Saturday, February 17, 2007

PLATÃO - PENSAR E CONHECER

Este trabalho final vem na sequência do Relatório feito nesta mesma disciplina em Março e com o título de Os diferentes Níveis de Conhecimento em Platão relatório esse, que vem incluído neste trabalho por razões óbvias... Sendo apresentado para uma disciplina de Filosofia do Conhecimento e considerando, num determinado aspecto, que a tradição filosófica da qual somos os herdeiros se iniciou com Platão é totalmente legítimo que o trabalho final agora apresentado trate da problemática do conhecimento em Platão. Esta problemática apesar de ter sido tantas vezes discutida não deixa por isso de continuar a suscitar interesse e daí este trabalho. O Indice especifica os pontos tratados e no final apresento a bibliografia consultada. A conclusão não tem como objectivo dar por finda a problemática do conhecimento em Platão antes pelo contrário o de manter os caminhos renovadamente abertos.

A Doutrina Platónica das Ideias como ponto de partida para o Conhecimento Verdadeiro

Platão viveu numa época rica da cultura grega em que se encontravam muitas correntes de opinião. A sua filosofia constitui parte desse espólio. Nela se encontram a influência dos mitos; a religiosidade mistérica em busca do verdadeiro lugar e papel do homem; as artes e ofícios, que embora não fossem tidos em grande estima estavam presentes em cada canto e desenvolviam-se; as "ciências puras", Matemática e Música, impulsionadas pelos pitagóricos; a Filosofia grega. Um breve apontamento sobre a Filosofia grega revela-nos as influências de Crátilo (aluno de Heraclito), de Parménides e de Pitágoras no pensamento platónico.
Do primeiro reteve a ideia da transformação contínua das coisas, da relatividade das sensações e permanência duma unidade por detrás da pluralidade; do segundo, a impossibilidade de sequer definir o Não ser, aquilo que não existe. Do terceiro o pensamento matemático(1). De todos eles, recebeu Platão a noção
intuitiva de haver algo maior, escondido, velado pelos sentidos. Mas a figura grega que desempenhou um papel determinante no desenvolvimento da filosofia platónica foi Sócrates. Este homem pretendeu fazer da vida humana uma reflexão filosófica. Ele dizia-se como a encarnação da adesão à verdade(2) e à justiça. A Filosofia, para ele, era uma propedeutica que consistia em preparar (abrir) os espíritos para a busca dos valores morais.
Com a morte deste homem, Platão ficou definitivamente conquistado para a filosofia. A realidade em que vivia era cercada de vício e corrupção(3). Aliás o mundo grego estava em transformação. Portanto, Platão, procura encontrar uma solução política para os problemas da Grécia(4) e é nessa tentativa de solucionar os erros dos governantes que Platão procura através de uma análise das artes, das ciências, das filosofias existentes, uma verdade que possibilitasse aos homens uma vida melhor.
É assim que ele chega à conclusão de que o mundo sensível está sujeito à relatividade e à mudança, mas que, apesar dessa mudança existem conceitos(5) que têm valor real independentemente da experiência sensorial de qualquer pessoa. Estes conceitos ou ideias estão alojados na nossa mente, e não foram transmitidos pela nossa experiência dos objectos sensíveis. É assim que Platão vai elaborar uma teoria das ideias. Elas habitam um reino espiritual situado para além de todo o sensível, e que apenas se manifesta ao puro pensamento.

