REFLEXÕES EM TORNO DE PLATÃO
Platão é grande. E com isto está tudo dito. É inútil insistir sobre a importância da sua obra e sobre a influência que não deixou de exercer. Muitos subscreveriam sem hesitar a afirmação de Cícero que, na sua Républica (livro II, cap. XI), designa Platão como "o maior autor grego, aquele que ninguém supera" ou ainda como observam certos autores, "os outros filósofos pouco mais fizeram do que pôr notas de rodapé nas suas obras".
Platão é grande. Os seus textos em que uma perfeição única da forma se alia a uma profundidade única do pensamento resistiram ao tempo. Não envelheceram. Continuam vivos e Platão morreu há mais de vinte e três séculos. Por isso, é legítimo continuar a estudar Platão e por isso é legítimo apresentar um trabalho. Como diria Camões só espero que as musas para tanto me dêem a necessária inspiração.
Introdução
Platão viveu numa época rica da cultura grega em que se encontravam muitas correntes de opinião. A sua filosofia constitui parte desse espólio. Nela se encontram a influência dos mitos; a religiosidade mística em busca do verdadeiro lugar e papel do homem; as artes e ofícios, que embora não fossem tidos em grande estima estavam presentes em cada canto e desenvolviam-se; as "ciências puras", Matemática e Música, impulsionadas pelos pitagóricos; a Filosofia grega. Um breve apontamento sobre a Filosofia grega revela-nos as influências de Crátilo (aluno de Heraclito), de Parménides e de Pitágoras no pensamento platónico.
Do primeiro reteve a ideia da transformação contínua das coisas(1), da relatividade das sensações e permanência duma unidade por detrás da pluralidade; do segundo, a impossibilidade de sequer definir o não-ser(2) aquilo que não existe; do terceiro, o pensamento matemático(3). De todos eles, recebeu Platão a noção intuitiva de haver algo maior, escondido, velado pelos sentidos. Mas a figura grega que desempenhou um papel determinante no desenvolvimento da filosofia platónica foi Sócrates. Este homem pretendeu fazer da vida humana uma reflexão filosófica. Ele dizia-se como a encarnação da adesão à verdade e à justiça. A Filosofia, para ele, era uma propedêutica que consistia em "abrir" os espíritos para a busca dos valores morais. Com a morte deste homem, Platão ficou definitivamente conquistado para a filosofia. A realidade em que vivia era cercada de vício e corrupção ((4) "...a legislação e a moralidade estavam a tal ponto corrompidas que eu de início me encontrava cheio de ardor para trabalhar no bem público, ao considerar esta situação e ao ver que tudo andava à deriva, acabei por me sentir aturdido...") aliás o mundo grego estava em transformação. Portanto, Platão, procura encontrar uma solução política para os problemas da Grécia: ("todavia não deixava de espiar possíveis sinais de melhoramento nestes acontecimentos e especialmente no regime político... fui então levado... a louvar a verdadeira filosofia e a proclamar que só à sua luz se pode reconhecer onde se encontra a justiça na vida pública e privada...), e é nessa tentativa de solucionar os erros dos governantes, que Platão procura através de uma análise das artes, das ciências, das filosofias existentes, uma verdade que possibilitasse aos homens uma vida melhor.
Capítulo I
A primeira tarefa dos diálogos socráticos, que formam a um tempo a introdução e a primeira parte do platonismo, é a de fazer aparecer a estrutura contraditória das opiniões. Vamos ver, se é isto que se passa no livro I da República.
