ÉTICA E CIÊNCIA EM AGOSTINHO
S. Agostinho dispensa qualquer tipo de apresentação. A sua importância é reconhecida não só no quadro da Igreja Cristã mas no quadro da cultura chamada ocidental. Nesta introdução ao nosso trabalho que focará os aspectos da ética e da ciência em S. Agostinho, aspectos aliás, intimamente ligados, não temos como objectivo apresentar uma biografia de S. Agostinho por muito pequena que ela seja. Qualquer boa enciclopédia possui esses dados.
Ao lermos a Doctrina Christiana, obra fundamental, que termina um período e começa simultaneamente um período totalmente diferente da história do pensamento humano, damo-nos bem conta de que S. Agostinho procura algo, visa um alvo bem preciso...
O chamado período eclesiástico é importantíssimo para o estudo do conteúdo real da cultura agostiniana. Para conhecermos as ideias teóricas que S. Agostinho defendia sobre este sujeito a Doctrina Christiana fornece-nos as respostas. Este tratado expõe o essencial sobre a cultura intelectual o seu lugar na vida, a sua finalidade, a sua técnica, os seus métodos. A atitude de S. Agostinho quanto aos aspectos das coisas da cultura evolui durante o período eclesiástico e o que é mais importante para o pensamento humano é que ele acabou por assumir uma posição original e de um interesse histórico excepcional. E o que é que consiste esta evolução? Tomamos a liberdade de responder pela boca do historiador H. Marrou na sua obra sobre S. Agostinho(1).
"Cette évolution se résume en un mot: un approfondissement intérieur du christianisme; saint Augustin réalise progressivement toute la richesse du contenu de sa foi. Dans cette vie toute entière consacrée à elle, par une ardente méditation, peu à peu les exigences de la religion chrétienne se font plus impérieuses, plus conscientes, plus profondes; elles tendent à régir toutes les manifestations de la vie. Elles pénètrent des domaines où d'abord leur influence ne se faisait pas sentir, et c'est notamment le cas de celui de l'esprit".
Um aspecto importante a ter em conta em S. Agostinho é que ele pertence simultaneamente a dois mundos diferentes: a sua alma é cristã mas o seu espírito foi formado nas escolas gréco-romanas. O que ele fez foi trazer para o cristianismo "o que havia de bom" nos gregos e romanos. S. Agostinho operou a fusão de dois mundos: o cristão e o helénico. Ao longo deste trabalho tentaremos mostrar isso. O ponto de vista de S. Agostinho sobre a cultura não é somente a de um cristão fervoroso, rigoroso. Étambém o ponto de vista de um pastor. É importante ter este aspecto sempre presente.
Qual a concepção que S. Agostinho fazia do que devia ser a cultura intelectual? A resposta é curta e é simples - Doctrina Christiana - uma cultura cristã. É necessário entender bem o que queremos dizer com isto. S. Agostinho quer uma cultura total e directamente subordinada ao cristianismo, todas as manifestações da vida intelectual devem estar ao serviço da vida religiosa, não serem mais que uma função desta.
Vejamos o que H. Marrou nos diz sobre isto: "Ce même idéal d'une culture entièrement consacrée à Dieu anime une lettre de direction que saint Augustin écrivit, beaucoup plus tard, à un étudiant Grec, Dioscore; à lui comme à Licentius il demande de subordonner étroitement toutes ses études, tous ses travaux aux exigences de la religion chrétienne." Toda esta problemática vem discutida no De Doctrina Christiana que é um tratado em quatro livros sobre a cultura cristã sobretudo o livro I visto que os outros três têm mais um carácter técnico. Este apresenta-se como uma vasta introdução que visa a determinar o lugar e o papel do trabalho intelectual no conjunto da vida cristã.
Resumindo o conjunto destas páginas poderemos dizer que todo o conhecimento científico recai sobre as coisas ou sobre os signos. As coisas por sua vez dividem-se entre aquelas que nós devemos fruir "frui" e aquelas que devemos somente nos servir "uti". S. Agostinho precisa estas duas noções e vemos que ele envia ao fruir toda a doctrina da felicidade e do soberano bem. Se existe um bem tal que a sua possessão supera todos os nossos desejos não temos o direito de escolhermos qualquer outro. Todas as outras coisas não devem ser que meios de que nos servimos para atingirmos este fim: Ora este bem existe, S. Agostinho diz que éa Trindade divina, é Deus inefável, soberano bem, sabedoria eterna: é dele somente que é necessário fruir.
