Thursday, February 15, 2007

O VALOR DAS CIÊNCIAS PARA AGOSTINHO RELAÇÃO ENTRE RAZÃO E CIÊNCIAS

Segundo Stº Agostinho, para se alcançar a ciência só épossível utilizar dois caminhos: ou a autoridade ou a razão.
"A razão é o movimento pelo qual o espírito distingue e liga as coisas que nós aprendemos."(1)
No entanto, para Stº Agostinho, a razão não é apenas uma "faculdade de conhecimento". A razão revela-se na própria razão: quer isto dizer que a razão é uma forma de alcançar determinado conhecimento, mas também ela própria se revela, se manifesta nas coisas que conhecemos ou julgamos conhecer. Daqui conclui que a razão pode ser vista sob dois aspectos que se completam; por um lado, uma razão que conhece, por outro lado, uma razão que se manifesta naquilo que se conhece e que proporciona, por sua vez, o mesmo conhecimento.
Quererá isto significar que, por um lado, temos um sujeito, que pretende um conhecimento de algo e que, para tal, usa a sua razão, e que, por outro lado, um objecto de conhecimento, no qual se manifesta uma razão e que se oferece ao sujeito?
Mas em que casos se manifesta a razão?
Por um lado, ela manifesta-se no próprio homem, isto é o mesmo que dizer que o homem, isto é um animal racional que possui uma razão, que, permitindo-lhe o conhecimento, o distingue dos outros animais. Por outro lado, a razão manifesta-se nas próprias coisas, em termos de ritmo, medida, proporção, distância, etc.
Não podemos, a partir disto, dizer que uma casa, um som, uma árvore é racional, mas podemos dizer que a "forma" por que se manifesta, a maneira como essa coisa foi construída ou nasceu, éracional, porque tudo tem uma razão e obedece a uma razão.
"Há três tipos de coisas nas quais se manifesta a razão: a primeira compreende as acções que têm por objectivo um fim; a segunda diz respeito à linguagem e a terceira ao prazer."(2)
A primeira que compreende as acções, que têm por objectivo um fim, adverte-nos para nada fazer sem reflectir, quer isto dizer, que tudo aquilo que fazemos deve ser feito com uso da própria razão.
A segunda compreende a linguagem, que é a maneira pela qual o homem comunica com outro. Logo, a linguagem tem que ser comum a todos os homens duma mesma sociedade. Para a comunicação ser possível com os que não estão presentes num dado lugar, a razão inventou as letras - uma linguagem escrita. Cada letra corresponde a um som e a um movimento da boca e da língua. Não sendo as letras suficientes, a razão inventou uma maneira de as unir, notando que umas tinham uma duração de tempo simples e outras um tempo duplo, as quais correspondem às sílabas breves a às silabas longas. Constituindo, assim, um corpo de regras fixas, esta ciência, a gramática, podia ser perfeita. Por ser uma comunicação escrita, incluia-se nela, nessa altura, a literatura e a história. Ao estar inventada a gramática, a razão teve necessidade de criar novas artes. Mas, antes de tal tarefa, era preciso criar uma ciência que evitasse o erro - o mau uso da linguagem - a dialéctica.
Na dialéctica, existem dois pontos fundamentais: o que é um pensamento verdadeiro e o que é um raciocínio correctamente encadeado.
Examinemos um raciocínio correcto, donde se tira uma conclusão falsa: Um homem diz: "O que eu sou, tu não és". O outro responde. "É verdade". O primeiro pode então dizer: "Eu sou um homem". Segndo a ordem do raciocínio, o segundo homem terá que admitir que não o é.(3)
Ora, é a dialéctica que permite aos homens distinguir os raciocínios logicamente encadeados, mas que contêm pensamentos falsos, daqueles que contêm pensamentos verdadeiros.
