Sunday, February 18, 2007

OS FUNDAMENTOS BÁSICOS DA MORALIDADE KANTIANA

A irredutibilidade do ser ao pensar e a determinação do ser pelo pensar

"Deux choses me rempllissent d'un immense respect: le ciel étoilé au dessus de moi et la loi morale en moi."

KANT, Naturgeschichte (Histoire de la Nature) citado in BELARD, Yon et Wleesdawer, Jean de - La Révolution Kantienne, Éditions Gallimard, collection Idées, Paris, 1978, págs.63-64

1- O Mundo Humano é um mundo moral

Para o leitor mais ou menos conhecedor da obra do filósofo de Konigsberg torna-se notado desde cedo o esforço que Kant faz por distinguir claramente o mundo natural do mundo humano. O homem faz parte de ambos, do primeiro como fenómeno, do segundo como número. Enquanto participa do primeiro está sujeito ao determinismo das leis naturais. Na medida em que pertence ao segundo rege-se por uma causalidade livre.
No mundo natural é o entendimento que impõe leis aos fenómenos sob a condição de estes serem dados numa experiência. No mundo humano é o imperativo categórico da razão prática que surge como algo absolutamente incondicional, como um dever absoluto.
Pela lei moral, expressa como imperativo categórico, se revela a dignidade do ser humano. Por ela se afirma o homem como ser destinado pela sua própria natureza a fazer-se a si mesmo segundo a lei que a si mesmo dá. Deste modo se cumpre a qualidade entre todas decisiva da vida moral: a autonomia da vontade. "O princípio da autonomia, diz Kant, é o único princípio da moral"; "a autonomia é o fundamento da dignidade da natureza humana e de toda a natureza racional." (F.M.C.)
Que se entende por autonomia por vontade? Isto: que para uma acção ser moral, a vontade só deve ser determinada pela representação da lei moral e não por qualquer elemento exterior a ela própria (objecto ou mandamento) ou por qualquer outro motivo, por nobre que ele seja. A moralidade da acção humana não depende sequer do que o homem faz, mas do modo como o faz; ou melhor depende do princípio segundo o qual o faz. Isto é, depende da vontade boa do sujeito, na medida em que esta se orienta exclusivamente pela lei moral. Por isso dirá Kant que neste mundo não há nada absolutamente bom a não ser uma boa vontade. (F.M.C.)
Essa vontade boa, para ser autenticamente moral, não deve ser movida por factores sentimentais ou quaisquer outros elementos estranhos à lei moral, mesmo os resultantes da consideração do objecto da acção. Deve ser apenas movida pelo puro "respeito pelo dever" que a lei moral impõe. Respeitar este dever, aliás, não é mais do que respeitar-se a si mesmo, à sua condição de ser racional responsável.
Por conseguinte, o homem não deve agir, nem movido pela consideração dos objectos (mesmo que seja pelo bem considerado como um objecto exterior à vontade), nem com o objectivo de encontrar pela sua acção a felicidade ou qualquer lucro. Diz Kant: " que a simples dignidade do homem considerado como natureza racional, sem qualquer outro fim ou vantagem a atingir por meio dele (...), sirva de regra imprescindível da vontade, e que precisamente nesta independência da máxima face a todos os motivos desta ordem consista a sua sublimidade." (F.M.C.)
A autonomia realiza-se nos vários momentos da acção humana, enquanto o homem age a partir de si mesmo, por si mesmo e para si mesmo. Por ela o homem se constitui como ser moral, na medida em que leva em si a razão do seu agir e o objectivo de si próprio. Por isso a autonomia nos conduz a outra exigência da ética kantiana: o dever incondicional do homem se considerar como um fim em si mesmo. Nesta duas qualidades - se revela toda a grandeza do destino humano e também todo o seu drama. Com efeito, o homem é um esforço constante por atingir o objectivo que leva dentro de si, objectivo esse que, do ponto de vista empírico, resulta sempre inantingível.
O homem é um ser dividido dentro de si próprio. Por um lado, é um ser empírico, enquanto livre arbítrio que pode ou não agir segundo a representação da lei moral. Por outro lado, é um ser intelegível, na medida em que leva em si um tipo de causalidade livre, que se impõe como exigência absoluta e incondicional. Por causalidade livre, deve entender-se o poder que tem uma vontade de dar leis a si mesma e de se auto-determinar a agir segundo essas leis e em vista da sua auto-realização imanente. Só assim se salvaguarda o referido "Único princípio" da moral: a autonomia. Claro que, no homem, a autonomia da vontade esbarra com outra das suas dimensões, a dimensão do sentimento.
Mas nesse conflito é ao homem racional que cabe o poder e o homem sensível deve submeter-se. É aliás por isso que a lei moral surge ao ser humano como um imperativo incondicional: tu deves. No homem, com efeito, a vontade (o livre arbítrio) não coincide com a representação da lei moral. Estabelece-se assim uma espécie de tirania do homem sobre si mesmo. Mas é uma tirania exigida pelo exercício da sua dimensão mais digna, a personalidade, pela qual ele se assemelha a divindade. O homem, como produtor de si, segundo a ideia de liberdade que leva dentro de si próprio, tal o cerne da concepção moral kantiana.

