REFLEXÕES SOBRE A ESPONTANEIDADE DAS MASSAS NO PROCESSO HISTÓRICO
1- O pretexto utilizado
Tendo em conta as mudanças que neste momento e de há sensivelmente dois anos a esta parte se vêm operando nos chamados países de Leste são de âmbito estrutural e vaticinam uma mudança de direcção no regime político e na ordem económica, mostra bem a falência do sistema levado à prática por Lenine, Trostsky e Estaline. O marxismo-leninismo que foi sempre uma teoria-prática dogmática, porque determinista (o seu contrário não deixa igualmente de ser válido) admitiu sempre a possibilidade de conhecer todos os meandros do processo histórico à priori. Diria ainda mais, a priori à boa maneira Kantiana.
2 - Leninismo e a crítica à espontaneidade
Por aquilo que foi afirmado compreende-se agora que Lenine na obra Que fazer? que não é mais que uma crítica à espontaneidade, tenha defendido que o espontâneo não possa ser assimilado a uma atitude consciente e crítica, o que contestamos na íntegra. Diz lenine: "É, nesta mesma época, que as greves operárias adquirem, depois da famosa guerra industrial de 1896, em Petogrado, um carácter geral. A sua extensão por toda a Rússia mostrava claramente como era profundo o movimento popular que de novo se levantava, e se se quer falar do " elemento espontâneo", é seguramente este movimento de greves que é necessário classificar, antes de tudo, como espontâneo. Mas há espontaneidade e espontaneidade. Também houve greves na Rússia durante as décadas de 70 e de 60 (e até na primeira metade do século XIX), greves acompanhadas da destruição "espontânea" de máquinas, etc. Comparadas com estes "motins", as greves da década de 90 poderiam até ser qualificadas como "conscientes", tal foi o progresso do movimento operário nesse intervalo. Isto mostra-nos que, no fundo, o elemento "espontâneo" não é mais do que a forma embrionária do consciente." (1)
Achamos importante e necessária esta citação tão longa para compreendermos bem a posição leninista. Toda a agitação espontânea das massas populares são tidas como negativas, porque dispensam forças e energias e porque não são comandadas, nomeadamente pelo partido comunista. Note-se como curiosidade que a palavra espontâneo é sempre mencionada entre aspas, o que deve ser interpretado num sentido pejorativo, pois Lenine considera neste excerto que não é possível o sentido crítico e consciente duma manifestação espontaneamente conduzida.
Mais à frente, Lenine vai mais longe e vai criticar aqueles que tentaram teorizar a espontaneidade, dos quais destacaremos os anarquistas da segunda metade do século XIX: "...quando aparecerem pessoas - e mesmo orgãos sociais - democratas - dispostos a erigir os defeitos em virtudes, e que tentaram até dar um fundamento teórico à sua adulação servil e ao seu culto da espontaneidade." (2) Dentro destes anarquistas é importante salientar o nome de Proudhon, que foi indiscutivelmente o primeiro a formular uma teoria sobre a espontaneidade das massas.(3) Em conclusão, a espontaneidade é duramente criticada por Lenine, pois o livro Que Fazer? teve como objectivo desempenhar um papel importante na criação de um partido comunista, para a classe operária da Rússia.
O estalinista Georges Politzer vai na mesma linha de pensamento, pois também ele critica a espontaneidade e clama pela necessidade da existência de um partido comunista: (4) "A necessidade de tal partido é um dado fundamental do socialismo científico. Ela está de acordo com os ensinamentos do materialismo dialéctico e histórico. Porquê ? Porque se é verdade que o proletariado explorado pela burguesia é, materialmente, conduzido a lutar contra ela, isso não significa, de maneira alguma, que a sua consciência seja espontaneamente socialista. A tese da espontaneidade é contrária ao marxismo; a teoria revolucionária é uma ciência, e não há ciência espontânea". (5)
O único oportunismo em relação a estas questões, tem deturpado constantemente o rumo do processo histórico para os seus próprios interesses.
3 - A espontaneidade das massas nos países de Leste
O que tem acontecido nestes últimos tempos nos chamados países de leste, tem levantado do nosso ponto de vista a actualidade da questão das massas no processo histórico. Acontecimentos atá há pouco inimagináveis, sucederam-se a uma velocidade incrível, quase que diríamos estonteante, a maior parte das situações por geração espontânea (7) como por exemplo as maciças movimentações de massas que se sucederam na Roménia, e que levaram ao deflagrar em Dezembro de 1989 à guerra civil, que por sua vez levou à deposição do regime ditatorial reinante. Na Checoslováquia tivemos também oportunidade de assistir ao mesmo tipo de movimentações.
