Tuesday, February 13, 2007

PARA UMA EXPERIÊNCIA HERMENÊUTICA DA OBRA COMO ABERTURA


- A interpretação literária actuando de um modo geral num contexto realista tende a pressupor, que a obra está simplesmente "lá fora", no mundo, essencialmente independente daqueles que a captam. A percepção que cada um tem da obra é considerada separadamente da própria obra, e a interpretação literária tem como tarefa falar da "própria obra". De igual modo, as intenções do autor são consideradas enquanto rigidamente separadas da obra; a obra é em si mesma "um ser", um ser com os seus próprios poderes e a sua dinâmica. Um intérprete moderno típico defende geralmente a obra literária como "um ser autónomo" e vê a sua tarefa como a de alguém que penetra nesse ser autónomo por meio da análise textual. A separação preliminar de sujeito e objecto, tão axiométrica no realismo Intimo, torna-se o fundamento filosófico e o contexto da interpretação.
- Chegou a hora, de pôr em causa o fundamento dos pressupostos sobre os quais assenta esta interpretação. E isto faz-se melhor, não do interior da própria perspectiva realista, mas saindo dela e inspeccionando-a.
- Um estudo da fenomenologia torna especialmente visível a semelhança essencial entre o realismo e a perspectiva "científica" mostrando até que ponto a interpretação literária caiu num modo científico de pensar: a sua objectividade operatória, a sua conceptualização estática, a sua ausência de sentido histórico, o seu amor pela análise. Porque, com todas as suas pretensões humanísticas e a defesa inflamada que faz da poesia "numa era de tecnologia", a crítica literária tornou-se cada vez mais tecnológica. Imitou-se cada vez mais a abordagem do cientista. O texto de uma obra literária (mau grado a sua "existência autónoma") tende a ser encarado como um objecto - um "objecto estético". O texto é analisado numa total separação relativamente a qualquer sujeito percepcionante, e a "análise" é considerada como sendo virtualmente sinónima de "interpretação".
- A recente aproximação como crítica social, numa espécie de formalismo iluminado, apenas alarga a definição do objecto, incluindo na análise o seu contexto social. A interpretação literária de um modo geral é ainda essencialmente encarada como um exercício de "dissecação" conceptual (é uma imagem biológica) do objecto (ou "ser") literário. É claro que com este ser ou objecto "estético", pensamos que dissecá-lo é sempre muito mais "humanizante" do que dissecar um sapo num laboratório; no entanto a imagem do cientista, que isola um objecto para ver como ele é feito, tornou-se o modelo dominante na arte da interpretação (diz-se aos estudantes que a experiência pessoal que têm de um trabalho extraliterário é uma espécie de falácia irrelevante para a análise da obra).
- "A ciência manipula as coisas e desiste de viver nelas" -Merleau-Ponty.
Esquecemos que a obra literária não é um objecto manipulável, completamente à nossa disposição; é uma voz humana que vem do passado, uma voz à qual temos de certo modo que dar vida. O diálogo, e não a dissecação, abre o universo da obra literária. A objectividade desinteressada não é adequável à compreensão de uma obra literária. É claro que o crítico defende a paixão - e mesmo a capitulação perante a "existência autónoma da obra" - mas, não obstante, vai trabalhando a obra, considerando-a como um objecto de análise. Contudo, as obras literárias serão consideradas mais perfeitamente não enquanto objecto de análise mas como textos que falam, criados por seres humanos.
- Há que arriscar o nosso "mundo" pessoal se queremos penetrar no mundo vivo de um grande poema lírico, de um romance ou de uma obra. E para isso, não precisamos de qualquer método científico disfarçado, ou de qualquer "anatomia de uma crítica", com tipologias e classificações muito brilhantes e subtis, mas sim de uma compreensão humanística daquilo que implica a interpretação de uma obra.
- A tarefa da interpretação e o significado da compreensão são diferentes (uma mais indefinível outra mais histórica) no que respeita a uma obra e no que respeita a um "objecto". Um objecto é sempre selado com um toque humano; a própria palavra o sugere, porque uma obra é sempre a obra de um homem (ou de Deus). Por outro lado, um "objecto" relativamente a uma obra é tornar obscura uma distinção importante, pois temos necessidade de encarar a obra não como objecto mas como obra.
- A crítica literária precisa de procurar um "método" ou "teoria" especificamente adequados à decifração da marca humana numa obra, ao seu "significado". Este processo de "decifração" esta "compreensão" do significado de uma obra, é o ponto central da hermenêutica. A hermenêutica é o estudo da compreensão, é essencialmente a tarefa de compreender textos.
