Friday, February 16, 2007

O DIÁLOGO PLATÓNICO - LAQUES

Este trabalho incide sobre o diálogo Laques de Platão. A sua escolha não foi arbitrária. É um diálogo que nos interessa particularmente pela sua temática, pelo facto de pertencer ao período dos diálogos de juventude de Platão e como diz Guthrie por ser uma pequena maravilha em termos de construção. Na mais recente crítica Dieterle (1966) chama o Laques "talvez o primeiro dos diálogos platónicos" e Gauss pensa que o diálogo émanifestamente o primeiro do grupo dos "diálogos-definições". Por tudo isto vamos empreender o estudo deste diálogo. O trabalho tem uma primeira parte que só aparentemente é desligada do desenvolvimento em que se estuda, o melhor que nos foi possível, o diálogo. No seu estudo teremos em conta os aspectos descritivos por um lado e os aspectos analíticos e metodológicos por outro. O Laques é um diálogo aporético aliás como outros diálogos da juventude de Platão ou seja faz-se uma pergunta no início do diálogo e chega-se ao fim sem se ter dado uma resposta que satisfaça. Outro aspecto que consideramos importante e como é de ter em conta é que o Laques pertence ao grupo de diálogos em que a filosofia é encarada como um estar a fazer-se, como modo de vida, é em suma, um programa que estipula a maneira específica de se estar na vida. Não nos vamos preocupar com o problema da cronologia. Teve muita importância no século XIX mas hoje em dia ninguém lhe liga importância. Também não vamos fazer história da cultura. Vamos é debruçar-nos sobre um texto de filosofia antiga e estudá-lo. O exercício de análise sobre o Laques é a razão de ser deste trabalho. Espero ter a necessária inspiração para tal.
Salientemos a marcada influência do método socrático na filosofia platónica. É verdade que Sócrates pratica exclusivamente a filosofia como pensamento falado, nunca como exercício de escrita, porventura por irredutibilidade da sua prática filosófica aos cânones do texto escrito. E também éverdade que Platão foi o primeiro dos filósofos a cultivar a filosofia escrita, pois os textos que nos chegam dos anteriores filósofos parecem não passar de relatos ou súmulas dum ensino oral. Do pensamento de Sócrates conhecemos o que nos ficou através do seu discípulo Platão, além das exíguas referências de Os Memoráveis, de Xenofonte, e de As Nuvens de Aristófanes. Mas de uma coisa estamos certos: do modo como Sócrates entendeu e praticou a filosofia. Não já como anúncio duma sabedoria que o possuísse ao modo dos antigos sofói; muito menos segundo a moda dos seus contemporâneos sofistas, fazedores duma sabedoria toda ela palavrosa e de argúcia rivalizante. Sócrates parte da sincera convicção do carácter inacessível da verdade absoluta, mas não àmaneira dos cépticos, antes vendo o pensamento como um estar a caminho. Filosofar é a constante busca duma verdade que sempre atrai e sempre se escapa. Ninguém é dono da verdade. Daí a árdua tarefa por Sócrates aceite de acordar os seus concidadãos do sono dogmático, prevenindo-os contra os vendedores ambulantes de doutrinas. Daí o seu método de confissão da própria ignorância e do irónico questionamento dirigido aos seguros interlocutores para os colocar na mesma fecunda insegurança que é a condição para entrar no caminho da verdade.
É a dialéctica socrática que Platão tem presente no estilo dialógico da sua escrita. Mas Platão ousa mais do que Sócrates. O filósofo, para ele, não pode ser um simples delator das verdades possuídas, um demolidor das posições seguras. A incompreensão e a morte injusta não podem ser o destino do filósofo. Se este é o que busca em todas as coisas o justo, o bem, a beleza, o uno, será ele que deve assumir as rédeas do governo cívico.
(O aspecto político não cabe nem no âmbito do curso de Filosofia Antiga nem sequer no âmbito do meu trabalho. No entanto por considerá-lo demasiado importante não pude deixar de tecer estas poucas considerações).