2 - A vida moral e a sua estruturação

Para compreender a filosofia moral de Kant é necessário procurar as estruturas essenciais da vida moral a cujo exame ele consagra a Fundamentação da Metafísica dos Costumes e a Crítica da Razão Prática. Kant utiliza a análise reflexiva; trata-se por meio de um método abstracto, de isolar os elementos simples, à priori, que são as suas condições necessárias e sem as quais nem sequer poderá falar-se de vida moral.
Na Fundamentação da Metafísica dos Costumes, o objecto dessa análise é em primeiro lugar o juízo comum dos homens em matéria moral, o qual constitui uma base tão sólida como a experiência científica e contém em si mesmo o princípio da sua certeza, porque a verdade moral é directamente acessível a cada homem, que a reconhece desde que a sua reflexão seja solicitada. Kant tem a mesma confiança que Sócrates no juízo prático dos homens: e afirma-o. Só que, enquanto Sócrates analisa as opiniões comuns para estabelecer as definições de justiça, piedade, etc., o que poderia já chamar a matéria da moralidade, Kant, no que lhe diz respeito, esforça-se por extrair daí o elemento formal, isto é, as condições a priori, libertas de toda a mistura empírica que a fundamentam.
A análise da consciência moral comum permite a Kant clarificar a ideia de bem, um tanto equívoca. Os dons da natureza e da fortuna, qualidades como a coragem, o domínio de si, a perseverança, constituem vantagens incontestáveis; mas a consciência jamais qualificará esses bens como morais. Por si mesmos, de facto, eles não indicam ainda o uso que deles se pode fazer e é possível utilizá-los para o mal; a audácia e o sangue-frio de um criminoso tornam o seu crime mais odioso. Nada haverá então no mundo que possa ser absolutamente bom e de que seja impossível fazer um mau uso? Sim: a boa vontade, que é, para a consciência comum, a fórmula imediata do critério em nome do qual ela julga. A consciência moral, com efeito, não aprecia em primeiro lugar os nossos actos pelos seus resultados, que nem sempre dependem de nós, mas segundo a máxima que os inspira, a intenção que nós temos ao agir.
Esta não se confunde, é verdade, com a simples veleidade; ela deve, na medida do possível, traduzir-se na realidade, ser eficaz, e Kant tem o cuidado de não se esquecer disso. Nem por isso está menos persuadido de que a moralidade é fundamentalmente uma questão de intenção, e que este carácter deve ser sublinhado antes de qualquer outro.
Que intenção deve animar a boa vontade? Ao responder que esta é movida pelo respeito do dever, Kant dissipa vários equívocos. Pode acontecer, de facto, que as nossas acções estejam materialmente conformes com o dever, mas que nós as façamos por interesse ou inclinação: é o que se passa com o comerciante que vende ao preço justo para manter a sua clientela, ou com o homem que ajuda o seu próximo unicamente por simpatia. Comportando-se desse modo, eles permanecem no plano da legalidade. Esta exige apenas que se actue de acordo com a lei, pouco importanto as intenções. A moralidade exige mais: que eu me conforme com o espírito e a letra da lei, que eu me conforme a isso por respeito por ela. Afirmando que o homem ainda não se elevou ao nível da moralidade, quando se deixa guiar exclusivamente pelas inclinações naturais; indo até ao ponto de dizer que se estará tanto mais seguro de ter agido moralmente quanto se teve de enfrentar essas inclinações; Kant expunha-se a ver-se acusado de rigorismo. Mas tal censura se se explica pela existência de certas fórmulas excessivas, nem por isso tem muito fundamento. Kant admite, efectivamente que existem inclinações naturalmente boas: atribui também um grande valor aos hábitos, às virtudes que facilitam o cumprimento do dever e não nega de modo nenhum todo o valor moral ao acto realizado "com inclinação": Só que ele sublinha, não sem razão, que não seria ainda moral o acto realizado unicamente "por inclinação": se quer agir moralmente, o homem tem de inspirar-se no respeito pelo dever. Mas o respeito não será ele próprio um sentimento? Decerto, mas um sentimento original. Ele tem analogias com o temor e a inclinação, aos quais se reduzem todos os nossos sentimentos.