- As ciências da Natureza têm métodos para compreender os objectos naturais; as "obras" precisam de uma hermenêutica, de uma "ciência" da compreensão adequada a obras enquanto obras. É certo que os métodos de "análise científica" podem e devem ser aplicados às obras, mas ao proceder deste modo estamos a tratar as obras como objectos silenciosos e naturais. Na medida em que são objectos, são redutíveis a métodos científicos de interpretação; enquanto obras, apelam para modos de compreensão mais subtis e compreensíveis.
- O campo da hermenêutica nasceu como esforço para descrever estes últimos modos de compreensão, mais especificamente "históricos" e "humanísticos".
- A hermenêutica chega à sua dimensão mais autêntica quando deixa de ser um conjunto de artifícios e de técnicas de explicação de texto e quando tenta ver o problema hermenêutico dentro do horizonte de uma avaliação geral da própria interpretação. Deste modo, implica dois pólos de atenção, diferentes de interactuantes: 1) o facto de compreender um texto e 2) a questão mais englobante do que é compreender e interpretar.
- Um dos elementos essenciais para uma teoria hermenêutica adequada e, consequentemente, para uma teoria adequada da interpretação literária, é uma concepção da própria interpretação que seja suficientemente lata. A interpretação é talvez o acto essencial do pensamento humano; na verdade, o próprio facto de existir pode ser considerado como um processo constante de interpretação.
- Há uma interpretação constante a muitos níveis linguísticos, tecidos pela convivência humana. Podemos conceber a existência humana sem linguagem, mas não a podemos conceber sem uma compreensão mútua de um homem para outro - ou seja, não a podemos conceber sem interpretação. No entanto, a existência humana tal como a conhecemos implica sempre a linguagem e, assim, qualquer teoria sobre interpretação humana tem que lidar com o fenómeno da linguagem. E entre os mais variados meios simbólicos de expressão usados pelo homem, nenhum ultrapassa a linguagem quer pela flexibilidade e poder comunicativos, quer pela importância geral que desempenha.
- A interpretação é, portanto, um fenómeno complexo e universal. A compreensão é um fenómeno ontológico. A compreensão literária tem que se enraizar em modos de compreensão mais latos e primordiais que têm a ver com o nosso próprio ser-no-mundo. Portanto, compreender uma obra literária não é uma espécie de conhecimento científico que foge da existência para um mundo de conceitos; é um encontro histórico que apela para a experiência pessoal de quem está no mundo. A hermenêutica é entendida como o estudo deste último tipo de conhecimento.
- O esforço constante de lidar com o fenómeno da compreensão naquilo em que ele ultrapassa a mera interpretação textual, dá à hermenêutica um significado potencialmente lato no que se refere a todas as disciplinas habitualmente designadas por humanidades.
A hermenêutica, enquanto se define como estudo da compreensão das obras humanas, transcende as formas linguísticas de interpretação. Os seus princípios aplicam-se não só a obras escritas, mas também a quaisquer obras de arte. Visto isto, a hermenêutica é fundamental em todas as humanidades - em todas as disciplinas que se ocupam com a interpretação das obras do homem. é mais do que meramente interdisciplinar, porque os seus princípios incluem um fundamento teórico para as humanidades; os seus princípios deviam colocar-se como um estudo essencial para todas as disciplinas humanísticas.

Permanência da obra e infinidade das interpretações.

É a polaridade das duas personalidades concretas o formador (Pareyson) e do intérprete, que nos permite fundamentar a permanência da obra na infinidade das interpretações. Ao dar vida a uma forma, o artista torna-a acessível às infinitas interpretações possíveis. Possíveis, frisamos bem, porque a "obra vive apenas nas interpretações que dela se fazem"; e infinitas não só pela característica de fecundidade própria da forma, mas porque perante ela se coloca a infinidade das personalidades interpretantes, cada uma delas com o seu modo de ver, de pensar, de ser.
A interpretação é exercício de "congenialidade" fundada na unidade fundamental dos comportamentos humanos postulada por um mundo de pessoas (e postulada, no fim de contas, a nível empírico, pela contínua experiência de comunicação que consumimos vivendo); a congenialidade pressupõe um acto de fidelidade àquilo que a obra é e de abertura à personalidade do artista; mas fidelidade e abertura são o exercício de uma outra personalidade, com as suas alergias e as suas preferências, a sua sensibilidade e os seus segredos. E estes dados existenciais impediriam a interpretação, se perante eles se apresentasse um objecto fechado e definido de uma vez por todas. Mas, uma vez que na forma todo um mundo pessoal - e, através dela, todo um mundo histórico ambiental - se organiza de um modo cuja característica é precisamente a possibilidade de se apresentar sempre completo sob mil pontos de vista, então as situações pessoais dos intérpretes, de impedimentos tornam-se ocasiões de acesso à obra. E cada abordagem é um modo de possuir a obra, de a ver inteira e, no entanto, sempre passível de ser percorrida por novos pontos de vista. "Se é verdade que não existe interpretação definitiva e exclusiva, também não é menos verdade que não existe interpretação provisória". A pessoa torna-se orgão de acesso à obra e, revelando a obra na sua natureza, exprime-se ao mesmo tempo a si própria; toma-se, por assim dizer, conjuntamente a obra e o seu modo de ver a obra.