O que se Entende por Ideias

Então o que são as Ideias?
São princípios do Ser, modelos aos quais as coisas sensíveis se conformam (adequam) mas são ao mesmo tempo princípios de conhecimento que a alma apreende ao recolher-se em si própria. Estas ideias têm uma beleza e perfeição de que as coisas dos sentidos mostram apenas um pálido reflexo. Só são atingidas pelo pensamento, e correspondem ao mundo verdadeiro, onde se encontra o supremo valor, e o supremo Ser.
Diz Gaston Maire acerca das ideias, que elas são as realidades que povoam o mundo inteligível e que são as ideias que designam o conteúdo objectivo, a essência objectiva. Atribui-lhes este escritor, três características que definem a sua natureza:
1- A ideia é forma, estrutura, unidade na síntese das relações que a constituem na sua estabilidade, oposta à flutuação dos objectos sensíveis.
2- A ideia é geral, princípio de unificação dos objectos sensíveis múltiplos.
3- A ideia é a natureza, realidade consistente, dotada da plenitude da existência, ser real e fundamento do ser e princípio do saber verdadeiro: conhecer é apreender a ideia.
Assim, A Ideia assume uma função ontológica e epistemológica. De que há Ideia? De tudo: tanto dos seres naturais, como dos objectos artificiais e mesmo das coisas vis e insignificantes(6).
As ideias estão ligadas entre si por relações, cujo estudo constitui a ciência. Elas são hierarquizadas, esta hierarquia reproduz objectivamente uma classificação de noções correspondentes; no topo governam três ideias: a Beleza, a Proporção, a Verdade. É fácil entender a razão destas três Ideias estarem no topo, pois a Beleza é dentro dos conceitos estéticos o mais sublime, a Verdade é também o mais elevado dos conceitos morais (uma acção é justa ou injusta conforme corresponde ou não à Verdade), e a Proporção é dentro dos conceitos matemáticos, também o mais importante. Mas estas três Ideias não são mais que manifestações duma Ideia superior, a qual domina tudo e dá o seu ser e sentido a tudo, a Ideia do Bem(7). O Bem ocupa um lugar eminente, que não pode ser comparado ao das outras Ideias, quer em natureza, quer em dignidade. Esta transcendência na ordem do ser faz do Bem por um lado, a fonte da Verdade no conhecimento de tudo, e por outro lado, a causa de tudo, da essência e da existência. No universo platónico tudo existe e reage pelo princípio do melhor; o Espírito rege o mundo. Ele é a natureza do Bem. Ser para além dos seres, mesmo inteligíveis, e fonte do Ser.
Pelo que dissemos é fácil de entender porquê a doutrina de Platão é considerada um idealismo e um realismo. Idealismo porque coloca a verdade(8) no mundo das ideias; realismo porque para ele as ideias são realidades e não simples pensamentos que brotam da mente. O mundo das ideias é a verdadeira realidade. Ao mundo das ideias opõe-se o mundo da natureza, que pertence ao domínio absoluto do contínuo devir, e que é múltiplo e relativo(9).
Como vimos, toda a Teoria das Ideias, em Platão se relaciona com o problema do cohecimento e da busca da verdade. Passaremos agora ao ponto 4 do trabalho ou seja, acerca dos diferentes níveis de conhecimento em Platão.