Com o temor, porque ele se reporta a uma lei a que a nossa sensibilidade se sujeita. O dever, com efeito, exerce sobre ela uma coacção. Ainda que eu avance na perfeição moral, existirão sempre em mim tendências que me levam a afastar-me da lei, "e nenhuma criatura pode estar totalmente livre de desejos e de tendências". (C.R.P.) O cumprimento do dever exige incessantes esforços; crer que se pode chegar ao ponto de agir moralmente "por amor", deixando de sentir o peso da obrigação, é cair naquilo a que Kant chama a ilusão e o fanatismo moral. - Mas se, por estas razões, o respeito apresenta analogias com o temor, por outro lado, ele assemelha-se à "inclinação"; reportando-se a uma lei posta pela nossa vontade, ele implica a consciência da nossa participação no valor da lei, realça a estima que nós podemos ter de nós próprios, faz-nos entrever a nossa dignidade. (O respeito, segundo Kant, dirige-se à lei, nunca às coisas. Se muitas vezes parece dirigir-se a pessoas, é porque estas, pelas suas acções ou pelas suas qualidades, são exemplos ou símbolos da lei.) O respeito, sentimento sui generis que se apresenta a Kant como um "produto espontâneo da razão em nós", desempenha assim o papel de móbil na vida moral: Agir moralmente, é agir sob o impulso do sentimento de respeito que a lei nos inspira.
Móbil da moralidade, o respeito não é o seu fundamento. Esta, com efeito, implica essencialmente um imperativo que se impõe a nós de uma maneira absoluta. Todas as coisas, na natureza, agem segundo leis; os seres racionais também; mas as suas leis, eles conhecem-nas previamente e a vontade não é neles mais que o poder de agir em conformidade com regras que exprimimos. Um ser no qual razão e vontade constituíssem apenas um, e que estivesse liberto de toda a influência estranha, escolheria sempre o que a razão considera como bom. Em contrapartida, um ser finito, cuja vontade sente a atracção de móbeis sensíveis por vezes em desacordo com a lei, não se conforma inevitavelmente com esta; e para ele, a lei apresenta-se sob o aspecto de uma imposição, de um mandamento, de um imperativo.
O imperativo supõe portanto uma vontade subjectivamente imperfeita, à qual é pedido que se decida de acordo com regras, não segundo os impulsos de sensibilidade. Os imperativos podem ser hipotéticos ou categóricos. Os primeiros, que se subdividem em regras de habilidade e em conselhos de prudência, têm de comum o ordenarem tal acção, mas em vista de outra coisa. A sua existência não põe problemas, por assim dizer; Ela rege-se pelo princípio: quem quer os fins, quer os meios. Entre ambos, há uma relação analítica. Aquilo a que eu estou directamente ligado neste imperativo, é ao próprio fim, à matéria do meu querer; uma vez que decidi quanto ao fim, a necessidade de assumir os meios deriva daí necessariamente: se quero ser médico, devo evidentemente estudar medicina. Podemos libertar-nos de um imperativo hipotético: basta deixarmos de querer o fim. - Mas, ao lado dos imperativos hipotéticos, há um imperativo categórico que, por seu turno, prescreve a acção como absolutamente necessária, sem referência a nenhuma condição, sem a subordinar a um outro fim. É desta maneira que se nos apresentam os imperativos da moralidade; eles não impõem um acto já logicamente pressuposto num querer anterior; eles não ligam a vontade à matéria do acto, mas à própria acção que ela deve levar a cabo e que não tem, de direito, a possibilidade de não levar a cabo. Estes imperativos prescrevem-nos que actuemos pura e simplesmente em conformidade com a lei.
Ora, uma lei caracteriza-se pela sua universalidade; donde a fórmula pela qual pode enunciar-se o imperativo categórico: "Age unicamente segundo a máxima que faz com que possas querer ao mesmo tempo que ela seja uma lei universal." Esta fórmula faz abstracção de todo o contéudo material e dos nossos actos morais considera apenas a sua fórmula necessária. (Donde aquilo a que se chama o formalismo da doutrina kantiana. Vários críticos lhe censuraram tal formalismo.)
