Thursday, February 15, 2007

A PROBLEMÁTICA ÉTICA EM AGOSTINHO

Uma primeira abordagem à Problemática Ética

Neste trabalho sobre ética e ciência no De Doctrina Christiana de S. Agostinho iremos dar um tratamento diferente do tratamento dado no primeiro trabalho. Considerando que a problemática ética não ficou devidamente tratada propomo-nos tratá-la o melhor que nos for possível. Sendo os apectos da ética e da ciência em S. Agostinho intimamente ligados naturalmente que o aspecto científico não será esquecido. De qualquer maneira a ciência será tratada como um todo, ou seja, referiremo-nos sempre à ciência e não às ciências. O De Doctrina Christiana é uma obra fundamental não só no aspecto filosófico como também no aspecto histórico como é aliás a ideia que nos fica da leitura de Marrou. Inclusivamente o próprio Marrou nos diz no fim da sua obra(1) que pretende ser somente um historiador. Este aspecto ser-me-à mportante para desenvolver a crítica que pretendo encetar a seguir.



Crítica à obra de H. Marrou "Saint Augustin et la fin de la Culture Antique"

O Saint Augustin et la fin de la culture Antique de H. Marrou é uma obra importante e fundamental quer pelo tipo de abordagem feita, quer pelos temas tratados e desenvolvidos. Para além disso é igualmente uma obra original. O próprio Marrou diz na Introdução que "(...) fui levado a escolher para as minhas pesquisas um outro domínio, talvez menos explorado: o da vida intelectual."
Apesar de ser uma obra que gostamos de ler, uma crítica é necessário fazer: Vejamos o indice temático da obra para melhor entendermos o que se vai dizer.
Na primeira parte Marrou fala-nos da cultura oratória herdeira da tradição romana e grega: gramática, o grego, a retórica. Ir-nos-á ainda nesta primeira parte falar-nos na problemática da erudição; as suas origens e a erudição do próprio S. Agostinho. Na segunda parte Marrou fala-nos do problema científico: a conversão à filosofia, o ciclo das ciências, as sete artes liberais e o enciclopedismo, as artes liberais em S. Agostinho. Na terceira parte dedicada exclusivamente ao "De Doctrina Christiana" Marrou fala-nos da problemática duma cultura cristã, a formação do intelectual cristão e onde naturalmente a questão da ciência está presente. Mas agora a crítica põe-se: onde é que está a questão da ética? É que na verdade sendo um problema tão relevante dá-nos a impressão que Marrou não lhe dá a importância devida e que pura e simplesmente passa por cima dele.
Portanto como conclusão desta deambulação, temos que: não nos podemos basear na obra de H. Marrou, teremos que trabalhar pelos nossos próprios meios e basearmo-nos unicamente naquilo que temos ou seja o De Doctrina Christiana. A partir daí somos livres de fazermos as nossas associações para no fundo não nos tornarmos escravos da letra.

O "De Doctrina Christiana" - Breve análise da obra.

Como a nossa base documental recai sobre o De Doctrina Christiana vejamos em termos naturalmente o que é que consiste esta obra. No primeiro livro S. agostinho estuda "as coisas" quer dizer as verdades a descobrir ou seja as verdades dogmáticas. Fala-nos igualmente dos princípios gerais da exegese.
No segundo livro S. Agostinho estuda os signos a interpretar. Em primeiro lugar a diferença dos signos reais e dos signos espirituais, em segundo lugar a necessidade para os compreender, do conhecimento das línguas, particularmente do grego e do hebreu e do estudo das diversas ciências, História, Matemática, Botânica Zoologia, Astronomia, Direito Público, Dialéctica. Neste segundo livro S. Agostinho fala-nos ainda das traduções das Sagradas Escrituras que devemos utilizar ou seja a tradução latina de Thala e a tradução grega dos Septante e ainda de rejeitar tudo o que nas ciências profanas trata de magia, astrologia e superstições.
No terceiro livro S. Agostinho dá-nos as regras da interpretação e finalmente no quarto e último livro expõe os processos de expressão. Pelo exposto torna-se obvio que a nossa análise cairá sobre o livro I e II.