Os Diferentes Níveis de Conhecimento em Platão

Nos diálogos de Platão assiste-se ao confronto de opiniões, que tem por objecto despertar a alma para uma inquietação que a levará ao desejo do saber autêntico. Esta ginástica intelectual(10) é um método utilizado para descobrir qualquer coisa (essência) que, apesar de não estar fora de nós, permanece adormecida. É por isso que, no Teeteto, Sócrates compara a sua arte (Maiêutica) àda mãe que era parteira. Ele, tal como a mãe ao assistir aos partos, não dá nada ao espírito que não estivesse já dentro dele, mas apenas ajuda o espírito a "parir" o que lá tinha...
Numa primeira etapa, para atingir o conhecimento verdadeiro (que não é mais que o conhecimento do ser) há um diálogo entre as pessoas em que elas se apercebem da sua ignorância, e que ao mesmo tempo as leva à intuição de algo que existe para além daquilo que então julgavam real. Naturalmente, chama-se a esta operação uma aporia. Nos diálogos platónicos ela conduz a um resultado negativo. - Por exemplo no livro I da República não se diz o que é a justiça mas apenas aquilo que ela não é.
É depois da alma ser colocada num embaraço(11) que ela recorre ao pensamento reflectido (noesis), e pela reflexão que ela institui ciências cujo objecto não seja "susceptível" de contradições: por exemplo uma aritmética, ciência duma unidade que não seja senão uma unidade, números que não sejam senão números. O saber nasce da insuficiência do conhecimento devido àsensação. A sensação dá juízos dignos de confiança (por exemplo quando pela visão eu percebo o meu dedo) mas também coloca a alma face a contradições (ela mostra-me o meu dedo ao mesmo tempo duro e mole). Os nossos sentidos não percebem por eles mesmos (queremos dizer - não é a orelha que entende) eles são apenas orgãos por meio dos quais a nossa alma percebe. Isto porque a percepção ultrapassa o estado no que ele tem de individual e de contingente: ela prova ou nega a existência dos objectos, ela qualifica-os, ela distingue-os. Então surgem "categorias" do pensamento, nos quais o acto de perceber consiste numa comparação reflectida donde resulta o estabelecimento de certas relações. Portanto, perceber não é como sentir um acto imediato; é um trabalho de síntese. Perceber é formular opiniões acerca da existência de um objecto, acerca de uma qualidade, etc. Então o saber será uma opinião (doxa)?
Sim! desde que ela seja verdadeira. Então como é que vamos distinguir uma opinião falsa de uma verdadeira?
Eis-nos, com esta pergunta, em frente do problema do erro, que não reside num não-saber do que se sabe mas num mau ajustamento no reconhecimento do que se sabe. (Reconhecer écomparar um dado presente com a sobrevivência duma aquisição anterior. Isso é possível graças à reminiscência de que falaremos mais adiante). Portanto o erro faz-se sempre sobre um saber: ele não reside na ignorância (pois nenhum homem é ignorante(12) como nos demonstrou Sócrates no Ménon, através de um interrogatório feito a um escavo que levou, este último a resolver por si só um problema de geometria), ele está na opinião - quer dizer no acto em que se fazem juízos sobre as coisas. A opinião fica (situa-se) entre o erro e a Verdade. É já um estádio do conhecimento mais avançado do que a sensação (que é apenas um acto imediato e individual) mas o saber que nos dá, ainda é um saber inferior. Queremos dizer: não é científico (que já é uma forma superior do saber, pois Platão, na alegoria da linha situa a ciência no nocta inferior).
Uma vez que já falamos daquilo que o conhecimento, em Platão, nos levanta iremos tratar muito sumariamente dos níveis do conhecimento, em Platão, baseando-nos na alegoria da linha (Rep. VI, 510 a. b. - 511 e). Neste texto e até ao fim do livro sexto da República, Platão estabelece quatro graus do conhecimento. Os dois primeiros atingem-se no mundo visível e os dois últimos no mundo inteligível. São eles:
1- A Imediatez Sensível - que consiste na pura e simples apreensão das aparências sensoriais ou imagens, tais as imagens visuais.
2- O Juízo - que consiste no conhecimento perceptível dos objectos sensíveis conjuntamente com um juízo sobre eles; assim, exprimimos a nossa opinião acerca da existência ou não desses objectos e também acerca da presença neles ou não de uma outra qualidade.
3- O Conhecimento Matemático - pois é aí que residem as matemáticas, o par e o impar, as figuras, etc. Este conhecimento também pode ser chamado de "discursivo" uma vez que ele consiste na marcha do pensamento que, partindo dos seres postos ao princípio, extrai as consequências, a que chama demonstrações (Rep. VI, 510 d). As matemáticas apreendem um sector do Inteligível (Rep. VI, 510 e) e constituem a disciplina que proporciona a aquisição de hábitos de pensamento convenientes ao acesso do segundo sector do Inteligível.
4- O Conhecimento Filosófico - que é a totalidade do saber exigido ao homem, e que ele deverá aumentar sem cessar.
A marcha do pensamento que lhe corresponde vai de hipótese em hipótese até ao momento onde o pensamento atento deixa de ser hipotético; é neste "antihipotético" que se reconhece o Bem, que sendo Absoluto, serve de fundamento a todos os inteligíveis. Este acesso ao Bem é possível graças à dialéctica da razão (Rep. VI, 511 b), na medida em que permite que o espírito vá por regressão, duma hipótese ao princípio que a fundou. A dialéctica é o método real da ciência. Este método divide-se em dois momentos sucessivos e complementares: dum lado a "dialéctica ascendente" que toca as Ideias e remonta ao Bem, que, pela sua unidade é a transcendência absoluta, é o fundamento de tudo (Rep. VI, 511 b; Rep. VII, 532 b - 535 a; Fedro 265 d); doutro lado a "dialéctica descendente" que deduz na qualidade das consequências do Bem a multiplicidade das ideias hierarquizadas. Este conhecimento épossível porque o espírito está ordenado ao Ser. Com efeito, o espírito não apreenderia uma realidade que lhe fosse exterior; é por um retorno sobre si mesmo, por um diálogo consigo próprio, que o espírito chegará ao grande dia do saber, da verdade que dorme nele, mas da qual ele se não lembra.
Os dois primeiros graus do conhecimento dão-nos um saber "opniativo", pois tudo se passa ao nível dos sentidos; os dois últimos graus de conhecimento dão-nos um saber científico, saber esse que se passa ao nível da inteligência. Na perspectiva de Platão, os dois graus inferiores não são formas de conhecimento suficientes; só são conhecimento na medida em que exprimem uma necessidade de prosseguir, de ir para algo que as transcenda, fazendo apelo e remetendo para os graus mais superiores e finalmente para as Ideias. Para a alma que procura a verdade, esses graus inferiores não são paragens, são apenas etapas transitórias mas necessárias por onde a alma tem de passar na sua ascensão até ao conhecimento das Ideias. É um caminho árduo e longo. O ser inteligível revela-se de um modo luminoso só no último grau do conhecimento. Como vimos Platão distingue quatro graus de conhecimento. Reconhece, o filósofo, o último grau de conhecimento como o verdadeiro. Então o que é esse objecto do saber verdadeiro? É o Ser, a realidade estável da essência, que se opõe à realidade oposta do devir. Escusado será repetir que este Ser é a Ideia, a Essência, e que tem uma natureza inteligível. O conhecimento em Platão não é mais do que a busca do ser, é o método empregue para o atingir consiste em:
1- Libertar a alma do que pesa sobre ela e a impede de se elevar ao Ser.
2- Em redescobrir, dentro de nós mesmos as imagens do Ser.
Achamos que esta problemática do conhecimento apela para uma explicação da Reminiscência, portanto é esse o assunto que iremos tratar, não sem antes falarmos da ascenção dialéctica da alma através dos graus do conhecimento na alegoria da caverna.