No livro I, toda a conversa tem lugar no Pireu, na casa de Polemarco. Estão presentes dois irmãos seus, Lísias e Eutidemo, que são aqui figuras mudas e seu pai o idoso Céfalo, que aparece coroado (pois acabara de fazer um sacrifício) sentado em almofadas, com a dignidade que lhe confere uma vida justa. Estão também presentes Carmantidas e Clifonte, figuras desconhecidas, talvez discípulos de Trasimaco, o célebre sofista, que também já se encontrava no grupo. É todo um círculo, a que se juntam Adimanto, irmão de Platão, e Nicerato, filho de Nícias, que juntamente com outros jovens regressados da procissão, foram com Polemarco convidar Sócrates e Glaneon (também irmão de Platão) a permanecer com eles. Temos, portanto, uma galeria de figuras, quase todas conhecidas. Em primeiro plano Sócrates, sem dúvida a pessoa central da discussão dialéctica; Lísias, o estudante de retórica que se conserva silencioso todo o tempo, é uma das figuras maiores da eloquência antiga, que havia de ser modelo dos aprendizes da arte de bem falar. Outra figura célebre é Trasimaco da Calcedónia, um sofista que partilha com Górgias a honra de ter sido criador da prosa artística em Ático. A longa discussão que sustenta o livro I mostra-o o opositor truculento, dotado de uma habilidade dialéctica comparável à dos demais sofistas; e como eles, alheio a qualquer preocupação de conciliar a eloquência com a ética, e inclinado a tirar proveito material do seu ensino.
Não tem passado despercebido aos críticos que, entre estas três figuras, há nada menos de três que acabariam por ser condenados a beber a cicuta, pois tanto Polemarco como Nicerato foram vítimas dos Trinta Tiranos.
No livro I discute-se sobre a justiça. É dada uma primeira definição (a justiça consiste na verdade e em restituir aquilo que se tomou a alguém) definição essa que é rejeitada por Sócrates. Tenta-se uma segunda definição de justiça (consiste em fazer bem aos amigos e mal aos inimigos), definição rejeitada novamente. Dá-se a terceira e última definição de justiça (a justiça não é outra coisa senão a conveniência do mais forte), definição que é rejeitada novamente por Sócrates. Chega-se ao términus do livro I sem saber o que é a justiça e a saber apenas aquilo que ela não é.
Este estilo utilizado por Platão no livro I forma um conjunto ordenado e completo, comparável aos chamados diálogos aporéticos, que se atribuem a primeira fase(5) da obra do filósofo, e cujo esquema é fundamentalmente o mesmo: propõe-se uma definição de uma virtude, que vai sendo substituída por outras, àmedida que Sócrates demonstra a sua insuficiência, de modo que, quando termina a discussão a conclusão é negativa. Assim, o Lisis falha em definir a "amizade", o Carmides a "temperança", o Laques a "coragem", o Eutifron a "piedade". A coragem, a temperança, a piedade formavam com a justiça o grupo das virtudes cardeais. Ora definir a justiça é o que tenta fazer sem o conseguir, o livro I da República. Seria este, portanto, o livro que faltava, para completar o conjunto, pois não é de supor que Platão, que durante o período dos diálogos aporéticos investigou todas as virtudes, omitisse esta.
Quanto à nossa maneira de ver, o livro I teria sido feito à parte dos restantes livros da República e mais tarde adaptado como primeiro da obra (República). Isto porque é do conhecimento geral que Platão durante toda a sua vida corrigiu os diálogos que tinha escrito. Consta mesmo que quando morreu, estava a estabelecer uma tábua de palavras do livro I da República.
O livro I corresponde a uma parte da obra que, além de ter a finalidade de apresentar as figuras e situar a discussão, fornece o tema de mesma - o que é a justiça - e refuta as definições propostas, a de Céfalo: ("dizer a verdade e restituir o que se tomou" - Rep. 331 b), a de Polemarco ("dar a cada um o que se deve" segundo Simónides - Rep. 331 e), e a de Trasímaco ("o que está no interesse do mais forte" - Rep. 338 c). Nos diálogos de Platão assiste-se ao confronto de opiniões, que têm por objecto despertar a alma para uma inquietação que a levará ao desejo de subir ao topo. Esta ginástica intelectual é um método utilizado para descobrir qualquer coisa (essência) que, apesar de não estar fora de nós(6), permanece adormecida. É por isso que no Teetelo, Sócrates compara a sua arte (maéutica) à da mãe que era parteira. Ele tal como a mãe ao assistir aos partos, não dá nada ao espírito que não estivesse já dentro deles, mas apenas ajuda o espírito a "parir" o que lá tinha...