Por isso, Stº Agostinho considera "a dialéctica a ciência das ciências, aquela que ensina a ensinar e a aprender, e éatravés dela que a razão se manifesta, que ela descobre a sua natureza, o seu fim, o seu valor".(4) Não quererá isto dizer que a dialéctica é uma arte de interpretação e daí a sua utilidade na interpretação das Sagradas Escrituras? E que a razão, ao manifestar-se na dialéctica, é o mesmo que se revelar nas interpretações correctas que faz não só das linguagens, mas também, de todas as coisas que nos rodeiam?
No terceiro caso, o do prazer, a razão visa a felicidade, através da contemplação das coisas divinas. Para tal, ela tem a possibilidade de traçar um caminho, unindo o sentido das palavras aos vários tipos de som, estabelecendo uma harmonia, tal como se encontra na poesia e na música.
Tal como fez para a gramática, a razão vai inventar um corpo de regras fixas que permitem juntar um som a outros, de maneira a ser harmonioso e belo. Este corpo de regras tem também por base um ritmo, uma medida que permite a harmonia.
Assim, a junção da poesia e da música é uma associação perfeita entre o sentido das palavras, a duração dos sons e as coisas divinas. Para tal, serve o exemplo de que "as dez cordas que a citara tem correspondem aos dez mandamentos".(5)
Não se pode dizer que este ou aquele prazer seja racional. Contudo, a razão manifesta-se na "forma" como surge esse prazer. Um grupo de sons desarticulados não é racional, porque a sua articulação não proveio da razão ou do corpo de regras por este inventado, mas numa música, isto é, numa associação harmoniosa de sons, é racional, porque obedece à razão e às regras criadas, tendo também influência nos sentidos ao causar prazer para quem a ouve.
Não só o que ouvimos é racional; o que vemos também o é, tal como a beleza da natureza e de todo o universo.
Todas as formas e figuras que vemos na natureza não são por acaso, elas têm a sua razão.
Por um lado, apercebemo-nos da harmonia e da perfeição das formas, por outro lado, compreendemos através da razão, o que na base dessa harmonia e de perfeição, há um conjunto de regras que dizem respeito às figuras, às formas, às dimensões, às medidas, às proporções.
O mesmo que se viu na linguagem, na gramática, na poesia, nas distâncias entre uns e outros, nas suas configurações. Daí surge o nascimento da geometria e da astronomia. Elas não são mais que a aplicação da razão à natureza terrestre e ao universo. A razão descobre, inventa esse conjunto de regras a que tudo obedece, mas esse facto deve-se à manifestação da razão na própria natureza. Não estará isto de acordo com o que disse atrás? Que a razão, ao manifestar-se no homem, dá a este a possibilidade de conhecer as coisas, mas também, a razão, ao manifestar-se nas próprias coisas, se torna a condição para o conhecimento das mesmas?
Seguindo esta ordem de pensamentos, poder-se-á afirmar que aquilo que o homem não consegue compreender, deve-se ao facto de a razão não se ter manifestado nessa coisa, ou se se manifestou não foi de forma a possibilitar esse conhecimento?
De tudo acima dito, conclui-se que tudo o que a ciência humana anseia por desvelar, está submetida aos números, os quais se manifestam através das medidas, das durações dos sons ou das palavras, das proporções das figuras e das formas. É por isso, que se pode afirmar que a razão se manifesta nas próprias coisas. Dizer que tudo o que se oferece à razão, está submetido aos números, não significará que o número é comum em todas as coisas e que, por isso, é idêntico à própria ordem por que Deus governa tudo?
Que relação existirá entre a razão das coisas e a ordem divina das coisas?
Se tudo tem uma razão e se tudo foi criado através da ordem divina, não se poderá concluir que razão e ordem são uma mesma coisa?
Aceitando isto por verdadeiro, poder-se-á ainda concluir que Deus, não só governa tudo segundo a ordem, a razão, mas que Ele éa razão em si e neste caso, n'Ele estão unidas as duas maneiras por que se manifesta para nós a razão, como inteligência no homem e como "estrutura racional" nas coisas em que se manifesta?