Ela deve no entanto, segundo Kant, encerrar "o princípio de todos os deveres". Não se trata de deduzir estes com a ajuda da experiência, mas de precisar em que sentido a fórmula que acabamos de citar os contém. Para lá chegar, Kant utiliza de uma maneira analogia o conceito de natureza. A natureza "exterior", já o sabemos, somos nós, sob certos aspectos, que a constituímos, impondo-lhe os quadros gerais graças aos quais ela se apresenta ordenada. Passa-se algo de semelhante a propósito da moralidade: as máximas das nossas acções, universalizáveis, devem poder constituir para as actividades uma ordem moral, uma "natureza" ética. Donde a segunda formulação do imperativo categórico: "Age como se a máxima da tua acção devesse pela tua vontade ser erigida em lei universal da natureza."
Mas não basta que a vontade actue conformando-se com leis; ela é também a faculdade de prosseguir fins e é preciso de facto que ela tenha um último, possuindo um valor absoluto e impondo-se a todo o ser racional. Segundo Kant, esse fim identifica-se com o próprio ser racional, sujeito de todos os fins possíveis e que, a este título, não deve ser subordinado a nenhum fim particular. Mas, como nós não conhecemos por experiência nenhum outro tipo de ser racional que não o homem, Kant julga-se autorizado a identificar a "natureza racional" com a humanidade e chega assim a uma fórmula: "Age de tal maneira que trates a humanidade tão bem na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro sempre ao mesmo tempo como um fim e nunca simplesmente como um meio." (A "natureza humana" não deve ser considerada como a matéia da moralidade; de resto, Kant afirma variadas vezes que a moralidade diz respeito ao ser racional e não apenas ao homem.)
Por esta fórmula, Kant afirma o valor absoluto da pessoa, que não se mede com o uso que dele podemos fazer e que deriva da própria razão. A noção de personalidade, que ganha doravante na sua filosofia uma filosofia uma importância capital, designa o homem no que ele tem de mais íntimo, na sua união estreita com a lei moral que é "Santa"; e é por isso que Kant nos diz que a humanidade é santa, por causa desta personalidade inviolável que só pode aliás ser garantida por uma ordem em que a lei governa. "Tal é o verdadeiro móbil da razão pura prática; não é mais que a nossa própria existência supra-sensível..." (C.R.P.)
Mas a lei não se impõe de fora nem de cima; deriva da própria vontade. O homem é um fim em si, por que é ele próprio quem promulga a legislação universal. A vontade de todo o ser racional deve pois ser concebida como uma vontade legisladora universal. Assim se compreende o interesse que nos dedicamos à lei na qual reencontramos de uma certa maneira o nosso eu. Como seres racionais, nós promulgamos uma legislação à qual estamos sujeitos, como seres racionais e sensíveis ao mesmo tempo, isto é, como seres limitados. Embora admitindo, tal como outros moralistas antes dele, que o homem está ligado pelo dever a uma lei, Kant sublinha que essa lei, apesar da sua universalidade, brota da minha vontade racional e que a vontade de todo o ser racional deve ser considerada como uma vontade legisladora universal. Ele estabelece assim o princípio fundamental da moralidade, tal como ele a concebe: a autonomia. Esse princípio estabelece entre a pessoa e a lei moral uma relação análogo à que Rousseau punha na ordem social; a obediência à lei justifica-se pela faculdade de ser o seu autor; longe de destruir a liberdade, ela supõe-na e manifesta-a." A obediência à lei que a nós próprios prescrevemos é liberdade", proclama Rousseau no Contrato Social, Livro I, cap.VIII. Rouseau foi um dos autores que mais influenciaram Kant.
Segundo Kant, a noção de autonomia é a única que pode definir o verdadeiro princípio da vida moral. Se se procura a origem da lei no objecto que se visa, ou mesmo se al for posta em Deus, cai-se na heteronomia; foi por terem recorrido a essa explicação que as filosofias morais do passado fracassaram, segundo kant.