Temos bem presente as críticas dos leninistas, que acusam os movimentos espontâneos como uma maneira de desperdiçar energias e em última instância ser a própria ideologia burguesa, no fim, a lucrar. Mas também temos bem presente que aquilo que Lenine chama movimentos conscientes, se prende com a infiltração da ideologia marxista no conjunto do operariado. Daí que as posições dos libertários em geral, sejam incompatíveis também neste ponto, com os comunistas. Voltando ainda à questão dos países de Leste, não podemos ser tão ingénuos se não considerarmos que já neste momento, esses movimentos se encontram em grande parte controlados, nomeadamente por grupos organizados da oposição, que já pensam muito seriamente em constituirem-se em partidos políticos do tipo ocidental, e com todas as cores que por estas bandas abundam. Diria que aconteceu um pouco o que se passou logo em 1974 em Portugal após o 25 de Abril nomeadamente na zona que ficou mais tarde conhecida por Reforma Agrária. Na altura as populações espontaneamente ocuparam as terras onde trabalhavam e onde viviam a pelos seus próprios meios tentavam desembaraçar-se do jogo latifundiário. Foi só um pouco mais tarde, que o partido comunista português tomou conta do processo, com todos os aspectos negativos que sobejamente conhecemos...
4 - O problema do ponto de vista do anarquismo
Quando se fala em Anarquismo há quem pretenda no imediato insistir no carácter visceral do seu individualismo, esquecendo que é necessário simultaneamente acrescentar-lhe a confiança total na espontaneidade das massas para conduzir as lutas revolucionárias. É isso que temos tentado mostrar neste artigo. As massas são forças colectivas (8) totalmente inorganizadas, mas que por instinto e pela sua condição de miséria, sentem logo a sua situação proletária e são levadas à revolução. Já foi dito que Proudhon foi o primeiro a reconhecer que "as revoluções não conhecem iniciadores: vêm quando o sinal dos destinos as chama... Todas as revoluções se cumpriram pela espontaneidade do povo". Há neste momento confiança nas massas a procura da identidade delas, ao mesmo tempo económica e social, que lhes permita afirmar a sua autonomia e a sua personalidade. A massa, do ponto de vista libertário é o contrário de rebanho anónimo e solitário...
Por outro lado, o conceito de massa opôe-se ao de partido ou de vanguarda revolucionária. Permite por a tónica no facto de que uma revolução não se decreta de cima, antes é o fruto paciente duma gestação que chega à maturidade graças à explosão das forças revolucionárias, que será preciso ajudar e não conduzir, no seu desejo de mudança e de instauração dum mundo novo.
Esta crença na espontaneidade das massas não é por si só suficiente para fazer eficazmente uma revolução. Graças aos acontecimentos de 1848, e também aos da comuna de paris, os anarquistas tomaram consciência de que as massas eram capazes, por si mesmas, espontaneamente, de se organizarem. Por isso Kropotkine pode celebrar " esse admirável espírito de organização espontânea que o povo possui em tão alto grau e que tão raramente lhe permite exercer."
Apesar deste optimismo é preciso ter presente que a espontaneidade das massas mesmo sendo a única força revolucionária dela decorra automaticamente. Do ponto de vista libertário o problema posto pela organização das massas põe a claro o carácter fundamental antiautoritário do anarquismo, mas põe igualmente a questão da democracia directa.
Do ponto de vista marxista-leninista o problema põe-se de maneira totalmente diferente. Considera-se que há a necessidade de acções políticas de vanguarda por uma minoria, para suscitar o despertar e tornar conscientes as potencialidades revolucionárias. Daí a urgência duma minoria (a maior parte constituída por intelectuais) capaz de pensar a acção política. Mas então põe-se em evidência uma elite que pode confiscar às massas a sua revolução, que fala e age em seu lugar, tendo como evolução possível a instauração dum novo domínio burocrático que as substitui e que paralisa as suas iniciativas. Foi o que aconteceu na União Soviética após 1917 e em todos os países de Leste. A situação que se vive hoje em dia nessa parte do globo é uma ruptura e uma renúncia com esse modo de relação e de vivência colectiva.
A prática mostrou a falência de tal sistema preconizado por Marx e discípulos e a mesma prática, base da teoria, mostrou a possibilidade teórico-prática do Federalismo, nomeadamente em moldes proudhonianos.
Notas:
(1) Lenine - Que Fazer ?, ed.Estampa, col.Praxis, nº12, Lisboa, 1974, Pág.38
(2) Idem, Pág.42.
(3) Notar que na Pág. 48 desta mesma obra - Que Fazer? - Lenine refere-se ao nome de Proudhon a propósito desta mesma questão o que não deixa de ser sintomático...
(4) Politzer, Georges - Princípios Fundamentais de Filosofia, Hemus Livraria Editora, São Paulo, 1970, Pág.208
(5) Idem, Pág.209.
(6) Idem, Pág. 210.
(7) A expressão utilizada aqui de "geração espontânea" não é utilizada no mesmo sentido que nas ciência naturais. A espontaneidade das massas de que nós aqui falamos não se prende de modo algum com o acaso mas tem motivos concretos e na maior parte dos casos materiais, como é o exemplo apresentado...
(8) Esta expressão não é minha, é do Proudhon, que para ele e em certa medida vem a ser o mesmo que forças produtivas, expressão utilizada por Marx.
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