II Parte
Ciência e Ciências

O que é a ciência para Stº Agostinho?
A ciência é um grau para atingir a sabedoria. Mas o que é a Sabedoria?
Segundo Stº Agostinho, há uma tendência natural dos homens para estabelecer uma hierarquia de todos os seres, partindo dos não vivos para os vivos. Assim, na base desta hierarquia, estão as coisas que não têm vida, como as pedras, as rochas. Em seguida, colocar-se-ão os seres vivos, mas também, duma forma hierárquica: em primeiro lugar, a vida vegetativa a que correspondem as plantas e todo o tipo de vegetação; em segundo lugar, a vida sensitiva, a que correspondem os animais irracionais, em terceiro lugar, a vida inteligente mutável, que corresponde aos homens e, por fim, a vida inteligível imutável. A quem cabe este último grau? Para Stº Agostinho, este grau identifica-se com o próprio Deus: "... esta vida que nunca éirracional, que é sempre racional e que para melhor dizer, á a sabedoria em si."(6)
Chegando à conclusão de que Deus é a sabedoria em si, então Ele torna-se o próprio objectivo do homem. E para tal concorre a ciência. Mas será que esta por si só pode-nos conduzir até Deus?
É evidente que não. Para tal, existe um caminho do qual a ciência faz parte: em primeiro lugar, encontra-se neste caminho o temor a Deus, o qual se revela ao nos interrogarmos sobre a nossa morte e o que ela pode esconder. Em segundo, vem a piedade, de que nós temos necessidade, para sermos simples e humildes, de maneira a não contrariar as Sagradas Escrituras e a ter sempre presente que estas se identificam com a própria Sabedoria e, por isso, com a verdade absoluta. Em terceiro lugar, surgirá a ciência, que é o objectivo do meu trabalho. Em quarto, segue-se a fortaleza que nos faz ansiar pela justiça, pelos bens eternos em desprestígio dos bens terrestres. Em seguida, encontra-se o lugar do conselho, fundado na misericórdia, no qual os homens tentam purificar a sua alma, ao praticar o amor do próximo. Alcançando o sexto grau, o lugar do coração, o homem alcançou a possibilidade de, na sua pureza máxima, "ver" Deus, contemplar a Sabedoria.
Estando tracejado de uma maneira breve e simples o caminho para alcançar a Sabedoria, verifica-se que, sendo a ciência um grau nesse caminhar para, ela não constitui um fim em si, mas um meio. Verifica-se uma concepção de ciência muito diferente da actual: por um lado, ela faz parte de um caminho, logo é um meio de, e não um fim em si, por outro lado, ela não tem por objectivo o conhecimento da realidade que nos rodeia, mas daquilo, ou daquele que não se vê, mas que existe - Deus - e neste sentido, funciona como ajuda ou como meio de interpretação das Sagradas Escrituras. Logo, a ciência é em si mesma uma ciência hermenêutica das Sagradas Escrituras.
Ao afirmar isto, é evidente que estou a falar de ciência em termos gerais, mas logo surge uma questão: será que as várias ciências em si constituem todas, cada qual por seu lado, tarefas hermenêuticas? Ou será que buscando todas determinados conhecimentos da sua especialidade, têm em vista um saber global, uma participação positiva na ciência que visa a Sabedoria, que atrás se falou?
Como cocorrem as várias ciências para Stº Agostinho? Stº Agostinho divide as ciências em dois grandes grupos: as que são instituídas pelos homens e as que já encontramos instituídas, ou que foram instituídas por Deus.
As ciências e as artes que foram instituídas pelos homens, são umas supersticiosas e outras não. É supersticioso, tudo o que foi instituído pelos homens em vista da fabricação e do culto de ídolos, tudo o que tende seja a adorar como Deus a criação ou uma das suas partes, seja a consultar os diabos, seja a concluir com eles através de sinais, pactos de aliança, como se faz nas artes mágicas [...]"(7)