A Alegoria da Caverna como exemplo do Acesso ao Inteligível

Vamos fazer uma descrição da alegoria para depois a aplicarmos à ascensão do homem do mundo sensível ao mundo inteligível.
No mundo sensível os homens são como os escravos presos e agrilhoados numa caverna, obrigados a ver no fundo dela as sombras dos seres e dos objectos projectados na parede, por um fogo que arde fora. Tomam estas sombras por realidade porque não conhecem a Verdade, ou seja, a verdadeira realidade.
Se um dos escravos se conseguisse libertar e saísse da caverna não seria capaz de suportar logo a luz do sol, teria de se habituar a olhar as sombras, só depois as imagens dos homens e das coisas reflectidas na água, depois as próprias coisas e só no fim conseguiria contemplar os astros e o sol. Só depois de tudo isto se aperceberia que é o sol que nos dá as estações e os anos e governa tudo o que há no mundo sensível ou visível e que do sol dependem ainda as coisas que ele e os seus companheiros viam na caverna. A caverna corresponde ao mundo sensível. As sombras projectadas no fundo, são os seres naturais, o fogo é o sol.
O nosso conhecimento das coisas naturais corresponde ao dos homens que estão na caverna.
Depois da descrição da alegoria da caverna vamos tentar aplicá-la a todo este problema do conhecimento.
Quando os prisioneiros estão na caverna e vêm as sombras, pensando que realmente estas são os objectos, isto, na teoria de Platão, corresponde à completa ignorância da multidão, quando esta contempla as imagens da realidade e pensa que estas imagens são a própria realidade.
A imagem que Platão nos dá no livro sétimo da República (515, c) quando nos diz que: "logo que alguém soltasse um deles e o forçasse a endireitar-se de repente, a voltar o pescoço, a andar e a olhar para a luz, ao fazer tudo isso sentiria dôr e o deslumbramento impedi-lo-ia de fixar os objectos cujas sombras via outrora". Isto corresponde ao esforço do homem quando este tenta libertar-se da ignorância e ascender ao saber; como o homem da caverna, ele também não está habituado e o esforço feito causa-lhe dificuldades não o deixando contemplar imediatamente a sabedoria, pois para isso é necessário muito exercício e coragem. Como o homem da caverna também este não estava preparado para atingir a verdade, por isso ao contemplá-la, esta parecer-lhe-ia muito estranha. Julgaria então que o conhecimento que ele tinha anteriormente, ou seja no mundo sensível é que era o verdadeiro.
Depois de um grande esforço o homem conseguiria atingir o mundo inteligível.
Recapitulando:
1- O homem da caverna corresponde à multidão na completa ignorância.
2- A ascensão do homem da caverna ao mundo superior corresponde à tentativa do homem de ascender à Verdade, àcontemplação do Ser.
3- A contemplação do homem da caverna dos objectos corresponde a uma opinião do homem acreditada mas ainda não fundamentada.
4- A contemplação do homem da caverna do céu, da luz, da lua, do sol, corresponde a uma tentativa quase conseguida do homem da contemplação do Ser.
5- A compreensão de que o sol é a causa das estações do ano, corresponde à contemplação dos homens do próprio Ser, da Essência, da ideia do Bem; portanto daquilo que permanece e éimortal, ou seja, da Sabedoria. Como o homem da caverna conseguiu, através dum esforço muito grande contemplar o sol, também o homem consegue atingir a verdade; obter o Saber.
Como pudemos ver caminha-se do que é sensível e visível para o que é inteligível e invisível. E apesar do mundo inteligível ser verdadeiro nós não podemos dispensar o mundo visível pois éeste que nos proporciona a ascensão ao inteligível. Perguntarão os mais curiosos: de que maneira?
Pois se conhecer é recordar o que está esquecido, como veremos adiante quando tratarmos a teoria da reminiscência, esse recordar permitir-nos-à ver os objectos, recordá-los. E como para Platão o verdadeiro conhecimento está na Essência das coisas, portanto naquilo que permanece e não muda, como ao mundo sensível está inerente a mudança, este permite-nos a busca da Unidade, da Universalidade, da permanência do Ser, pois aquilo que vamos vendo e que vai acontecendo não satisfaz porque é inconstante e está sempre em mudança, então o homem, no seu afã de conhecer sempre mais e mais, não se satisfaz e procura atingir a Essência; a verdade das coisas, deste modo a Essência converte-se numa potencialidade, ou seja numa força dentro da existência, susceptível de levar o homem a realizar-se; pois como já foi dito na medida em que se conhece mais procura-se mais. O mundo sensível permite ascender ao mundo inteligível, onde num terceiro grau do conhecimento (ou seja num primeiro grau de conhecimento no mundo inteligível e terceiro no mundo visível) temos as ciências (o que nos levou a atingir este terceiro grau do conhecimento foi o mundo sensível), que são apenas um exercício àdialéctica, porque esta pela discussão fundada sobre a razão sem recorrer aos sentidos, procura atingir a essência de cada coisa até que atinge o termo do inteligível. Como a elevação do homem da caverna, também a prática das ciências produz efeitos idênticos com a elevação da alma para atingir o que há de mais perfeito nos seres: a Essência, o Ser-em-Si, como os orgãos dos sentidos conseguem contemplar o objecto mais luminoso no mundo visível, também ao homem é permitido, através da dialéctica, atingir as Coisa-em-Si, a Essência, a Ideia do Bem. O mundo sensível tem bastante importância não só, como já foi dito, por permitir a ascensão ao mundo inteligível, mas também porque os homens, tendo contemplado a Essência, a Ideia do Bem tornam-se mais justos, E como ascenderam e viram tudo isso descem ao mundo visível para porem esses modelos em prática, para tornarem a cidade mais justa ensinando, ou seja, educando os outros e governando. Pois segundo ele o governo da cidade deve fundar-se sobre o conhecimento da Existência verdadeira.
A problemática platónica é acção no real, no concreto. Éportanto dinâmica pois toda a mudança implica a possibilidade de atingir o Ser. E na medida em que conhecemos o Ser podemos ver, no mundo sensível, melhor que os outros, podemos criticar e agir, transformar o que é injusto no que é justo e assim sucessivamente.