Podemos perguntar se não haverá vida intelectual legítima a não ser aquela que se consagra inteiramente a alimentar em nós o amor de Deus? Na carta 55(2) S. Agostinho responde: "Subordonnée àla fin de la charité la science est très utile; en elle même, sans cette subordination elle s'est révéllée non seulement superflue mais encore pernicieuse..." a cultura augustiniana não será somente subordinada à vida religiosa pelo seu objecto, o seu programa, mas ainda pelo espírito que o animará. Não basta consagrar o esforço da sua inteligência a um objecto de essência religiosa, o estudo das Santas Escrituras. O estudo não deve ser levado por ela mesma, mas estar subordinado ao progresso da alma em direcção à perfeição.
O que será o conteúdo desta cultura cristã? Podemos responder por aquilo que ela não é. Para S. Agostinho a vida intelectual do cristão deve opor-se de maneira radical à cultura tradicional dos letrados do seu tempo. É a cultura literária que S. Agostinho renuncia aqui pois quanto à cultura filosófica veremos no desenvolvimento do trabalho que a conserva no interior da sua cultura cristã.
Não nos devemos admirar com os termos que servem para designar a cultura cristã: doctrina, scientia; é que ela é antes de tudo um cohecimento. Claro que é um conhecimento rigidamente ordenado a um certo fim, mantido num certo domínio. Esta cultura opõe-se à estética do letrado e à curiosidade do erudito. Ouçamos, H. Marrou ainda no "Saint Augustin et la fin de la culture Antique": "Mais que refusait donc saint Augustin? Virgile et Cicéron? Oui, sans doute, mais n'était-ce pas surtout Symrnaque et Macrobe, le panégyrique de Banton, les lettres d'art au style tarabiscoté, les commentaires pédants ou puérils, et la grave question de savoir qui, de la poule ou de l'oeuf, est venu le premier."
Um outro aspecto a ter em conta é o seguinte: sem dúvida que todos os eclesiásticos estão de acordo com Agostinho para dizer que um cristão deve ter a sua inteligência ao serviço de Deus. Todos estão de acordo para admitir a incompatibilidade da fé cristã e da cultura comum, herdeira duma civilização pagã. Mas todos os predecessores de Agostinho não puseram o problema da cultura cristã na sua total profundidade. É que eles repeliram intransigentemente a cultura pagã. Desta maneira a atitude de S. Agostinho é revolucionária, porque inovadora.
Na época de Agostinho a cultura antiga é um edifício em ruínas, não há mais nada a esperar dela a não ser alguns elementos, alguns materiais orientados para o futuro, para a reconstrução total da cultura num plano novo.
Desenvolvimento
A cultura cristã apresenta dois aspectos: um superior, não émais do que a cultura filosófica que S. Agostinho conserva. Mas ele admite agora um outro tipo de cultura que a sapientia: a ciência cristã, exercício da inteligência aprofunda os dados da revelação. S. Agostinho com efeito não cessou de definir o seu ideal para este mesmo termo de sapientia; é que a sabedoria para ele é sempre uma contemplação da verdade, um conhecimento de Deus, conhecimento que é sem dúvida também visão, contacto, amor, participação, mas antes de tudo certeza: "sapientia id est contemplatio veritatis, pacificans totum hominem et suscipiens similitudinem Dei" como diz S. Agostinho no "De sermone Domini in Monte".
Ao definir sapientia S. Agostinho nunca deixou de opôr este vocábulo a um outro que determina um outro aspecto da actividade intelectual ao qual ele chama ciência. Que devemos entender por este termo? Sem querer alterar a unidade da razão da inteligência humana, S. Agostinho distingue nela dois aspectos, duas funções. Há uma função superior éminente; conhecêmo-la é a sapientia que se consacra à contemplação das verdades eternas: Deus, alma e ainda as verdades das ciências racionais na medida em que o seu estudo está ordenado à contemplação de Deus. Há uma função inferior, a scientia, é a aplicação do espírito aos dados da experiência sensível, o conhecimento das coisas temporais relevando da ordem acção.