Numa primeira etapa, para se atingir o conhecimento verdadeiro (que não é mais do que o conhecimento do ser) há um diálogo entre as pessoas em que elas se apercebem da sua ignorância, e que ao mesmo tempo as leva à intuição de algo que existe para além daquilo que então julgavam real. Normalmente, chama-se a esta operação uma aporia. Nos diálogos platónicos (repetimos mais uma vez) ela conduz a um resultado negativo. Por exemplo, no Laeques, Sócrates propõe-se a analisar, não a virtude em geral, mas uma das suas partes, quer dizer: a coragem. Laeques dá a primeira definição ("... quando um homem faz frente a um inimigo, guardando a sua posição, sem fugir, é certo que este homem é corajoso".) Como Laeques tivesse definido a coragem, como é entendida na Grécia, Sócrates diz-lhe pretender saber o que é a coragem em geral, não só para guerreiros, mas também para os que combatem no mar, e também para aqueles que lutam contra a doença, a pobreza, para aqueles que resistem aos desejos e às paixões. Então, Laeques é forçado a dar uma nova definição de coragem ("... É uma espécie de firmeza de alma ..."). Laques não consegue definir a coragem e confessa a sua impotência. Então Sócrates convida Nícias a tomar a palavra e a livrá-los do embaraço que sentem. Nícias dá uma definição de coragem: "a coragem é a ciência do que se deve temer a daquilo que não se deve temer." Sócrates demonstra a Nícias que ele não estava a definir a coragem, mas sim, a virtude em geral. O diálogo acaba sem se ter definido o que era a coragem, e com o convite feito por Lísimaco a Sócrates de ir a sua casa na manhã seguinte.
No Lisis é utilizado o mesmo processo. Discute-se sobre a amizade, sem se chegar a nenhuma conclusão. O mesmo se passa em relação aos outros diálogos em que ele aborda o problema da virtude.
Capítulo II
Os diálogos platónicos não podem ser desligados do tempo que os viu nascer; a conjectura histórica é neles determinante. Portanto, começaremos por falar das razões que levam o filósofo a não dizer tudo o que pretende, mas a dar a entender ao leitor o que queria dizer. Diz Hegel: "a filosofia ... não é feita pelo vulgo nem é capaz de se acomodar ao vulgo ...") Vamos ver até que ponto esta afirmação se relaciona com os diálogos de Platão.
Tudo nos leva a crer através de alguns filósofos estudados, e pela leitura do próprio Platão (República) que a filosofia do séc. VI-IV a.c. era própria de uma elite. Por alguma razão Heraclito depositou a sua obra-prima no santuário de Delfos, e não foi por acaso que Platão distinguiu duas classes de pessoas (o vulgo e os eleitos - que eram os filósofos) nem que escolheu Sócrates como porta-voz das suas palavras (algumas vezes). Na verdade, tudo isto nos leva a pensar que a filosofia sempre ocupou um lugar à parte. Fosse por complexo de superioridade, da parte dos filósofos, fosse por desprezo das pessoas em geral (já em Tales o filósofo era o bobo que ao contemplar os astros caía em poços...), o facto é que sempre existiu um abismo entre o pensamento dito filosófico e o pensamento vulgar.