Nesta categoria descrita por Stº Agostinho, encontram-se os amuletos, os livros de adivinhos, vários tipos de práticas e, dentro do campo das ciências, a astrologia que é preciso banir.
O que Stº Agostinho tem contra os astrólogos, não se deve ao facto de estes encontrarem a verdadeira posição em que os astros se encontram aquando do nascimento de alguém, mas de quererem, a partir daí, tirar conclusões sobre a influência desses astros no comportamento e na personalidade do indivíduo. Para provar a falsidade disto, Stº Agostinho vai exemplificar com o caso de Isaías e de Jacob que, apesar de serem irmãos gémeos, e por isso, terem sofrido a mesma influência dos astros, eram tão diferentes um do outro.(8)
Daqui concluir-se que, por mais completo que seja o estudo dos astros, este não permite a ninguém adivinhar o futuro de ninguém e que, por isso mesmo, a astrologia não passa de uma ciência supersticiosa, de um pacto com os diabos. Logo, todas as práticas supersticiosas resultam de um pacto com os diabos e, por isso mesmo, devem ser banidas.
O que está por detrás disto tudo, é a relação Deus homem. Pois, se se admitir que os astrólogos possam predeterminar o comportamento ou a personalidade de alguém, através da influência dos astros sofrida no nascimento, tem também que se admitir que eles têm a possibilidade de adivinhar o futuro e, por isso, de concorrer com Deus. Qual então a superioridade divina? Não se tornaria a crença, o temor, a esperança em Deus uma desnecessidade para os homens, pois, sendo eles conhecedores do futuro, alteravam-no de forma a alcançar a felicidade?
Quanto ainda ao que é instituído pelos homens, mas que não ésupersticioso, pode-se dividir em dois grupos, as que são de luxo e supérfluas, como as estátuas, as fábulas, e todas as artes que pretendem ser imitações perfeitas de algo ou de alguém, e as que são necessárias à organização social, como, por exemplo, os pesos, as medidas, a cunhagem e o valor das moedas e principalmente as letras, as várias línguas.
Devido ao facto de haver várias línguas, o seu conhecimento torna-se indispensável não só para se tornar possível a comunicação com outros homens e com outras culturas, mas também e principalmente, para compreender as Sagradas Escrituras. Nelas se encontra todo o conteúdo da fé, da moral; de esperança, da caridade; e, para a sua compreensão total, deve-se, em primeiro lugar, poder lê-las na sua língua original e, em seguida, ler as diversas traduções dos diversos tradutores. Só por contraposição de uns com os outros, a compreensão dos passos obscuros das Sagradas Escrituras se torna possível e igualmente dos termos hebreus que não se encontram traduzidos, como por exemplo, "Amem", "Aleluia", "Hosana", "Raela", etc. e dos termos que funcionam em sentido figurado.
Quanto às ciências que foram fundadas pelos homens, mas criadas por Deus, são elas, por exemplo, a História, a Geografia, a Botânica, a Geologia, a Astronomia.
A História é a ciência que diz respeito ao correr dos tempos: ao passado dos homens. É uma ciência fundada pelos homens, porque, além de serem eles os personagens dos acontecimentos, foram também eles que a estruturaram, através dos livros dos autores precedentes, o que lhes permite saberem o que se passou em épocas passadas. No entanto, esta ciência não foi instituída pelos homens, mas por Deus, pois sendo este não só o criador do mundo, mas também de toda a humanidade, Ele só não sabe o que aconteceu e o que acontece, mas também, o que acontecerá. É Ele que administra o passar dos tempos, pois só Ele pode alterar o curso dos tempos. A utilidade da História é, como diz Stº Agostinho, um grande recurso que os homens têm para compreender as Sagradas Escrituras,(9) pois permite-nos saber situar no tempo acontecimentos, como por exemplo, o nascimento e a morte de Cristo, a vida dos profetas, etc.