Este discurso sobre a interpretação pretende sublinhar a conexão estreitíssima, na obra, de géneses, propriedades formais e reacções possíveis do fruidor.
A obra é o conjunto das reacções interpretativas que suscita e estas configuram-se como novo percurso do processo genético interno (que é a resolução em estilo do processo genético "histórico").
A obra não se propõe como jogo absoluto mas revela as circunstâncias históricas em que nasce - A interpretação, a partir do momento em que respeita a autonomia da obra, não pode deixar de a ligar ao contexto histórico próprio - e exige ao mesmo tempo que a obra continue a produzir história, a história das suas leituras.
Na noção de "obra de arte" estão geralmente implícitos dois aspectos:
a) o autor realiza um objecto acabado e definido, segundo uma intenção bem precisa, aspirando a uma fruição que o reinterprete tal como o autor o pensou e quis;
b) o objecto é fruido por uma pluralidade de fruidores, cada um dos quais sofrerá a acção, no acto de fruição, das próprias características psicológicas e fisiológicas, da própria formação ambiental e cultural, das especificações da sensibilidade que as contingências imediatas e a situação histórica implicam; portanto, por mais honesto e total que seja o empenho de fidelidade à obra que se frui, cada fruição será inevitavelmente pessoal e verá a obra num dos seus aspectos possíveis. O autor não ignora geralmente esta condição da situacionalidade de cada fruição; mas produz a obra como "abertura" a estas possibilidades, abertura que, no entanto, oriente tais possibilidades, no sentido de as provocar como respostas diferentes mas conformes a um estímulo definido em si. A defesa desta dialéctica de "definitude" e "abertura" parece-nos ser essencial a uma noção de arte, como facto comunicativo e diálogo interpessoal.
Além disso, nas antigas concepções da arte, o acento era implicitamente posto no pólo de "definitude" da obra. Por exemplo, (Eco) o tipo de comunicação poética a que aspira a poesia de Dante exige do leitor uma resposta de tipo unívoco: o poeta diz uma coisa e espera que o leitor a apreenda tal como ele pretendeu dizê-la. Mesmo quando explora a teoria dos quatro sentidos, Dante não sai desta ordem de ideias: a poesia pode ser interpretada de quatro maneiras, porque procura estimular a compreensão de quatro ordens de significados, mas os significados são quatro, não mais, e foram todos previstos pelo autor, que vai ao ponto de procurar orientar o leitor para a sua exacta compreensão.
O desenvolvimento da sensibilidade contemporânea acentuou, pelo contrário, a pouco e pouco, a aspiração a um tipo de obra de arte que, cada vez mais consciente das várias perspectivas de "leitura", se apresenta como estímulo para uma livre interpretação orientada apenas nos seus traços essenciais.
Já nas poéticas do simbolismo francês (Eco) da segunda metade do século passado, vemos que a intenção do poeta consiste em produzir, com efeito, uma obra definida em si, mas para estimular um máximo de abertura, de liberdade e de imprevisto na fruição. A "sugestão" simbólica procura favorecer não tanto a recepção de um significado preciso, como um esquema geral de significado, um halo de significados possíveis, todos igualmente imprecisos e igualmente válidos, conforme o grau de perspicácia, de hipersensibilidade e de disposição sentimental do leitor.
Nestes últimos tempos apareceu e em sectores diferentes, obras cuja "indefinitude", cuja abertura, o fruidor pode realizar sob o aspecto produtivo. Trata-se, pois, de obras que se apresentam ao fruidor não completamente realizadas ou ultimadas, em relação às quais a fruição consiste no acabamento produtivo da obra: acabamento produtivo em que se esgota também o próprio acto de interpretação, porque o modo de acabamento manifesta a visão particular que o fruidor tem da obra.
Um exemplo a citar (Eco) parece ser a construção da Faculdade de Arquitectura da Universidade de Caracas; esta escola de arquitectura foi definida como "uma escola a inventar todos os dias" e constitui um exemplo notável de arquitectura em movimento. As salas de aula desta escola são construídas por meio de painéis móveis, de forma a que professores e alunos, conforme o problema arquitectónico e urbanístico em discussão, construam um ambiente de estudo apropriado, modificando a disposição e a fisionomia estética do local. Também neste caso o modo de ideação da escola determinou o campo das possibilidades formativas, permitindo apenas uma determinada série de elaborações com base numa estrutura dada permanentemente: mas, com efeito, a obra já não se apresenta como forma definida de uma vez por todas, e sim como um "campo de formatividade".