O "De Doctrina Christiana" - Tratado de Hermenêutica?

Não me parece que o De Doctrina Christiana seja um simples tratado de Hermenêutica e de Hormilética cristã. Penso e no seguimento de H. Marrou que esta obra apresenta-nos a concepção duma cultura cristã oposta pelo objecto e pelo espírito à cultura antiga, mas formada pelo uso dos seus métodos e desejosa de utilizá-la em seu proveito. Antes de tudo S. Agostinho quer uma cultura cujo fim seja essencialmente cristão. A sua doutrina neste ponto encontramo-la no livro primeiro. Todo o conhecimento cai sobre as coisas ou sobre os signos. As coisas dividem-se em coisas que devemos fruir e em coisas que devemos simplesmente usar. Entre as primeiras S. Agostinho coloca o soberano bem em que a sua possessão é o cume de todos os nossos desejos. Todas as coisas não são mais que meios para chegar a ele e fruir dele. S. Agostinho tira como consequência que todos os nossos pensamentos, toda a nossa vida e toda a nossa inteligência devem ser referidos a Deus.(2)

Uma Cultura Possível

À volta da fé, S. Agostinho descobriu uma cultura possível, legítima e necessária. Se a todos os fiéis se pede uma adesão plena e sincera à doutrina da Igreja, ao intelectual mais se deve pedir: um esforço leal para a compreender e a aprofundar, para se tornar capaz de refutar as objeções que a combatem, e para retomar as verdades no seio dum mundo que as ignora ou as deturpa. Podemos perguntar: Qual o programa concreto dado a esta cultura cristã? O ensinamento da Igreja tem a sua origem nos dados da Revelação e esta encontra-se contida na Sagrada Escritura. É portanto à volta da Bíblia que se desenvolverá a ciência cristã.
Esta concepção persistirá até ao século XII. Embora S. Agostinho tenha composto tratados de teologia moral, escrito livros de controvérsia ou discutido questões apologéticas, nenhuma destas actividades é ainda verdadeiramente diferenciada, reduzem-se a uma execução da Bíblia ou seja aqui também é à volta da Bíblia que a investigação e a discussão têm lugar. O estudo da Bíblia constitui o objecto próprio desta cultura.



O Papel da Bíblia

A Bíblia contém tudo o que um cristão precisa saber. Quanto à cultura pagã, o que é pernicioso a Bíblia condena; o que é útil encontra-se na Bíblia. Todo o outro objecto de estudo é interdito ao cristão a não ser que ele se sirva somente como meio para melhor conhecer a escritura. O que concluímos em relação ao De Doctrina Christiana é que não se trata dum simples manual da instituição clerical; não há nada de especificamente eclesiástico neste programa de cultura. Esta cultura cristã apresenta-se, em S. Agostinho, como deduzida a partir de dados estritamente religiosos.
O cristianismo supõe uma fé, crenças, um dogma; um certo número de ideias fundamentais sobre Deus e a sua essência, sobre o homem, a sua natureza, os seus destinos, o mundo, a sua criação, o seu futuro...
Este dogma deve ser transmitido, exposto aos fiéis e numa certa medida explicá-lo. O dogma cristão é fundado numa revelação essencialmente representada por textos inspirados, por um livro, a Bíblia. Se procurarmos precisar a ideia que ele fazia da cultura cristã, vemos aparecer cedo a influência da cultura antiga que ele rejeita mas no seio da qual o seu pensamento foi formado. E foi por ele ter conhecido bem a tradição antiga que S. Agostinho considerou indispensável dar ao intelectual cristão uma certa cultura preparatória. S. Agostinho considerou esta preparação tão primordial, que a ela consagrou um tratado, o nosso De Doctrina Christiana, obra que apresenta como um manual técnico (no prólogo da obra esta ideia está bem presente) um programa de estudos preliminares e a análise dum método de trabalho.
O segundo livro do De Doctrina Christiana põe o problema na sua generalidade: não se trata, de simplesmente saber se o cristão recebe a educação liberal, o que ele deve fixar ou esquecer. S. Agostinho traça um vasto inventário de todos os aspectos da cultura antiga e esta operação preliminar constitui um programa de formação, onde entra somente o que servirá à alma cristã que procura, pelo estudo da escritura, melhor possuir o tesouro da sua fé.