Tal como a História, a Geografia a Botânica e a Geologia são uma narração, já não acerca do passado, mas acerca das coisas presentes. Elas dão-nos conhecimentos acerca da situação dos lugares, do seu clima, das plantas, que se sabe variarem de lugar para lugar e de época para época, e também das pedras e das rochas.
São também uma ajuda para compreender as Sagradas Escrituras, pois estas podem servir de complemento à própria história. Através de uma passagem das Sagradas Escrituras, em que se aponte determinado clima, determinada vegetação é-nos possível situar esse lugar e, com o auxílio da História, saber dizer o que aí se passou, em que época que povo aí habitava e qual a sua cultura.
Todas estas ciências foram fundadas e estruturadas pelos homens em termos de conhecimento, mas não foram instituídas por eles, pois só a Deus cabe a criação do mundo e da humanidade.
A estruturação destas ciências deve-se a uma necessidade natural, que o homem tem de conhecer e, por sua vez, este conhecimento é útil na desvendação das passagens obscuras das Sagradas Escrituras.
Neste sentido, elas não são um fim em si, mas um meio necessário para a compreensão total destes livros e para alcançar a sabedoria em si, todas estas ciências se disse atrás, terem sido inventadas pela razão, mas terem sido inventadas, significa aqui estruturadas, fundadas em termos de conhecimento e não instutuídas por ela, mas por Deus.
Se assim não fosse, fé e razão eram coisas opostas, o que não parece ter sido o pensamento de Stº Agostinho.
Fé e razão não se opõem, mas completam-se. O facto de todas estas ciências não serem um fim em si, mas um meio para a compreensão das Sagradas Escrituras, prova bem isso. O que servirá aos homens que detenham determinados conhecimentos científicos, se não tiverem fé, se não acreditarem na existência de Deus e não os utilizarem na compreensão das Sagradas Escrituras?
Assim, por mais conhecimentos científicos que se tenha, a razão não é indispensável - a razão deve tentar compreender os mistérios da fé. No entanto, se a razão sem a fé não pode existir, pois, se foi Deus que criou o mundo e a humanidade, foi Ele que criou e que nos deu o pensamento racional e não o inverso. Logo, é forçoso conhecer e compreender este acto divino, através de fé. O homem, que, apesar de ignorante, tem fé e temor de Deus, pode, através da sua existência, através das suas acções, alcançar Deus. Por mais conhecimentos que se tenha, aquele que negar a existência de Deus, é ainda mais ignorante que aquele que não domina os conhecimentos científicos, mas que acredita n'Ele. Negar a existência de Deus, é o mesmo que negar a criação, é o mesmo que negar a ordem das coisas, a razão das coisas, é fazer da ordem divina, uma desordem humana. A ordem divina compreende tudo e, mesmo esse homem que nega a existência de Deus, apesar de estar errado, está compreendido na ordem, pois nada se produz sem causa. A ordem é, por assim dizer, o encadeamento de todas as causas. "A série das causas está compreendida na ordem e o erro em si, não só é produzido por uma causa mas também ele próprio produz algo a título de causa"(10). O facto de alguém ter a possibilidade, através da sua razão, de negar a existência de Deus ou, pelo menos, de duvidar dela, revelará isso uma imperfeição, no acto da criação divina, ou terá sido propositadamente para que a fé, o temor de Deus, a compreensão da ordem divina se ofereça aos homens como algo voluntário?
Por tudo o que atrás se tem dito, nota-se que o objectivo do homem é Deus e a compreensão das Sagradas Escrituras. Qual é então nisso, o papel daquelas ciências instituídas por Deus, mas que dizem respeito à inteligência do espírito, como, por exemplo, a Dialéctica e a Matemática?
A Dialéctica e a ciência dos números são as mais importantes deste grupo, mas, para a compreensão das Sagradas Escrituras, a que reina é a Dialéctica. Neste capítulo, o importante é saber distinguir um encadeamento de raciocínios correctos, mas que contém falsos pensamentos, dos que podem ser verdadeiros, apesar do encadeamento se mostrar duvidoso.(11)