3 - Os Fundamentos dos fundamentos morais kantianos

Dando por terminada a análise dos fundamentos da moralidade kantiana cumpre-me levantar a seguinte questão: Quais os fundamentos dos fundamentos morais kantianos? Kant fala-nos na lei moral presente em todos os homens, no imperativo categórico, mas nós perguntamos: o que há por detrás das estruturas essenciais da vida moral como Kant no-las apresenta? um kantiano ou o próprio Kant dar-nos-iam uma resposta rápida: a resposta seria nada! O que se fez - diria Kant - foi isolar os elementos simples, a priori, elementos esses que são as condições necessárias da vida moral e sem as quais nem sequer se poderia falar em vida moral. Mas o que nós respondemos é que esse apriorismo em relação à vida moral não nos parece argumentação convincente. Em verdade e para especificarmos por um lado e para generalizarmos por outro o nosso pensamento, entendemos que toda a ética está necessariamente submetida às condições da vida social, condições essas que são bem determinadas e que vão influenciar as relações dos grupos sociais nos diversos domínios da realidade. Voltando a Kant, estaremos a defender que a sua ética está submetida às condições da sua vida social e aos interesses do grupo social a que Kant pertence ou a que se dirige quando escreve, mesmo de um modo inconsciente. Kant é um filósofo do século XVIII e apesar de não irmos analisar a vida política, social e económica da Alemanha dessa época, pois iríamos para paragens muito longínquas, algumas considerações será importante fazer.
O século XVIII é o século por excelência da burguesia, economicamente é a classe social dominante, está pronta para tomar o poder político, em todas as convulsões sociais ela está implicada pelo menos indirectamente, é à burguesia que devemos o desencadear da revolução industrial que está em curso. Resumindo, a burguesia é a classe social revolucionária deste século em todos os domínios. Sendo uma classe emancipada, necessita dum pensamento que lhe sirva de substracto ideológico. Esse pensamento terá que defender acerrimamente a liberdade individual, a valorização do ser racional e o seu predomínio em relação a tudo o que o rodeia: O Estado, a Igreja, todas as outras instituições, até o próprio Deus. A filosofia kantiana responde a estes anseios. Se Kant é o filósofo oficial da burguesia é assunto que não iremos tratar, pois haveria sempre hipótese de arranjarmos argumentos a favor e contra. Mas o que não podemos deixar de notar é a complementaridade entre a filosofia de Kant e os ideais burgueses.
Para provar que não sou o único a defender esta posição quero aqui lembrar para terminar, um texto de Ferdinand Alquié da sua obra La Morale de Kant. É uma crítica de Hegel a kant que Alquié apresenta:
"Si on me confie un dépôt, je ne peux pas vouloir universaliser la maxime selon laquelle je puis me dispenser de le restituer. Par cet exemple, il est donc montré que la maxime "Il est permis à chacun de nier le dépôt qui lui a été confié" se s détruit elle-même comme loi, et ne peut pas être universalisée comme loi de la nature, puisque l'universalisation d'une telle maxime ferait qu'il n'y aurait plus de dépôts. Si je déclare en effect qu'on n'est pas tenu de rendre un dépôt, il n'y a plus de dépôts.
Or précisement, dit Hegel, la maxime de ne pas restituer un dépôt n'est contradictoire que dans la mesure où il existe des dépots. Mais ou peut très bien concevoir une nature où il n'y aurait pas de dépôts. Dés lors, si je conçois une nature où il n'y a pas de dépôts, toute contracdition disparaît. Que vaut alors la règle de Kant?
Ceci revient à dire, vous le comprenez, que la règle de kant supose l'existence de fait d'une nature où il y a des dépôts, où il y a une propriété individuelle et privée, mais que, si on nie cette nature la contradiction disparaît d'elle-même.
Or, s'il en était ainsi, ce serait extrêmement grave, puisque toute la force du raisonnement de Kant est précisément qu'il procède toujours d'une manière rationnelle a priori, et qu'il n'emprute rien à ce qui est empirique." (Sublinhados meus).