A Verdade em Agostinho

Podemos perguntar: Que papel reserva S. Agostinho para a verdade? Será num sentido idêntico ao contemporâneo em que o problema da verdade não tem qualquer sentido e em que foi substituído pela convenção, entre os homens? Não certamente. Ou não teria S. Agostinho vivido nos primórdios da Idade Média. Aliás os seus contemporâneos e mesmo pensadores posteriores tiveram uma posição diferente, relativamente a esta questão que ao sentido atribuído contemporaneamente no domínio científico. Para S. Agostinho a verdade é algo de precioso (como vemos pelas páginas do De Doctrina Christiana). A verdade Agostiniana é a verdade divina como não podia deixar de ser e o homem tem um cariz de humildade na sua apelação a essa verdade. Encontramos esta verdade na Bíblia e por esta maneira a problemática hermenêutica está-lhe subjacente. Neste sentido S. Agostinho irá falar-nos no livro primeiro das verdades dogmáticas. Ele próprio diz no início do livro: "Há dois fundamentos sobre os quais se apoia todo o estudo das Escrituras: a maneira de descobrir o que é a compreender e a maneira de exprimir o que foi compreendido"(3). Naturalmente que nos estamos a referir à primeira parte da citação visto que a segunda parte será estudada no livro terceiro e no livro quarto. Dentro das verdades dogmáticas temos a considerar as verdades de Fé e as verdades morais. Por enquanto deixemos as verdades morais e mencionemos as verdades de Fé.
As verdades de Fé são as seguintes: A Santissima Trindade(4), Deus inefável(5), Deus superioridade infinita(6), Deus imutável(7), Deus sábio(8), Incarnação(9), Redenção(10), Ressureição e ascenção(11), Igreja corpo de Cristo(12), Ressureição da carne(13). As verdades dogmáticas têm uma grande importância porque justamente no campo da Hermenêutica para se interpretar a linguagem figurada das Sagradas Escrituras o critério que S. Agostinho defende é o das Verdades Dogmáticas ou seja como sabemos que um sinal figurado tem ou pode ter vários sentidos. Mas o que S. Agostinho diz é que o sentido que teremos que escolher é o que se ajusta mais ao critério das verdades dogmáticas. Há, como vemos, uma instrumentalização da linguagem.

Fruir e Usar

O papel da cultura clássica não deixa de ser importante. Verifica-se mesmo ao nível do livro segundo a reabsorção da cultura clássica para a doutrina cristã. A obra de H. Marrou especifica bem esta questão. Portanto a cultura clássica desempenha o papel de sinais úteis para a interpretação das Sagradas Escrituras. O que temos é uma separação entre o que éconstruído pelo homem e aquilo que lhe é transcendente e que lhe foi dado - Verdades dogmáticas. É importante salientar que esta dádiva é gratuita.
Isto leva-nos para a divisão que S. Agostinho estabeleceu entre fruir e usar (frui et uti). Em que é que consiste fruir e usar? S. Agostinho responde: "Fruir é agarrar-se a uma coisa por amor a ela mesma. Usar ao contrário, é reenviar o objecto que fazemos uso, ao objecto que amamos se todavia ele é digno de ser amado."(14)
Desta maneira poderemos dizer que a verdade que atrás falávamos tem para S. Agostinho o valor da fruição. Poderemos então dizer que o objecto do fruir é um fim em si, enquanto que o objecto de uso é um meio para um fim intrínseco. Falta perguntar: Quais são os objectos de fruição e os objectos de usar? Énecessário esclarecer primeiramente que estes objectos são coisas que não servem de sinal. Desta maneira teremos por um lado os objectos da fruição que são as verdades dogmáticas do livro primeiro, por outro lado o sujeito da fruição e do uso que énaturalmente o homem e ainda por outro lado os objectos do uso que são todas as outras coisas e o próprio homem ou seja tudo o que é semelhante ou inferior ao homem.