Efectivamente, a verdade dos pensamentos não depende da lógica do raciocínio, pois é possível, de pensamentos verdadeiros, tirar conclusões falsas: Ex. "Se alguém é um orador, logo ele é um homem. Se ele não é orador, logo ele não é um homem".(12) Neste exemplo, tanto o encadeamento de raciocínio como o pensamento da primeira premissa são verdadeiros, mas a conclusão tirada é falsa, pois o facto de alguém não ser orador não significa que não seja homem. Todos os oradores são homens, mas nem todos os homens são oradores.
Assim, prova-se que a verdade dos pensamentos não depende do encadeado dos raciocínios, mas vale por si mesmo. É que uma coisa é aquilo que se apresenta lógica ou ilogicamente à razão, outra coisa é um pensamento verdadeiro. O objectivo da Dialéctica é fazer com que não se acredite em conclusões falsas, apesar do seu encadeamento de raciocínios ser correcto e, desta maneira, não só ficar apto à compreensão total das Sagradas Escrituras, mas também para a defesa e o ensino delas.
Quererá, com isto, salvaguardar a veracidade absoluta das Sagradas Escrituras, apesar das passagens obscuras? Não quererá isto dizer que, apesar de certas passagens nestes Livros se apresentarem obscuras, por se oferecerem à razão humana como ilógicas ou pouco claras, se deve na mesma tomá-las por verdadeiras? Não estará já aqui, na base disto, uma atitude determinada para o hermeneuta destes livros Santos?
A Dialéctica é, assim, para Stº Agostinho, uma ciência instituída por Deus, pois não foram os homens que estabeleceram as regras de encadeamento e a veracidade dos pensamentos, tal como não foi o historiador que fez os acontecimentos históricos. O homem apenas constatou e estruturou estas regras, para tornar possível o seu ensino e a sua aprendizagem. O homem apenas foi ao encontro da criação divina e da ordem por que tudo Deus criou.
Quanto à ciência dos núneros, ou melhor, à Matemática, não foi tanbém inventada pelos homens, mas apenas descoberta. A ciência dos números está na base de todas as ciências, pois tudo se organiza por meio de medidas, seja de som, de distâncias, de grandezas, como se viu anteriormente. Tudo se oferece à razão como submetido aos números e estes manifestam-se nas próprias coisas. Mas tal como se disse na I parte do trabalho, a razão manifesta-se tanto nos homens como nas próprias coisas: poder-se-á, então, dizer que há uma identificação entre razão e os números, visto tudo se oferecer à razão como submetido aos números?
Se tudo se oferece à razão como submetido aos números, e ela se manifesta nas próprias coisas, poder-se-á dizer que a ordem divina por que tudo foi criado se identifica com os próprios números; ou melhor, que a maneira como Deus criou o homem e o mundo, foi segundo um raciocínio matemático?
Poder-se-á dizer que o que é racional, é numérico, ématemático e vice-versa?
Uma última palavra para as artes mecânicas, que, pela primeira vez, merecem ser chamadas de ciências. São as que têm por objectivo a fabricação dum objecto. Em certas artes mecânicas este objecto subsiste para lá do trabalho do operário, como é o caso duma casa, dum banco, dum vaso e outros objectos do mesmo género. Noutras, o efeito reduz-se ao acto; é o caso da corrida e da luta. Noutras ainda como é o caso da medicina, da agricultura ou a condução dum navio que é considerado por Stº Agostinho como artes mecânicas, constituem um terceiro grupo a ter em conta. Stº Agostinho não nos fala das artes mecânicas para as praticarmos, a menos que seja necessário para não faltarmos ao dever, mas para as podermos apreciar e para não ignorarmos o que as Sagradas Escrituras dizem quando se manifestam através de expressões figuradas.