Até agora temos estado a alertar o leitor para a existência de um vácuo entre a atitude do homem comum e o filósofo. A que se deve este vácuo? Uma das causas que motiva o filósofo a não utilizar uma linguagem explícita, deve-se ao ódio real de que a filosofia é objecto. Comprovamos aquilo que afirmamos através dos escritos que nos falam da morte de Sócrates, e do processo que a desencadeou (Fédon, Apologia, onde se fala abertamente do assunto, República onde se dá a entender a raiva que Sócrates inspirava - através da sua ironia - aos interlocutores). Portanto há uma razão para o filósofo usar de grande prudência -o medo. À parte o medo, temos que entrar com o conceito de filósofo, para encontrarmos mais causas que justifiquem a afirmação "a arte do filósofo é mais esconder do que dizer..."
Ser filósofo é (entre outras coisas) saber quando, como, a quem, etc. falar de filosofia. Ora por aqui deduzimos que o medo da perseguição das autoridades não era a causa da linguagem velada do filósofo, mas a crença numa hierarquia dos espíritos. (Talvez fosse mesmo este elitismo segregacionista a principal pedra de toque na elaboração de um texto de filosofia - fosse ele apresentado num manual de filosofia, ou num diálogo, como é o caso de Platão.) Portanto, seguindo esta hipótese da crença numa hierarquia de espíritos, o pior que poderia acontecer à filosofia não seria a morte física do filósofo (pois Sócrates demonstrou-nos que a filosofia persiste para além da morte, e para além de tudo o que é material e terreno), mas uma má assimilação de uma doutrina filosófica.
A filosofia tem uma dignidade que lhe é própria e o filósofo não pode correr o risco de deixar alguém profanar essa dignidade. Assim "a dissimulação do filósofo tem por princípio protegê-lo da multidão e de proteger a multidão da filosofia". E porquê? Porque "sendo a filosofia ... a tentativa de substituir a opinião acerca de "todas as coisas" e porque a opinião é um elemento da sociedade, então a tarefa do filósofo será a de colocar a sociedade em perigo, pois o objecto da filosofia (como já afirmamos anteriormente) é dissolver o elemento onde respira a sociedade - queremos dizer: a opinião. Partindo disto e porque o filósofo respeita a ordem estabelecida (se bem que discorde dela) não há outra forma de preservar as opiniões sobre as quais a sociedade repousa, senão a de revelarem aquilo que consideram a verdade apenas a uma minoria. Assim a filosofia assume-se (mesmo que a levem a isso as belas razões que atrás apontamos), a si mesma, aristocrática e esotérica. Quanto a isto ninguém põe objecções, de facto todos reconhecem o carácter esotérico e aristocrático da filosofia. Mas as opiniões divergem quando se trata de afirmar o porquê do esoterismo.
Parece não haver dúvidas quanto a isto: os diálogos de Platão não dizem tudo. Então em Platão considerar-se-ia esotérico tudo o que não é dito. Pois o esotérico deixa de o ser no momento em que é dito.
Entretanto há outra tese que afirma: o esotérico pode ser dito enquanto tal, pode-se manifestar e conservar o seu caracter esotérico. Portanto o esoterismo seria uma manifestação no estilo da obra em que teve lugar.
(Para justificar esta tese o autor alude ao neoplatonismo e diz: "ele é fechado (obscuro) mesmo depois de manifestado ou (...) mesmo na sua manifestação (...) ela resta indizível, pensado e irreconhecível. Quando não se preocupa em exprimir o inexprimível nada se perde. O inexprimível é ao contrário -inexprimivelmente - contido no exprimido).
Portanto, (e, Não confundindo o esotérico com o tido) o esotérico em Platão deve-se ao uso dum certo estilo. Assim é o próprio texto que selecciona o leitor. Portanto temos a certeza de que os diálogos de Platão não dizem tudo. Não seria necessário tanto palavreado para se ter a certeza da veracidade da nossa afirmação. Pois toda a gente sabe que a palavra é incapaz de reproduzir tudo o que uma pessoa pensa(7). Uma das razões que impedem os diálogos de dizerem tudo é o facto de serem diálogos. Isto porque não nos aparece nos diálogos platónicos, a pessoa de Platão a falar. Não, Platão não fala jamais em nome próprio mas em nome de Sócrates.