A ciência é apresentada por S. Agostinho de maneiras diversas. Começa por ter um sentido pejorativo: A scientia não ésomente um uso inferior mas uso perverso e culpado da razão: é o movimento de alma que se afasta da consideração de Deus e se agarra ao conhecimento das realidades terrestres e que em lugar de se servir de meios para chegar a Deus se deixa seduzir por eles e coloca neles o seu fim. Num segundo aspecto S. Agostinho abandona o ponto de vista pejorativo e reserva o nome de ciência ao bom uso que o homem pode fazer. Na influência dum texto de Job(3) dá-lhe sobretudo um valor ético: a ciência seria a actividade do espírito tanto quanto ele se aplique à direcção da vida moral. Num terceiro aspecto onde se passa do plano da acção moral ao do conhecimento. Está dominado por duas exigências fundamentais: por oposição à sapientia de que se salienta as verdades eternas a ciência tem por matéria o que se manifesta no tempo empírico o que se insere na experiência da história humana: é uma cognitio historica; entenda-se que ela deve ser boa, útil o que significa especificamente na austera perspectiva agostiniana contribuinte na vida religiosa.
Do que se acaba de dizer a consequência a extrair é a seguinte: Há verdades úteis, entre todas são aquelas que a autoridade da revelação divina propõe à nossa fé; ora esta revelação manifestou-se na História, ela transmite-se de maneira empírica por um ensinamento materialista por palavras, por um livro, a escritura. Como vemos há lugar para a ciência que será a actividade da inteligência tanto quanto ela se aplique ao conhecimento da fé.
Se procurarmos tentar ver da maneira concreta como é que esta scientia, esta cultura cristã se traduz em factos, chegaremos rapidamente a traçar o seu programa. Aquele que pretende aprofundar o conteúdo da fé deve remontar à sua origem. Esta é por sua vez tripla: a escritura, a tradição, a autoridade viva da Igreja. Mas o ensinamento da Igreja como o da tradição sobre o qual ele se apoia não é nada mais que uma transmissão do dado revelado. Ora a revelação, toda a revelação está contida na santa escritura. É portanto à volta da Bíblia que deve gravitar toda a ciência, toda a cultura cristã. Em resumo poderemos dizer que o estudo da Bíblia constitui o objecto próprio desta cultura. Para S. Agostinho é toda a cultura que gravita à volta do estudo da Bíblia, a única cultura que ele admite para um intelectual cristão. S. Agostinho exprimiu muito claramente o seu pensamento: A Bíblia contém tudo o que um cristão precisa de saber. Quanto àcultura pagã o que é pernicioso a Bíblia condena; o que é útil encontra-se na Bíblia. Todo o outro objecto de estudo é interdito ao cristão a não ser que ele se sirva somente como meio para melhor conhecer a Escritura. O que concluímos em relação ao De Doctrina Christiana é que não se trata dum simples manual da instituição clerical; não há nada de especificamente eclesiástico neste programa de cultura. Esta cultura cristã apresenta-se em S. Agostinho como deduzida a partir de dados estrictamente religiosos. O cristianismo supõe uma fé, crenças, um dogma; um certo número de ideias fundamentais sobre Deus e a sua essência, sobre o homem, a sua natureza, os seus destinos, o mundo, a sua criação, o seu futuro... Este dogma deve ser transmitido, exposto aos fiéis e numa certa medida explicá-lo. O dogma cristão éfundado numa revelação essencialmente representada por textos inspirados, por um livro, a Bíblia. Se procurarmos precisar a ideia que ele fazia da cultura cristã vemos aparecer cedo a influência da cultura antiga que ele rejeita mas no seio da qual o seu pensamento foi formado. E foi por ele ter conhecido bem a tradição antiga que S. Agostinho considerou indispensável dar ao intelectual cristão uma certa preparação tão primordial que a ela consagrou um tratado o nosso Doctrina Christiana obra que apresenta como um manual técnico (no prólogo da obra esta ideia está bem presente) um programa de estudos preliminares e a análise dum método de trabalho.
O segundo livro do De Doctrina Christiana põe o problema na sua generalidade: não se trata ao contrário de outros autores simplesmente de saber se o cristão recebe a educação liberal, o que ele deve fixar ou esquecer. S. Agostinho traça um vasto inventário de todos os aspectos da cultura antiga e esta operação preliminar constitui um programa de formação onde entra somente o que servirá à alma cristã que procura pelo estudo da Escritura melhor possuir o tesouro da sua fé.
