de um estranho argumento porquanto, longe de dizer respeito ao tipo de neutralidade que se proclama ser a característica distintiva do funcionário público superior, o envolve numa atitude que não e neutra quanto a políticas que, nessa opinião, garantam a continuidade do reino, e quanto a inovações que, no seu ponto de vista, teriam efeitos contrários.
Apesar disto, administrador poderá ceder perante os seus superiores políticos e servi-los na execução de medidas políticas que ele considera erradas. Fá-lo-à, porém, inevitavelmente, por processos que limitem os danos. Esta atitude terá o condão de neutralizar as inovações radicais. Em resumo, os funcionários públicos representam, no seio do sistema de Estado, a voz da cautela e da moderação, e o seu moto permanente é "não demasiado zelo", pelo menos no que toca a reformas radicais, Isolados como geralmente têm estado de pressões populares que os políticos na senda dos votos têm sido forçados a ter em atenção, os altos funcionários públicos têm desempenhado o papel de advogados do status quo, da herança conservadora, de rotinas sacrossantas. Poderá não ser uma função nem digna de admiração, nem necessária. É, contudo, compatível com a noção de neutralidade inerente aos funcionalismo público dos países capitalistas avançados.
O conservantismo dos funcionários públicos superiores nos países capitalistas avançados deve ser visto não em termos gerais mas específicos, relacionados com as configurações de classe e hierarquias de classe destas sociedade, e ter como principal objectivo não simplesmente a defesa de uma ordem social, mas da ordem social típica destas sociedades, em todas as suas principais manifestações. Por outras palavras, os funcionários públicos superiores destes países não são apenas conservadores no sentido de que, dentro da esfera particular em que cada um manobra, eles são os aliados, conscientes ou inconscientes, das elites económicas e sociais existentes.
Há mais de uma razão de ser para isto. A mais óbvia, já focada, é que a proveniência social, bem como a educação e a situação de classe dos funcionários públicos superiores, os torna parte integrante de um meio específico cujas ideias, preconceitos e opiniões eles naturalmente compartilham e que certamente vai influenciar, mesmo definir, a sua visão do interesse nacional.
Mas isto não é tudo. Há também o facto - a que muitas vezes não se presta a devida atenção - de que a sanidade ideológica dos funcionários públicos superiores, e de muitos outros, não é uma questão deixada ao acaso nesses países. O recrutamento e a promoção deixaram de ser de um modo geral decididos na base da proveniência social ou da filiação religiosa. Nem tão pouco se espera que nestes sistemas os funcionários públicos subscrevam uma determinada doutrina política ou ideológica. Espera-se, no entanto, que eles se situem num espectro de pensamento, do qual o conservantismo é um dos pólos e o reformismo débil o outro. Fora deste espectro espreita o grave perigo, e nalguns países a certeza absoluta, de uma carreira administrativa obscura ou praticamente nula.
Em todos os países capitalistas os candidatos e os próprios quadros do funcionalismo público estão sujeitos a métodos de escrutínio e a controles de segurança - hoje norma comum na vida administrativa do ocidente. A razão oficial apresentada para a existência destes métodos é que há que excluir todo e qualquer risco de segurança nos quadros do Estado, particularmente em posições importantes e de grande sensibilidade. Todavia, a ideia daquilo abranger aquele cujas opiniões sobre questões importantes se afastem de um estrutura de sanidade definida em termos do consenso conservador dominante. Acresce a isto que o conhecimento que os funcionários públicos têm daquilo que deles se espera e exige, em termos políticos e ideológicos, é mais do que suficiente para garantir que aqueles que porventura estejam tentados a sair do estreito caminho que podem trilhar, se contenham e vençam a tentação. De qualquer maneira, eles são em número reduzido.
Mas talvez mais importante do que estes factores para o reforço da visão conservadora dos altos funcionários públicos e para o encaminhamento dessa visão segundo uma direcção específica, de molde a transformá-los em activos adeptos do mundo do capitalismo da sociedade anónima, é a sua aproximação cada vez maior desse mundo.