A Teoria da Reminiscência

Na teoria da Reminiscência temos três pontos a salientar; todos estes pontos estão interligados.
1- Segundo Platão a alma sobrevive à morte do corpo e já existia antes de encarnar.
2- Para ele todo o conhecimento verdadeiro é reminiscência.
3- Para ele todo o conhecimento é recuperado através do nosso espírito.
Tentando abordar o primeiro destes três pontos verificamos que Platão acreditava na pré-existência da alma, na sua natureza imortal. Foram-lhe levantadas muitas objecções acerca da imortalidade da alma ao que ele tentava responder recorrendo àdoutrina das ideias... (em que ele dizia que, tal como as ideias, a alma é invisível, indestrutível e simples). Serviu-se também da teoria dos contrários, na qual ele afirmava que tudo no mundo sensível tem o seu contrário: o Belo tem o seu contrário que é o Feio, o Feio tem o seu contrário que é o Belo, o Justo o Injusto.. e a Morte tem o seu contrário que é a Vida. A alma está inerente à vida portanto ela é fonte de vida. E um contrário não admite em si próprio o seu contrário; se admitisse, a alma passaria a ser a Morte e deixaria de ser a Vida.
Sendo a teoria da reminiscência outra prova, na medida em que demonstra a pré-existência da alma. Se a alma existia antes do corpo e tinha adquirido o conhecimento de todas as coisas como poderia ela perecer se já existia antes e tinha encarnado outro corpo? Que queria dizer Platão com o segundo dos três pontos que estamos a tratar? Ele queria dizer que se a alma é imortal, se ela já viu todas as coisas neste mundo e no outro, não há nada que ela não tenha aprendido. Ela é capaz de recordar porque já tinha conhecimento das coisas. Portanto conhecer é recordar o já visto, o conhecido e esquecido. Ele para explicar esta teoria serve-se de entre outros mitos, do mito de Er; em que ele diz que as almas bebem a água do rio do Esquecimento antes de voltarem a nascer. Simplesmente umas bebem menos do que as outras, o que quer dizer que os espíritos menos esquecidos correspondem àquelas almas que beberam menos dessa água, conseguindo recuperar durante esta vida uma parte do conhecimento esquecido. Uma pessoa que recordou apenas uma coisa consegue descobrir as outras por si própria se não se cansar na busca. Como se pode ver, para Platão, todo o conhecimento é reminiscência. Este segundo ponto leva-nos a dar validade ao último pois o espírito é alma que já conhece mas esqueceu o que nos permite recordar. Sobre esta teoria da reminiscência vários problemas se levantam. Se conhecer érecordar que papel desempenhará o conhecimento sensível? Este conhecimento, segundo a nossa opinião, ajuda-nos a recuperar o que tínhamos esquecido. Exemplificando: Nós vemos um objecto e reconhecemo-lo porque dentro de nós já existia a sua ideia. Ao recordarmo-nos do objecto depois de o termos visto vamos tentar conhecê-lo o melhor possível. Ao reconhecermos que uma coisa ébela é porque já temos a Ideia do Belo. Então esse reconhecimento no mundo sensível dessa beleza leva-nos a tentar saber mais acerca do Belo.
Um outro problema se levanta: se recordar é aprender ou conhecer, qual é o objecto de aprender? Quanto a nós aprender éatingir o Ser, a Ideia de Bem, e o seu objecto é elevar o homem, torná-lo justo e virtuoso. Uma outra questão se põe: se a teoria da reminiscência se funda no pressuposto da imortalidade da alma como demonstrar esse pressuposto? Platão serviu-se da teoria dos contrários para o fazer.