Assim que direito temos nós de atribuir uma paternidade platónica aos diálogos, se o próprio Platão recusou a responsabilidade dos seus escritos?
Agora iremos falar daquilo que caracteriza um diálogo, para depois falarmos dos chamados "escritos de juventude" de Platão. É típico do diálogo (como se depreende da leitura de V. Goldschmidt: Les Dialogues de Platon) fixar um assunto de estudo, não "por interesse do problema dado mas para se tornar mais inventivo". Parece que o diálogo pretende mais formar do que informar. Dizemos "parece" porque ainda não analisámos nenhum dos diálogos de Platão, que nos permita a fundamentação do que afirmamos (fazendo nossas como está a ser visível, as palavras de alguém). Nós lá chegaremos. Entretanto, continuaremos a falar em termos abstractos, se é este o nome que se deve dar aquilo que estamos a fazer. Portanto, o diálogo longe de ser uma exposição dogmática é a ilustração viva dum método que procura e que, frequentemente se encontra. Na sua composição, o diálogo articula-se segundo a progressão deste método e, impulsiona o seu desenvolvimento. O diálogo tem um método e é ele quem determina a sua estrutura filosófica. Assim, em Platão, é pelo método dialéctico, que se explica (e tem desenvolvimento) a sua filosofia. Aliás Platão di-lo expressamente na República.
Nos diálogos de Platão demo-nos conta de que ele é um homem empenhado na busca da verdade. Essa verdade é uma realidade para ele e, para nos demonstrar que é dela que se deve partir, (em todas as circunstâncias) ele recorre a imagens. Um paradoxo (pensa um leitor desatento). Uma tentativa de síntese do devir heraclitiano e da imutabilidade parmediana, com algumas influências orfico-pitagóricas (diríamos nós presunçosamente...).
Há portanto, em Platão a obsessão da Forma, da Ideia, da Essência, da Verdade. Obsessão que o deixará de o ser quando através da sua iniciação, (não senhor! não há aqui influências nem qualquer relação com as iniciações das seitas órficas e pitagóricas) o homem for capaz de contemplar o Ser. Até aqui nada de especial. Contudo, e o mais curioso (não! também aqui não há influências de Heraclito) é que só através do mundo sensível (que se apresenta mesmo às árvores - entenda-se a metáfora - como não coerente, não concordante consigo próprio...) se pode atingir o dito inteligível. É (em Platão) pela constatação das contradições (que não se encontram nas coisas - por exemplo quando temos de saber, o que é um dedo - mas sim nas suas qualidades - o que é uma coisa grande ou pequena) que surge a filosofia. (Não faríamos filosofia se o mundo sensível fosse transparente às nossas sensações, se ele se comportasse todos os dias da mesma maneira, e se todos os objectos que o compõem consentissem em ficar o que parecem, e a não nos espantar jamais...). Se estivemos aqui a falar destas coisas (que nos parecem mais próprias de uma filosofia do conhecimento) é apenas, porque elas nos explicam o porquê de alguns dos diálogos de Platão se apresentarem como ensaios de definição. Assim, iremos tratar dos diálogos ditos "de juventude", "aporéticos" ou como alguém os engloba num todo chamando-lhes (sempre que se fala deles): Na Procura dos Valores. Quase não seria necessário dizermos os nomes dos diálogos de que iremos tratar, mas achamos melhor especificarmos as coisas: Eutifron, Carmides, Laques, Hípias Merior e Lisis. Estes cinco diálogos aproximam-se pelos seus temas, e não acreditamos que isso seja coincidência. É por isso que alguém os engloba sob o título: Na Procura dos Valores. O que não nos impede de observar: pois bem a República também procura definir um Valor... Mas, a pessoa que os reuniu sob esse título diz-nos: "pois bem, mas a República tem uma estrutura completamente diferente". Defende-se com a estrutura, para logo acrescentar que na determinação dos diálogos em grupos nem só a análise estrutural é correcta. Não! Outros critérios podem ser adoptados mas (lê-se nos "Diálogos de Platão de V. Goldschmidt) jamais são determinantes.