Para começar, há o facto de que a intervenção de Estado na vida económica implica uma constante relação entre os "business men" e os funcionários públicos, não como adversários ou representantes de interesses diferentes e divergentes, mas como parceiros ao serviço de um interesse nacional, que os funcionários públicos, como os políticos, certamente definirão em termos congruentes com os interesses a longo prazo do capitalismo privado.
Além disso, o mundo da administração e o mundo da grande empresa estão agora cada vez mais interligados em termos de uma situação em que até é possível o intercâmbio de pessoal. Vimos já que é cada vez maior o número de homens de negócio que acabam por ingressar no sistema de Estado, quer ao nível administrativo quer político, Porém, também é verdade que os altos funcionários públicos entram com regularidade crescente nos quadros da sociedade anónima.
Esta permutação entre os serviços governamentais e o mundo do negócio é particularmente característica da nova vaga de tecnocratas que tem proliferado devido ao intervencionismo económico do Estado neo-capitalista, os quais desfrutam de grande influência e poder num vasto número de departamentos, organismos de planeamento, juntas reguladoras, instituições financeiras e de crédito, indústrias e serviços nacionalizados. Aplica-se ainda à vaga mais recente de tecnocratas internacionais que dirigem as instituições supranacionais nascidas da internacionalização do capitalismo avançado.
Estes indivíduos não pertencem exclusivamente nem à esfera do governo nem à esfera do negócio. São parte integrante de ambas e circulam facilmente de uma esfera para a outra, tanto mais quanto se sabe que as fronteiras desses dois mundos se esbatam e tornam cada vez mais indistintas.
Estas conclusões aplicam-se aos tecnocratas de todos os países capitalistas. Não se deve esquecer que as oportunidades que as actividades económicas actualmente oferecem aos seus membros das elites administrativas não podem, em muitos casos, deixar de moldar as atitudes dessas elites para com os requisitos económicos. Regra geral, estas oportunidades são oferecidas apenas a indivíduos que revelaram já uma compreensão adequada das necessidades e dos objectivos da empresa capitalista.
Convém dizer que, mesmo quando não são feitas propostas atraentes, pode sempre fazer-se sentir a pressão do negócio organizado sobre os funcionários hostis ou recalcitrantes. Os funcionários públicos envolvidos na tomada de decisões, na intervenção e na regulamentação não podem dar-se ao luxo de ignorar o facto de que as atitudes e acções consideradas anti-negócio vão certamente hostilizar indivíduos poderosos e influentes, e revelar-se pouco populares aos olhos dos dirigentes políticos. Quando tal acontece, já não se abre a porta a uma carreira administrativa repleta de êxitos, e muitos menos a uma carreira no mundo do negócio após o desempenho de funções administrativas.
É desnecessário salientar que nenhum destas vantagens se reflecte em favor dos trabalhadores ou de outros interesses e classes, sejam eles quais forem. Os trabalhadores têm pouco a oferecer às elites administrativas. Efectivamente, não há muitos exemplos de funcionários públicos que ingressem num sindicato depois da aposentação. Nem tão pouco o movimento operário consegue exercer qualquer pressão ou influência do tipo daquela que o negócio exerce sobre as elites administrativas e sobre os governos. Os funcionários não são de forma alguma neutros no conflito de classes e de interesses das sociedades capitalistas avançadas. Quer disso estejam conscientes quer não, eles são os aliados contra o trabalho. A burocracia do Estado não é um elemento impessoal, não ideológico e apolítico da sociedade, superior aos conflitos em que as classes, os interesses e os grupos se empenham. Pelo contrário, em virtude das suas tendências ideológicas, reforçadas pelos seus próprios interesses, essa burocracia é um elemento vital e activo na manutenção e defesa da estrutura do poder e dos privilégios inerente ao capitalismo avançado. O mesmo se poderá dizer dos tecnocratas económicos, com uma actividade que não é puramente técnica e não ideológica. O objectivo do seu papel é fortalecer e consolidar as estruturas económicas existentes, e a reacionalização e adaptação das mesmas às necessidades da empresa capitalista. A esta luz, o capitalismo contemporâneo não poderia encontrar servidores mais úteis e dedicados do que os homens que ajudam a administrar a intervenção do Estado na vida económica.