A Regra do Amor

Quando falamos nas Verdades Dogmáticas não falamos nas verdades morais. É o que iremos fazer de seguida. Falar de verdades morais é sinónimo de falar em Honestidade dos Costumes. A Honestidade dos Costumes traduz uma forma de conduta, de actividade, traduz uma forma de vida. S. Agostinho reduz a "Honestas morum" à regra do amor "regula dilectionis". E o que contem a regra do amor? S. Agostinho responde-nos: "Se então não deves amar-te por ti mesmo, mas para Aquele que é o fim mais directo do teu amor, que um outro homem não se indigne, mesmo se tu o ames por Deus. Pois a regra do amor foi assim estabelecida por Deus: "Amarás o teu próximo como tu mesmo, mas ao teu Deus, amá-lo-ás de todo o teu coração, de toda a tua alma, de todo o teu espírito" (Lévit. XIX, 10; Deut. VI. 5; Math. XXII, 37, 39)"(15).
Portanto a regra do amor pode ser reformulada desta maneira: Amar Deus acima de todas as coisas e ao próximo como a nós mesmos. Em termos de remate poderemos até dizer que o conteúdo ético das Sagradas Escrituras reduz-se à regra do amor. É por isso que para se ser sábio não é exclusivamente necessário possuir a ciência. Basta ser humilde ter fé e praticar naturalmente a regra do amor porque para S. Agostinho é mais importante o viver do que propriamente o saber.



Conclusão

Que Sabedoria?

Por tudo o que se disse é importante concluir o seguinte: O Cristianismo entendido da maneira como S. Agostinho o entende não é uma moral nem mesmo quando falamos em verdades morais ou seja quando falamos na regra do amor, ou inclusivamente na característica de humildade do sábio. Só desta maneira é que se explica como é que o Cristianismo pode absorver no seu seio as culturas e as morais que absorveu. O que fica de tudo isto é que o verdadeiro conteúdo das Escrituras é a referência à regra do amor.
Desta maneira e em jeito de conclusão diremos que a Sabedoria para S. Agostinho não é uma intuição intelectual mas que contém a "Honestas morum" como uma forma de vida, portanto não é uma quietude contemplativa, e a humildade é a característica fundamental. A Sabedoria é por isto tudo uma forma de vida superior ao homem.

Notas:

(1) MARROU H. - Saint Augustin et la fin de la cultura antique, pág. 545

(2) S. Augustin - De Doctrina Christiana, I XXII, 21.

(3) S. Augustin - De Doctrina Christiana, L. I, c. III, 1 pág. 181.

(4) Opus. Cit. L. I, c. V, 5, pág. 185.

(5) Opus. Cit. L. I, c. VI, 6, pág. 187.

(6) Opus. Cit. L. I, c. VII, 7, pág. 189.

(7) Opus Cit. L. I, c. IX, 9, pág. 191.

(8) Opus. Cit. L. I, c. IX, 9, pág. 191.

(9) Opus. Cit. L. I, c. XI, 11, pág. 193.

(10)Opus. Cit. L. I, c. XIV, 13, pág. 197.

(11)Opus. Cit. L. I, c. XVI, 15, pág. 199.

(12)Opus. Cit. L. I, c. XVI, 15, pág. 199.

(13)Opus. Cit. L. I, c. XIX, 18, pág. 201.

(14)Opus. Cit. L. I, c. V, 5, pág. 185.

(15)Opus. Cit. L. I, c. XXII, 21, pág. 205.