Conclusão

Platão foi um homem empenhado na busca do verdadeiro saber. Atingiu-o estabelecendo uma "ponte" entre o mundo sensível e o mundo inteligível. Essa ponte, na filosofia platónica, tem o nome de participação que "é presença da Ideia no objecto sensível" existe, e projecta-se no mundo sensível graças "à reminiscência". Portanto, para Platão, o conhecimento era uma recordação daquilo que a alma tinha contemplado na sua pré-existência. Para se atingir esse conhecimento verdadeiro, havia que orientar a vida no sentido da morte. Isto porque só com o desprendimento total do corpo, a alma pode, através de um retorno sobre si própria, atingir a Essência. Assim, o homem, por uma purificação, de tipo órfica, cada vez maior do espírito, ascende ao Bem, e àcontemplação das Ideias. Platão foi um filósofo, um pedagogo e um político. Filósofo porque se preocupou com o verdadeiro saber, aquele que está para além da aparência; pedagogo porque nos ensinou, através de Sócrates, com a Maiéutica a libertar a alma das cadeias que a prendem; político porque nos sugere na República o tipo de governo ideal. Nascido no século V, o de Péricles, que é a Idade das Luzes da Grécia. No seio da desordem e das violências institui-se uma ordem nova, na qual o homem calculador se deseja independente, medido, belo e virtuoso, no seu justo lugar entre os deuses e o animal. Ora esta civilização, que engendra obras-primas, volta-se finalmente contra os homens. No fim do século a derrota de Atenas, a condenação de Sócrates, as guerras que logo continuam, a desmoralização que atinge as cidades, tudo são manifestações deste insucesso.
A obra platónica é primeiro uma meditação sobre este insucesso. Constitui-se, integralmente, no sentido de por em questão não só a democracia e, mais geralmente, a existência política, mas também esta cultura nova que se lançou com impaciência na conquista dos conhecimentos, na procura dos prazeres, no desejo do poder. Contrariamente à sofística (que impõe convicções aos espíritos que se quer cativar) a Filosofia dispõe os espíritos à procura livre, sem violência, da verdade, pela qual eles se tornam capazes de a atingir desde que a desejem verdadeiramente. Se se conseguiu atingir essa Verdade, nós não sabemos. Uma vez que nos diálogos aporéticos assiste-se apenas à reconversão das pessoas, sem que através dela se atinja outra coisa, senão a da certeza de que há uma unidade subjacente a todas as contradições do Mundo Visível. Portanto os diálogos aporéticos aparecem-nos mais como uma pedagogia que se destina a fazer "parir" os espíritos. Parece-nos que Platão não conseguiu (mesmo nos diálogos da maturidade) mostrar a alguém que tivesse contemplado a Ideia do Bem, através do método dialéctico. Daí que Sócrates no Fédon, morresse com a esperança de a atingir.
É Platão um idealista ou um realista ingénuo? Parece-nos que além de ser ambas as coisas ele é principalmente a ilustração viva dum homem empenhado no saber que lhe dê uma justificação da sua existência.