Desenvolvimento - Aspectos Descritivos do Diálogo

Aparentemente o Laques pode parecer-nos uma conversa literária mas a verdade é que assistimos a uma conversa viva entre os personagens. O argumento é relativamente fácil de contar. O maior problema do Laques são os seus aspectos analíticos e metodológicos que trabalharemos posteriormente. Vamos neste momento contar a "anedota" ou seja a história do diálogo. A "anedota" é a seguinte: Lisímaco e Melésias pais de Aristides e Thucidides observam o treino dos seus filhos com um combatente fortemente armado (a cena deve passar-se num ginásio público) acompanhados de dois generais atenienses Nícias e Laques. A propósito do treino surge a discussão entre os presentes sobre a melhor maneira de educar as crianças. O verdadeiro sujeito do Laques não é a coragem mas a propósito da coragem a educação das crianças ou seja a ciência dos estudos e exercícios que mais lhes comvém. Sócrates que também se encontra presente é abordado por Laques para que intervenha na conversa dando conselho sobre os melhores meios de desenvolver as faculdades morais e físicas das crianças. Sócrates mostra-lhes que a vantagem da educação é de fazer nascer a virtude na alma das crianças. É óbvio que para a fazer nascer é necessário possuí-la ou pelo menos conhecê-la. Chegados a este momento estamos a ver que a questão a resolver não seria outra senão esta: o que é a virtude? Mas é uma questão tão vasta que Sócrates propõe, em lugar de examinar o que é a virtude em geral, limitar a análise a procurar se se conhece bem uma das suas partes, a coragem que é a que está mais ligada ao exercício das armas.
Laques dá a primeira definição: a coragem consiste em agarrar-se ao terreno e a não fugir perante o inimigo. Mas Sócrates argumenta que o homem corajoso pode ceder por táctica em frente ao inimigo; e isto não é mais que uma espécie de coragem. O homem necessita dela na doença, na pobreza, na boa e na má fortuna, na luta contra as suas paixões. Esta definição érejeitada por Sócrates como falsa. Mas Laques propõe uma outra definição: A coragem é uma certa firmeza de alma. Sócrates mostra-lhe que a firmeza sózinha, desprovida de prudência e razão não merece o nome de coragem. A segunda definição de Laques mostra-se muito geral e desta maneira afastada por Sócrates. Entretanto intervém Nícias que define a coragem como a ciência das coisas que são a temer a das que não o são. Mas os médicos que sabem o que é e o que não é a temer para a saúde, os lavradores que sabem do mesmo modo o que diz respeito à agricultura não são por isso homens corajosos. E Sócrates diz mais: admitindo que o sejam os adivinhos que prevêm tudo o que há e não há a temer na vida seriam pela mesma ordem de raciocínio os homens mais corajosos; conclusão inadmissível. Mas Sócrates continua, dizendo que se a coragem é uma ciência, constitui o conhecimento universal de tudo o que é a temer e a desejar quer dizer de todos os maus e de todos os bens. Ora aplicando a natureza desta ciência ao passado, presente e futuro, não émenos, que o conhecimento absoluto do bem e do mal. Assim o homem que possuisse uma tal ciência não conheceria somente uma parte da virtude - a coragem - mas todas as outras partes, a saber a sabedoria, a piedade, a justiça. Seria, fora da condição humana e ao abrigo de todo o erro o ser perfeito mas não o homem corajoso. Chegados ao fim do diálogo a coragem não foi ainda correctamente definida pois todas as definições propostas ficam aquém ou além da ideia de coragem.
A última conclusão a tirar é que é difícil conhecer a virtude pois não foi possível ter a ideia correcta duma das suas partes.
Antes de terminar os aspectos descritivos e passar para os metodológicos e analíticos que são os que verdadeiramente nos interessam queria ainda focar problemáticas que me parecem importantes. Uma delas é analisar os personagens e os seus níveis dialécticos. Quer as personagens intervenientes quer o próprio diálogo podem ser hierarquizadas dialecticamente ou seja pelo seu grau de complexidade: Iremos neste momento ocupar-nos somente das personagens. Os intervenientes em número de sete podem agrupar-se em vários níveis dialécticos. Penso que será escusado que todo este tipo de divisão é subjectiva mas que de qualquer das maneiras é a divisão que eu proponho. Penso que estaremos de acordo dizendo que Aristides e Thucidides os filhos de Lisimarco e Melésias se encontram no nível dialéctico mais baixo. Intervêm uma única vez no diálogo respondendo aos seus pais acerca de Sócrates. E já que falamos de Sócrates estaremos de acordo ao dizer que ele ocupa o nível dialéctico mais elevado já que é ele que dirige o diálogo, que refuta as definições propostas pelos dois generais, e que conduz o diálogo ao empasse que nós conhecemos. Os dois pais ocupam um nível dialéctico acima dos filhos pois já intervêm no diálogo fazendo perguntas embora os consideremos num nível abaixo do dos dois generais já que nem Lisimarco nem Melésias propõem uma única definição. O problema dos dois generais é mais complexo. Laques é fortemente contrastado com Nícias; no diálogo é o homem, para quem as acções falam mais alto que as palavras. Daí que se compreenda a sua primeira definição de coragem. Em resumo podemos dizer que Laques é o homem prático enquanto que Nícias é o homem de retórica (não nos esquecermos do seu discurso logo após a primeira intervenção de Sócrates). Podemos dizer no entanto que Nícias se encontra num nível dialéctico superior ao de Laques pois a sua definição é bem mais complexa e deu mais trabalho a Sócrates admitindo que ela tinha dado uma definição de virtude em geral. Como curiosidade refiro que ambos os generais morreram, Laques morreu na batalha de Mantinea em 418 a.c. e Nícias morreu na expedição à Sicília, aliás há no diálogo uma alusão a isto em 198 d - 199 a onde Sócrates diz que um general não deve ser ele próprio influenciado por adivinhos (como Nícias tinha procedido). Há um problema que eu também queria abordar, por me parecer demasiado importante para ser esquecido que é também tratado no Criton, que é o problema da competência enunciado por Sócrates. Sócrates diz que a primeira coisa que é necessário examinar é de ver se algum deles é competente sobre aquilo que se vai deliberar. Sócrates também vai afirmar que para se ser perito é necessário ter tido professores (ora sabemos bem, e ele próprio afirma isso no diálogo, que Sócrates não teve professores pois não era suficientemente rico para lhes pagar). Iremos tratar dos aspectos analíticos tentando dar sentido e a respectiva importância do constante perguntar e responder (sobretudo do perguntar) que percorre os diálogos platónicos e no caso específico do Laques.