Um dos principais aspectos porque S. Agostinho fica na história do pensamento humano é que por isto que se disse S. Agostinho rompe com a tradição antiga volta-se para o futuro e põe os fundamentos do que será a cultura medieval. Examinemos o programa de formação preliminar que ele expõe. De que se trata? Aprofundar a compreensão das verdades contidas na Escritura, expor, ensinar as verdades aí contidas. A Bíblia é necessário dizê-lo realisa para o cristão a velha aspiração humana de "o livro onde estaria tudo".
Antes, no entanto de referir as diversas ciências e o seu papel no programa de estudos proposto por S. Agostinho quero fazer uma pequena referência quanto à posição da ciência S. Agostinho pretende desde sempre expor o caminho que o cristão deve percorrer para atingir a sabedoria. Diremos em duas ou três palavras que a sabedoria é a visão e a contemplação da verdade enfim descoberta, ou seja, a Revelação idêntico a inteligência das Escrituras (intelligentiam Scripturarum). No livro II (II, 7) S. Agostinho fala de seis etapas para atingir a dita sabedoria. Em (II, 7, 11) S. Agostinho diz-nos que o começo da sabedoria é o temor a Deus ou seja é a primeira etapa para atingir a Sabedoria. A segunda etapa é a Piedade.
1-Temor de Deus: Temor da morte e do destino futuro; o que faz pensar no juízo de Deus.
2-Piedade: Submissão à Sagrada Escritura e a aceitação crédula da sua verdade.
Com a terceira etapa chegamos finalmente à ciência.
Em (II, 10) S. Agostinho diz o seguinte:
"Porque neste (ou seja, no grau da ciência) se exercita todo o estudioso das divinas escrituras, não encontrando nelas outra coisa senão que se há-de amar a Deus por Deus e ao próximo por Deus."
E ainda: "(...) É pois necessário que, antes de mais nada, cada um veja, estudando as divinas Escrituras, que se acha enredado no amor deste século, quer dizer no das coisas temporais, está tanto mais afastado do amor de Deus e do próximo quanto o prescreve a própria Escritura."
Eis as seis etapas para atingir a Sabedoria, a verdade revelada, o sumo bem.
1 - Temor a Deus 4 - Fortaleza
2 - Piedade 5 - Conselho
3 - Ciência 6 - Pureza de
Coração
(Amor do Inimigo)
Vejamos agora os tipos de ciências estipulados por S. Agostinho no seu programa de estudo. Divide as ciências em as que têm por objecto as coisas que os homens instituiram e as que têm por objecto as coisas realizadas ou instituídas por Deus. As primeiras são úteis e necessárias ao uso necessário da vida e são a Ética, a Política e a Economia. Neste grupo se incluem também as perversas e dirigidas para o mal como é o caso da Astrologia. As segundas as ciências que os homens não criaram são muito úteis à inteligência das Escrituras. Neste grupo incluímos as ciências fundadas pelos homens (não criadas por eles) que procuram por um lado o que se passou ao longo do tempo. É o caso da História, da Geografia, da Botânica, da Geologia, da Astronomia, das Artes Mecânicas. Incluímos também as ciências instituídas por Deus, relativas à inteligência do espírito. É o caso da Dialética, da Gramática, da Retórica.
Estamos agora em condições de ver o programa de estudos em termos mais precisos. No início encontramos a Gramática o que élógico pois Deus quis dar-nos a sua revelação por intermédio dum livro escrito numa língua humana, é necessário aprender a falar uma das línguas em que este livro foi traduzido. Logo énecessário conhecer as regras da Gramática. À Gramática da língua latina é necessário juntar o estudo das línguas estrangeiras: A Bíblia latina não é que uma tradução, é preciso remontar quer ao Grego quer ao Hebreu para verificar os textos do Antigo Testamento e para compreender o valor de vocábulos misteriosos como por exemplo: Hosanna, Aleluia, Amen, Racla, etc.