Usar/Fruir

"Fruir é, com efeito, agarrar-se a uma coisa por amor a ela mesma. Usar, ao contrário, é levar o objecto de que se faz uso ao objecto que se ama, se todavia ele é digno de ser amado".(13)
Para Stº Agostinho, o que se deve fruir são os bens eternos e imutáveis, isto é, Deus, e usar os bens terrestres para alcançar os primeiros. Deus é para o homem o seu único objecto de fruição e tudo o resto deve ser usado para alcançar esse objectivo.
Poderá o homem fruir de si próprio? Não. O homem não frui de si próprio, porque o objecto do seu amor deve ser apenas Deus. Isto não quer dizer que o homem não se ame a si próprio, pois Stº Agostinho não nega que cada um se preocupe com o bem-estar, com a saúde do seu corpo, mas apenas que este amor pelo seu próprio corpo deve ser com o objectivo de este lhe servir de meio para fruir de Deus e alcançar a felicidade suprema.
O dever do homem é obedecer à regra do amor na qual está contido uma forma de vida e uma forma de amar: "tu amarás o teu próximo como a ti mesmo, mas Deus tu amá-lo-ás de todo o teu coração, de toda a tua alma, de todo o teu espírito".(14)
E quanto a Deus - será que ele nos frui ou nos usa? Se afirmarmos que Deus frui de nós, teremos que aceitar que se frui de algo, é porque necessita desse algo e, por isso, é incompleto, imperfeito. Na verdade, Deus não frui de nós, ele usa-nos, embora de maneira diferente. O uso que Deus faz de nós é um acto de bondade que nos dá a existência e através dela, a possibilidade de fruir d'Ele. É um acto de bondade porque é, através d'Ele, que nós existimos, é um acto útil para nós, porque nos possibilita a fruição divina.
Se atrás se disse que Deus não frui de nós, porque isso revelaria a sua imperfeição, na medida em que era incompleto, imperfeito, em que medida este acto de bondade que nos garante a existência não revela o mesmo? Quer dizer: se Deus não nos tivesse criado, quem iria fruir d'Ele? Para quem era ele objecto de amor? Para quem se iria revelar como ser perfeito e modelo de vida? Não revelará isto, que se por um lado, nós necessitamos da vontade divina, por outro lado, não necessitará Ele da nossa existência?
Um pouco mais adiante Stº Agostinho faz a seguinte afirmação: "Foi em vista de nos fazer conhecer este amor e deste nascer possível, que a Divina Providência criou toda a economia temporal, de que nós devemos usar não com um amor e uma alegria, que por assim dizer, aí se imobilize, mas antes com um amor transitório [...]"(15).
Em primeiro lugar, a conclusão que se pode tirar desta afirmação, é que Deus criou uma "economia temporal", para se tornar possível, para o homem, o conhecimento do amor, da regra do amor atrás citada, tornando-se esta um meio e o objectivo daquele que quer fruir de Deus. Em segundo lugar, que o amor que se tem a essa "economia temporal" não deve esgotar-se aí, mas ser transitório, o que permite concluir que essa "economia temporal" não é um fim em si, mas um meio de fruir de Deus, e que, por isso mesmo, não se oferece ao homem como objecto de fruição, mas como objecto de uso.
E agora pode-se levantar a questão: que quererá Stº Agostinho significar com a expressão "economia temporal"?
Significará ela todas as coisas que nos rodeiam como os animais, as plantas, as pedras, a água, os astros?
Aceitemos que é a isto mesmo que Stº Agostinho quer significar com a sua expressão. Sendo assim, é a estas coisas que Stº Agostinho se refere quando afirma que devem ser usadas para poder fruir de Deus. E como se encaixa aqui o problema do conhecimento estas mesmas coisas?