Aspectos Analíticos do Diálogo

O que caracteriza um diálogo como o Laques? O diálogo pretende mais formar do que informar. Longe de ser uma exposição dogmática é a ilustração viva dum método que procura e que, frequentemente se encontra. Na sua composição, o diálogo articula-se segundo a progressão deste método e, impulsiona o seu desenvolvimento. O diálogo tem um método e é ele quem determina a sua estrutura filosófica.
Assim, em Platão é pelo método dialéctico, que se explica (e tem desenvolvimento) a sua filosofia. Aliás Platão di-lo expressamente na República. Mas o que nos interessa aqui é o estudo único do diálogo Laques. O Laques faz parte do conjunto de diálogos chamados de "juventude" ou "aporéticos". O Laques (assim como os outros diálogos deste grupo) procura determinar um valor e por isso fornece um certo número de definições. Algumas são rejeitadas mal são enunciadas. Outras suscitam uma primeira refutação e terminam igualmente na condenação. É esta uma das constantes dos diálogos aporéticos: não se diz o que a "coisa" é, mas apenas aquilo que ela não é. Isto pode criar confusão no leitor que não esteja habituado a Platão. Neste caso poderá dizer: em que é que uma definição é mais válida do que outra, se todas são igualmente refutadas? Bom, (dizemos-lhe nós) se ler mais atentamente os diálogos verificará que as definições ocupam um lugar determinante no desenvolvimento do processo dialéctico, e que se as inserir no movimento do diálogo verificará que distingue nelas diferenças de níveis. E então nessa altura explicamos ao leitor confuso a estrutura dos diálogos. É pois o que iremos fazer. Em cada diálogo há que distinguir a questão inicial e a questão preliminar. Por exemplo, no Lisis, Hipotales pergunta como tornar-se amigo de Lisis... (questão inicial). Para responder a esta questão, é preciso, (fá-lo notar Sócrates) preambularmente, perguntar "acerca da amizade - o que é a amizade?" Portanto, normalmente, a questão inicial tem a função de "despertar a reflexão" e de servir de apoio à procura dialéctica (que só se inicia com o enunciado da questão preliminar). É curioso notar que a questão inicial deixa de interessar aos interlocutores mal cumpre o seu objectivo. É com a questão preliminar que se inicia o processo dialéctico. Também podemos esquematizar a segunda parte do diálogo, mas antes disso servir-nos-emos do Laques (que é o que nos interessa) para ilustrar o que dissemos. Há que definir a coragem (diz Sócrates e inicia-se assim a questão preliminar). Laques dá uma definição: "quando um homem faz frente ao inimigo, guardando a sua posição, sem fugir, é certo que este homem é corajoso". Analisemos esta afirmação. Nela não se define a coragem naquilo que ela tem de essencial (na sua totalidade), mas na sua contingência. Então Sócrates (sem por objecções) pergunta: "é ainda corajoso o soldado que se bate em fuga, conformemente, por exemplo, àtáctica de Seyttles?". A que é que assistimos com esta interrogação de Sócrates? Em primeiro lugar damo-nos conta de que a uma imagem da coragem (a apresentada por Laques) sobrepõe outra imagem. Só que esta imagem, apresenta-se como uma contra-imagem, ao mesmo tempo que mostra o seu carácter contingente. Pretende Sócrates demonstrar ao interlocutor, que na sua definição não foi dito o essencial.
O que se pretende saber, quando se pergunta - o que é a coragem - é o seu carácter geral - o que é a coragem não só para os guerreiros mas também para os que combatem no mar e também para aqueles que lutam contra a doença, a pobreza, para aqueles que resistem aos desejos e às paixões. Então, Laques dá uma nova definição de coragem: "... é uma espécie de firmeza de alma". Com esta nova definição assiste-se a um fenómeno curioso: o interlocutor deixa de se servir de uma imagem e passa a generalizar todas as suas opiniões num todo. Essa generalização pode não estar correcta, mas ela representa já a consciencialização daquilo que se pretende - passar da multiplicidade das imagens, à busca da unidade da Forma. Claro que a procura não acaba aí, pois é preciso relacionar as definições umas com as outras até se atingir o princípio incondicionado (neste caso um valor - a coragem). Nos diálogos aporéticos assiste-se pois a uma formação dos espíritos, formação que os prepara para o acesso ao inteligível. Nenhum destes diálogos dá respostas, mas a sua missão cumpre-se sempre que um interlocutor "salta" da imagem à definição.