Cada um destes cinco diálogos procura determinar um Valor e, por isso, fornece um número mais ou menos impressionante de definições. Algumas são rejeitadas mal são enunciadas. Outras suscitam uma primeira refutação, e terminam igualmente na condenação. É esta uma das constantes dos diálogos aporéticos: não se diz o que a "coisa" é, mas apenas aquilo que ela não é. Este fenómeno tem o condão de gerar no leitor a confusão. Ora bolas! (diz o leitor embaraçado) em que é que uma definição é mais válida do que outra, se todas são igualmente refutadas? Bom (dizemos-lhe nós) se leres mais atentamente os diálogos verificará que as definições (na sua relação com o objecto) ocupam um lugar determinante no desenvolvimento do processo dialéctico, e que se as inserires no movimento do diálogo verificarás que distingues nelas diferenças de níveis. E esta? Então (com um sorriso paternalista) explicamos ao leitor confuso qual a estrutura dos diálogos. É pois o que iremos fazer.
Em cada diálogo há que distinguir a questão inicial e a questão preliminar. Por exemplo, no "Lisis", Hipotales pergunta como tornar-se amigo de Lisis... (questão inicial). Para responder a estas questões, é preciso, (fá-lo notar Sócrates) preambularmente, perguntar acerca da amizade - o que é a amizade? Portanto, normalmente, a questão inicial tem a função de "despertar a reflexão", e de servir de apoio à procura dialéctica (que só se inicia com o enunciado da questão preliminar). É curioso notar que a questão inicial deixa de interessar aos interlocutores, mal cumpre o seu objectivo.
É com a questão preliminar que se inicia o processo dialéctico. Também podemos esquematizar a segunda parte do diálogo, mas antes disso servir-nos-emos do Laques para ilustrar o que dissemos. Há que definir a coragem (diz Sócrates e inicia-se assim a questão preliminar). Laques dá uma definição: "quando um homem faz frente ao inimigo, guardando a sua posição, sem fugir, é certo que este homem é corajoso". Analisemos esta afirmação. Nela não se define a coragem naquilo que ela tem de essencial (na sua totalidade), mas na sua contingência. Então Sócrates (sem por objecções) pergunta: "é ainda corajoso o soldado que se bate em fuga, conformemente, por exemplo, à táctica de Seytlles?". A que é que assistimos com esta interrogação de Sócrates? Em primeiro lugar damo-nos conta de que a uma imagem da coragem (a apresentada por Laques) sobrepõe-se outra imagem. Só que esta imagem, apresenta-se como uma contra-imagem, ao mesmo tempo que mostra o seu carácter contingente. Pretende Sócrates demonstrar ao interlocutor, que na sua definição não foi dito o essencial.
O que se pretende saber, quando se pergunta - o que é a coragem - é o seu carácter geral - o que é a coragem não só para os guerreiros mas também para os que combatem no mar e também para aqueles que lutam contra a doença, a pobreza, para aqueles que resistem aos desejos e às paixões. Então, Laques dá uma nova definição de coragem: "... é uma espécie de firmeza de alma". Com esta nova definição assiste-se a um fenómeno curioso: o interlocutor deixa de se servir duma imagem e passa a generalizar todas as suas opiniões num todo. Essa generalização pode não estar correcta, mas ela representa já a consciencialização daquilo que se pretende - passar da multiplicidade das imagens, à busca da unidade da Forma. Claro que a procura não acaba aí, pois é preciso relacionar as definições umas com as outras até se atingir o princípio incondicionado (neste caso um Valor - a coragem).