À Gramática sucedem diversas ordens de conhecimentos como a História. É necessário ter em conta a cronologia, uma cronologia comparada dos cálculos diversos, olimpiadas, consulados, etc... onde se inscrevem as grandes datas da história religiosa da Humanidade e que possa servir de base sólida às discussões apologéticas. Depois a Geografia e a História Natural: o conhecimento do meio e as propriedades de todos os animais, árvores, plantas, minerais, mencionados na Bíblia. A História Natural conduz ao antigo sistema do mundo à Astronomia. S. Agostinho não gosta de insistir muito sobre esta ciência porque toca a Astrologia, exorcisada por ele. Não podemos ignorar as Artes Mecânicas pois a Escritura utiliza imagens e figuras tomadas a objectos ou acções que o conhecimento destas técnicas pode explicar. Passando a outro grupo de ciências não as do espaço ou tempo mas do espírito S. Agostinho menciona a Retórica que na verdade não tem utilidade directa para o estudo propriamente dito da Escritura pois ela diz respeito à questão da expressão e não à da descoberta. Insiste mais sobre a Dialéctica considerada no seu aspecto teórico: é a lógica, a ciência das leis formais da razão que permite ao exegeta tratar com rigor todas as questões que o estudo aprofundado da Bíblia levanta evitando cair em grosseiros erros. Temos de ter em conta ainda as matemáticas distrubuídas segundo a classificação tradicional em aritmética, geometria, música e mecânica (celeste, isto éastronomia matemática). É sobretudo a aritmética, ciência das propriedades qualitativas reconhecidas tradicionalmente a certos números, que merece a sua atenção: o seu conhecimento é útil para a interpretação alegórica dos números mencionados a propósito e sem uma intenção secreta pelos escritores sagrados. O ciclo termina com a Filosofia: o cristão deve assimilar tudo o que os pensadores clássicos disseram de acordo com a verdadeira fé.
É este o programa da cultura preparatória que Agostinho propõe ao intelectusal cristão que quer tirar todo o partido possível do estudo da Bíblia. Programa de uma importância histórica considerável pois é ao abrigo destas prescripções do De Doctrina Christiana e sob a alçada da autoridade de Agostinho que a Idade Média viu desenvolver no seio da cultura cristã os valores humanos, o gosto pela pesquisa científica, a curiosidade pelos conhecimentos de toda a ordem, tudo o que, numa palavra, devia dar nascimento à nossa cultura moderna. Para terminar queria focar ainda um aspecto que me parece importante.
Agostinho não é um editor da Bíblia mas um exegeta; e no seu pensamento o trabalho do segundo não implica necessariamente o do primeiro. A sua finalidade quando confronta os seus códices não éestabelecer o melhor texto compatível com as sujeições do latim, mas chegar à mais ampla compreensão do conteúdo da revelação; esta característica é própria do pensamento agostiniano. Não pára para considerar o problema da Bíblia latina, pois a melhor tradução latina não poderá ter a seus olhos, o mesmo valor que o texto original tal qual saíu da pluma dos escritores inspirados. As versões latinas não são mais que meios de aproximação deste texto fundamental onde o aprofundamento é o fim essencial que se propõe o comentador.
Conclusão
Agostinho viveu e pensou num meio civilizacional determinado. A sua vida intelectual, a sua cultura dependem estritamente do estado como se encontram neste meio as técnicas intelectuais. Vimos já um primeiro aspecto desta influência: o estudo da Bíblia, como Agostinho a definiu e a pratica, aparece-nos como um reflexo, uma adaptação das tradições da cultura profana.
Mas há mais: o meio civilizacional não fornece somente ao indivíduo os elementos, os materiais que o espírito aproveitará, determina ainda uma certa orientação geral da inteligência, cria necessidades, exigências culturais, de uma ordem geral que se impôem de maneira mais tirânica permanecendo o mais das vezes inconscientes.
Agostinho esforçou-se de subordinar estritamente a cultura cristã às exigências da vida religiosa, de não fazer que um instrumento ao serviço da fé.
O estudo da Bíblia não serve somente para alimentar a alma cristã, torna-se o pretexto, a ocasião, de uma actividade propriamente cultural, gratuita; e onde encontramos a influência da cultura profana em dois aspectos distintos e complementares: o espírito literário e a curiosidade. Feliz daquele que conhece Deus com fé, esperança e caridade mesmo se desconhece as artes liberais, porque aquele que conhece Deus e as artes liberais não é mais feliz por causa delas.
A atitude de Agostinho representa uma tomada de consciência efectiva e eficaz da decadência do mundo antigo, uma evasão de um mundo de falsos valores, a opção pela realidade de valores de humanidade. Agostinho apresenta no De Doctrina Christiana um programa de estudos superiores que constitui uma formação completa do espírito concebido unicamente no sentido de colocar a função intelectual do serviço da vida cristã.
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