Na verdade, Stº Agostinho quando afirma que as usamos, não se está a referir unicamente ao uso diário que se faz delas, mas também ao conhecimento que se tem delas e ao uso que se lhes dá, como ajuda para a compreensão das passagens obscuras das Sagradas Escrituras. Neste caso, e não contrariando o que já atrás se tinha afirmado, o conhecimento e mais propriamente, as ciências, servem para explicar e compreender as Sagradas Escrituras e, por isso, elas não são um fim em si, mas um meio, elas não são objecto de fruição, mas apenas de uso.
Cada ciência por si própria é uma contribuição para a compreensão destes livros, e as ciências no seu conjunto, são um meio para a compreensão total deles.
Não estará aqui Stº Agostinho a apelar para um conhecimento global, enciclopédico que funcione como ciência hermenêutica das Sagradas Escrituras?
Temos, por um lado, uma função hermenêutica das ciências e, por outro lado, um objectivo do homem, que se revela na aceitação e no cumprimento da regra do amor. Que ligação haverá entre elas?
Se o objectivo das ciências é uma interpretação correcta dos Livros Santos, é porque o homem visa, com essa interpretação, descobrir qual a vontade de Deus, explicitar os mistérios da Fé, procurar neles preceitos morais ou regras de fé, como a esperança e a caridade que encaminhem o homem para as verdades eternas, para a fruição de Deus e para uma vida feliz.
Não estará na base deste tipo de utilização das ciências, uma moral?
Em que medida ciência e moral estão ligadas em Stº Agostinho?
Não será a ciência também um meio não só de aceitação do amor de Deus por Deus e o próximo por Deus através da fé, mas também da compreensão da razão de ser desse amor? Em que medida o conhecimento das ciências não proporciona, por sua vez, uma compreensão melhor da razão e da forma como esta se manifesta nas coisas?
Em que medida o conhecimento das ciências não aperfeiçoa o conhecimento humano sobre a ordem divina?
Quanto à ciência dos números, já atrás se disse que está na base de todas as coisas e que, por isso mesmo, tudo se oferece àrazão como submetido aos números.
Será ela uma ciência para usar ou para fruir? Já atrás se tinha dito que o homem só pode fruir de Deus e tudo o resto épara usar. Estando os números na base de todas as coisas, são eles que permitem o conhecimento, isto é, é devido a haver uma estrutura comum a todas as coisas que se torna possível à nossa razão, conhecê-las. Logo, tanbém a ciência dos números é usada pelos homens porque, permitindo-lhes o conhecimento racional das coisas, permite-lhes a fruição divina.

Notas:

(1) "De Ordine", Livro II, IV secção, XI, 30.

(2) "De Ordine", Livro II, IV secção, XII, 35.

(3) "De Doctrina Christiana", Livro II, III secção, XXXI, 48.

(4) "De Ordine", Livro II, IV secção, XIII, 38.

(5) "De Doctrina Christiana", Livro II, III secção, XVI, 26.

(6) "De Doctrina Christiana", Livro I, II secção, VIII, 8.

(7) "De Doctrina Christiana", Livro II, III secção, XX, 30.

(8) "De Doctrina Christiana", Livro II, III secção, XVII, 33.

(9) "De Doctrina Christiana", Livro II, III secção, XXVIII, 42.

(10) "De Ordine", Livro I, III secção, VI, 15.

(11)Ver nota nº 3.

(12)"De Doctrina Christiana", Livro II, III secção, XXXIII, 51.

(13)"De Doctrina Christiana", Livro I, I secção, IV, 4.

(14)"De Doctrina Christiana", Livro I, III secção, XXII, 21.

(15)"De Doctrina Christiana", Livro I, IV secção, XXXV, 39.