Nos diálogos aporéticos assiste-se pois a uma formação dos espíritos. Formação que os prepara para o acesso ao inteligível. Nenhum destes diálogos dá respostas, mas a sua missão cumpre-se sempre que um interlocutor "salta" da imagem à definição.
Conclusão
Nascido no século V, o de Péricles, que é a Idade das Luzes da Grécia. No seio da desordem e das violências institui-se uma ordem nova, na qual o homem calculador se deseja independente, medido, belo e virtuoso, no seu justo lugar entre os deuses e o animal. Ora esta civilização, que engendra obras-primas, volta-se finalmente contra os homens. No fim do século a derrota de Atenas, a condenação de Sócrates, as guerras que logo continuam, a desmoralização que atinge as cidades, tudo são manifestações deste insucesso.
A obra platónica é primeiro uma meditação sobre este insucesso. Constitui-se, integralmente, no sentido de por em questão não só a democracia e, mais geralmente, a existência política, mas também esta cultura nova que se lançou com impaciência na conquista dos conhecimentos, na procura dos prazeres, no desejo do poder.
Os diálogos platónicos levantam-nos vários problemas (acerca da sua estrutura e composição; acerca daquilo que se atribui a Sócrates(8) e daquilo que se atribui a Platão; acerca da realidade das pessoas que se dizem ser históricas), mas o principal é o da data. As opiniões divergem acerca deste assunto, entretanto, parece não haver dúvidas de que a República pertence à maturidade do escritor (o mesmo se passa com o Fédon e com o Banquete que segundo alguns teria sido feito para comemorar a criação da Academia), que o Ménon representa uma fase de elaboração da Teoria das Ideias, e de que o Carmides, o Laques, o Lisis, o Hipias Maior pertencem à sua juventude.
A República denota preocupação de um homem que sente a impotência do filósofo no quadro do estado existente. E porquê essa preocupação? Porque o estado é injusto. Importa, portanto, reformar o estado para o tornar justo; importa proceder à educação daqueles que deverão assegurar o seu funcionamento. Há que lutar contra os sofistas, que não fazem mais do que explicitar o ponto de vista comum, aquele do homem dominado pelas suas tendências naturais. Há que rebater a fórmula de Protágoras - "o homem é a medida de todas as coisas" e a Verdade que ela propõe (que dá lugar à cultura exclusiva do possível, pois o que conta não é o valor intrínseco do que se diz, mas o triunfo que permite a maneira de o dizer, a habilidade em defender-se) e de educar os espíritos no sentido da filosofia.
Contrariamente à sofística (que impõe convicções aos espíritos que se quer cativar) a Filosofia dispõe os espíritos à procura livre, sem violência, da verdade, pela qual eles se tornam capazes de a atingir desde que a desejem verdadeiramente. Se se conseguiu atingir essa Verdade, nós não sabemos. Uma vez que nos diálogos aporéticos assiste-se apenas à reconversão das pessoas, sem que através dela se atinja outra coisa, senão a da certeza de que há uma unidade subjacente a todas as contradições do Mundo Visível. Portanto os diálogos aporéticos aparecem-nos mais como uma pedagogia que se destina a fazer "parir" os espíritos. Parece-nos que Platão não conseguiu (mesmo nos diálogos da maturidade) mostrar a alguém que tivesse contemplado a Ideia do Bem, através do método dialéctico. Daí que Sócrates no Fédon, morresse com a esperança de a atingir.
É Platão um idealista ou um realista ingénuo? Parece-nos que além de ser ambas as coisas ele é principalmente a ilustração viva dum homem empenhado no saber que lhe dê uma justificação da sua existência.
Notas:
(1) Platão, Crátilo, 218: "Heraclito diz algures que tudo está em mudança e nada permanece parado, e comparando o que existe à corrente de um rio, diz que não se poderia penetrar duas vezes no mesmo rio".