Notas:

(1) Panorama do Pensamento Filosófico, vol. II, pág. 150-153. "... O carácter determinado de cada um dos números e a infinidade da sua série deviam sugerir antes de mais que cabia realidade tanto ao limitado como ao ilimitado... os Pitagóricos julgavam reconhecer no antagonismo entre o limitado e o ilimitado, o antagonismo entre os números pares e impares e este antagonismo identificava-se-lhes. Por seu turno (...) com o do perfeito e imperfeito, do bem e do mal ... tal como os dois princípios são unidos no número 1 que é considerado como número quer par quer impar, assim também em todo o universo estes antagonismos se equilibram em harmonia. O mundo é harmonia de números. E "a harmonia é a unificação do múltiplo e o acordo do discordante*". O número é um conjunto de unidades; cada número é representado por tantos pontos quantas as unidades".
* Filolau.

(2) Gaston MAIRE, Platão, pág. 12.

(3) Platão, carta VII: "... a legislação e a moralidade estavam a tal ponto corrompidas que eu de início me encontrava cheio de ardor para trabalhar no bem público, ao considerar esta situação e ao ver que tudo andava à deriva, acabei por me sentir aturdido..."

(4) Ibid: "Todavia não deixava de espiar possíveis sinais de melhoramento nestes acontecimentos e especialmente no regime político... fui então levado... a louvar a verdadeira filosofia e a proclamar que só à sua luz se pode reconhecer onde se encontra a justiça na vida pública e privada..."

(5) São entidades abstractas que têm valor real, independentemente da experiência sensorial de qualquer pessoa.
São eles: morais (com os quais ajuizamos se uma acção é boa é mau, justa ou injusta, etc. Estes juízos pressupoem que conhecemos já de antemão um "ideal" de bem e de justiça que nos são transmitidos); estéticos (com que intuirmos a beleza duma "forma" ideal manifestada através da matéria sensível como a cor, os sons); matemáticos (estes não vamos buscar na experiência: um círculo ou um triângulo definidos pela geometria são formas perfeitas que nunca se encontram na Natureza rigorosamente perfeitas; o círculo ou o triângulo que desenhamos são sempre imperfeitos, apenas a aproximações de formas teoricamente perfeitas da geometria); das espécies vivas (conhecer certo animal não quer dizer ter a percepção apenas dos seus membros, mas unificá-los numa forma orgânica que nos é dada pela ideia que temos da espécie, como sejam a ideia de cavalo, de gato, etc.); imanentes (as ideias ou conceitos estão alojadas na nossa mente e parecem vir de objectos completamente diferentes dos sensíveis).

(6) Platão, Rep. VI 507 b: "Existe o Belo em si, e o Bom em si, e do mesmo modo, relativamente a todas as coisas que então postulamos como multiplos, e inversamente postulamos que a cada uma corresponde uma ideia, que é única, e chamamos-lhe a sua essência..."

(7) Platão, Rep, VI, 505 a: "A Ideia do Bem é a mais elevada das ciências..." É ela "que transmite a verdade aos objectos cognoscíveis e dá ao sujeito que conhece esse poder ... É ela a causa do saber e da verdade, na medida em que esta é conhecida ..." (508 e)

(8) Verdade quer dizer visão do Ser. "Aceder ao verdadeiro étomar consciência do que se traz em si e fazê-lo sair de nós ... numa actividade difícil comparável a um parto" (Teeteto).

(9) Platão, Teeteto.

(10)Leon ROBIN, Platon, pág. 15-56.

(11)Platão, Ménon: "Eu ouvi dizer, Sócrates ... que tu não fazias outra coisa que colocar-te a ti mesmo em dúvida e de lançar sobre os outros a mesma dúvida. Neste momento, o que me parece, é que tu me enrolaste com as tuas artes e malefícios: é o momento em que eu tenho a cabeça cheia de dúvidas..." pág. 346.

(12)Ibid.: "Uma vez que a alma é imortal e que ela viveu muitas vidas e que viu tudo o que se passa aqui e no outro lado, não há nada que ela não saiba ..." pág. 349.