Tuesday, February 13, 2007

A QUESTÃO DAS INDULGÊNCIAS OU AS ACÇÕES DA TVI

No último trimestre do ano de 92, levou a TVI canal 4 a cabo uma campanha de venda de mais de dois milhões de acções de modo a que os crentes, ou por quem se quisesse fazer passar por esta figura, pudessem tornar-se accionistas da televisão da "sua" igreja católica.
O autor desta palavras também teve conhecimento que aos fins de semana depois da missa dominical os padres, ou pelo menos alguns padres, incentivavam os fiéis a adquirir acções do mesmo canal de televisão "conduzindo-os" para uma sala contínua onde se celebra a missa, de modo a que, com o máximo de religiosidade, pudesse ajudar a obra da futura televisão católica.
Toda esta situação nos pode levar a uma certa comparação com a questão das indulgências do início do século XVI que levou à reforma e à posterior cisão da igreja católica. Claro que se pode facilmente considerar que é uma comparação abusiva, visto que as circunstâncias são muito diferentes e o próprio ambiente político-histórico é distinto. Mas o substracto ideológico é o mesmo: as cabeças que fizeram a igreja das indulgências do século XVI pensam e agem do mesmo modo que as cabeças da actual igreja impulsionadoras do canal 4 de televisão, abençoado poucos dias após o início das emissões, pelo próprio papa.
Logo, não é tão abusivo sermos levados pela comparação atrás apresentada, porque a igreja católica como grande empresa multinacional que é, continua naturalmente a preocupar-se com o domínio das mentalidades embora saiba que esse domínio não é absoluto em relação a uma camada importante da população, o que não acontecia no século XVI. Daí que esta reflexão tenha o seu sentido: equacionar esta questão é o que se pretende.
Foi em 31 de Outubro de 1516 que Lutero se referiu publicamente pela primeira vez, numa prédica, à questão das indulgências. E não foi por mero interesse académico que se preocupou com o assunto; como sacerdote notava as consequências desastrosas pois considerava que favorecia uma devoção superficial. A própria igreja do castelo de Vitemberga continha, graças à devoção e ao dinheiro de Frederico , o Sábio, relíquias capazes de assegurar aos devotos cerca de cento e trinta anos de indulgência!
Comprar indulgências não significava recorrer a uma prática contestável que se tivesse desenvolvido à margem da doutrina da igreja, pois esta ensinava, indubitavelmente, que a pena temporal devida pelos pecados já perdoados podia ser remida não só por meio de reparações, sacramentais ou não, mas também por meio da indulgência. Sem excluir, portanto, a penitência, a igreja considerava que recorrendo ao tesouro de méritos constituído pelas obras super-rogatórias dos santos, podia conceder a remissão de pena ao pecador perdoado. Subtil, sem dúvida nenhuma, esta doutrina era, no entanto, dificilmente acessível ao povo, e tanto mais mal interpretada quanto é certo que o papado pretendera por mais de uma vez, mas sem encontrar apoio entre os doutores, que as indulgências por ele concedidas resgatavam o pecador da pena e da culpa, isto é, do própio pecada. Resultado: para os simples, a indulgência pontifícia era sinónimo de remissão plenária. A confusão era grave. Mas ainda mais grave era o facto de, a partir de 1476, se puderem comprar indulgências a favor das almas do purgatório.
Em 1517 Lutero afixa as célebres 95 proposições sobre "a virtude das indulgências" que apesar de pouco acessíveis aso profanos, abstiveram considerável êxito, devido, sem dúvida, às criticas cheias de bom-senso que formulavam aqui e ali à prática da igreja. Todos aqueles que se indignavam com a forma como a credulidade popular era explorada em proveito do fisco romano, receberam-nas como um manifesto libertador.
A partir daqui sabe-se o desenrolar da história que não cabe aqui apresentar. Deste relato não se pretende inferir, nem isso era possível, que as consequências das emissões de televisão do canal católico serão semelhantes às consequências da implementação das indulgências. O que se pretendeu mostrar é que as semelhanças não se situam ao nível das consequências mas determinadamente ao nível das motivações.
Fundamentalmente a igreja não mudou, nem isso seria de esperar, nem em termos libertários é isso que se pretende. A igreja é conservadora melhor dizendo retrógrada e o que defende é a manutenção do status quo para o qual desempenha um papel importante, nem que para isso seja necessário investir num canal de televisão que por várias vezes já foi afirmado, seguirá escrupulosamente os ditames da moral católica.