O Laques é um diálogo em que há um conjunto de interrogatórios em que Sócrates leva os seus interlocutores a admitirem a falsidade das suas proposições com a finalidade (e isto é que é importante referir) de se entregarem à descoberta da verdade. No início do diálogo levanta-se um problema em que se destaca a pergunta que virá a determinar o diálogo. Énecessariamente a partir das diversas respostas que Sócrates constroi os argumentos que irão refutar totalmente as definições apresentadas terminando o diálogo no impasse.
Neste processo complexo (todo o processo é complexo) há dois aspectos a considerar: o exercício eristico - pelo qual de uma proposição inicial o interlocutor é obrigado a conceder uma final que é contraditória com a primeira (tudo isto tem a ver com o elenchos) e o processo dialéctico pelo qual o diálogo prossegue de hipótese em hipótese até ao impasse.
O Laques é constituído por um conjunto de perguntas e respostas e podemos dividi-lo em várias conversas distintas em que as personagens podem variar. O que no entanto é importante ter em conta é que cada uma destas conversas é iniciada por uma pergunta que exige resposta imediata. Quando a resposta érejeitada há a repetição da pergunta que suscita uma nova resposta. Podemos perguntar-nos que tipo de pergunta se costuma fazer? No Laques (assim como noutros diálogos a pergunta que se faz é "o que é x". No estudo da metodologia do Laques temos que ter em conta sempre esta resposta pois ela é determinante para a compreensão do diálogo. Quando Sócrates pergunta "o que é a coragem não pretende de modo nenhum um exemplo mas uma Forma (eidos, idea) específica (ver Laques 191 e, 192,b). Quando falamos aqui em Forma é necessário ter em conta que não se pretende dizer que o Platão da juventude é o Platão da maturidade ou seja não pretendemos antecipar o desenvolvimento do pensamento de Platão falando já na Teoria das Ideias que só será estruturada mais tarde no Fédon e na República. Por tudo o que se disse é que só uma resposta abstracta serve a Sócrates e sempre para se entregar à sua refutação. Chegados a esta altura cabe falar das técnicas utilizadas para testar as definições. Por isso iremos falar no elenchos. A técnica consiste em derivar de uma proposição inicial (a resposta à pergunta o que é a coragem) numa cadeia de proposições, por implicação de que se extrai uma última em contradição com a inicial ou com algumas das implicadas. O elenchos desempenha um papel fundamental no Laques é no entanto devido a ele que Sócrates deve a sua impopularidade... O elenchos surge-nos em todo o diálogo como um instrumento de refutação sistemática é uma técnica que aponta o erro mas não o explica. Não tem um carácter dogmático pois pretende só prover o homem com os meios necessários para alcançar a verdade. O método filosófico aqui utlizado é o das perguntas e respostas (como já aliás o dissemos) podendo ser referido com o nome de dialéctica no sentido de conversa, investigação em comum.
Antes de terminarmos o trabalho uma interrogação aqui fica (por incapacidade nossa de a resolver certamente - não duvidamos). O objectivo do diálogo era de saber o que era a coragem como uma das partes da virtude visto todos os presentes terem admitido que a virtude por inteiro era difícil de definir. Até aqui tudo bem. Ora Sócrates conseguiu refutar as duas definições de coragem de Laques e refutou igualmente a definição de Nícias mas chegando à conclusão que era uma definição de virtude. Ora a virtude foi definida e aparentemente aceite. Óbvio que o objectivo já não era saber o que era a virtude mas sim o de saber o que era a coragem. Caso contrário Sócrates arranjaria argumentação suficiente para refutar a definição de virtude de Nícias.

Conclusão

Nestas últimas linhas não quero deixar de dizer que este trabalho não teve como objectivo o de dar por terminado o estudo sobre o Laques. Longe de nós tal ideia. Problemas subsistem e não podemos afirmar categoricamente que possuímos todos os dados acerca de Laques. O trabalho teve como objectivo principal o de pôr problemas respeitantes a este diálogo e tendo em conta a nova crítica, dar respostas.