(2) Simplício, Phys., Frag. 8: "De um só caminho nos resta falar: do que é; e neste caminho há indícios de sobra de que o que é, é incriado e indestrutível, porque é completo, inabalável e sem fim... que origem lhe poderás encontrar? ... Nem eu poderei dizer ou pensar, "a partir daquilo que não é", pois não é para ser dito nem pensado o que não é ..."
(3) Os pitagóricos tinham acerca do mundo uma concepção dualista: ao limitado, ao impar, ao perfeito e ao bem, opõe-se o ilimitado, o par, o imperfeito e o mal. Para os pitagóricos, em todo o universo estes antagonismos se equilibram em harmonia. O mundo é harmonia de números. Isto porque o número é o princípio de todas as coisas e porque se identifica com elas. O facto de os pitagóricos não terem feito uma clara distinção entre equações tais como, por um lado "um homem igual a duzentos e cinquenta" e, por outro lado, "a justiça igual a quatro" leva-nos a crer que eles não pensavam que algo pudesse existir sem ser no espaço. De qualquer forma, o que importa salientar é que para os pitagóricos o mundo das formas matemáticas era ideado como uma realidade superior, originária, da qual a realidade empírica veria apenas uma cópia: àquela competia o ser permanente, esta era o mundo do contínuo devir. Para eles "a harmonia é a unificação dos múltiplos e o acordo do discordante".
(4) Platão, Carta VII.
(5) Segundo a concepção genética de K. Fr. Herrmann, há na determinação cronológica dos diálogos platónicos, que atender às alusões a pessoas e a factos da época, e às relações mútuas dos diálogos.
A concepção genética distingue três fases na evolução da filosofia platónica - a socrática, a dialéctica e a construtiva - e divide em quatro grupos os diálogos consoante foram escritos na juventude, num período de transição, na idade madura e na velhice.
Em cada um destes grupos, a ordem cronológica é segundo Webermeg-Proebler como:
I - Juventude: Apologia, Criton, Ion, Protágoras, Lisis, Laques, República (livro I), Carmides e Eutifron.
II - Período de Transição: Gorgias, Menon, Eutidemo, Hípias Maior, Crátilo e Menexeno.
III - Idade Madura: Simposion, Fedon, República e Fedro.
IV - Velhice: Timen, Crítias, Leis, etc.
(6) Platão, Teeteto: "Aceder ao verdadeiro é tomar consciência do que se traz em si e fazê-lo sair de nós... numa actividade difícil comparável a um parto."
(7) Ernest CASSIRER, Linguagem, Mitos e Religião. "É que nenhum processo mental chega a descrever a realidade em si, já que, para poder, de algum modo, descrevê-la tem de socorrer-se do signo, do símbolo. E todo o simbolismo esconde em si o estigma da mediatez, o que obriga o encobrir quando pretende manifestar.
Assim, os sons da linguagem esforçam-se por "expressar" o acontecer subjectivo e objectivo, o mundo "interno" e o "externo"; porém o que captam não é a vida, mas apenas a sua abreviatura morta... O conhecimento teórico (é) meia fantasmagoria (do espírito) pois nem sequer pode reflectir a autêntica natureza das coisas, tal como são; antes se obriga a violentar a sua essência antro de "conceitos".
(8) Nïkos Karantzaki, Carta a Grego - Dionisos Crucificado pág. 311: "Era o Caos que gemia no peito da Grécia. Um deus frenético resistia às danças desvairadas dos homens e das mulheres das montanhas e nas cavernas, e toda a Grécia dançava como uma bacante.
Houve uma luta entre os dois deuses (Apolo e Dionisos) mas nenhum deles venceu o outro, acabaram por se reconciliar e dessa reconciliação nasceu a tragédia...
Mas a tragédia grega desapareceu bruscamente; a crise racional matou-a. Sócrates, com a sua dialéctica, matou a sobriedade apoliana, como matou a embriaguês dionisíaca.
O espírito socrático, isto é, a Ciência, manterá Dionisos perpectuamente agrilhoado? Ou a razão humana acabará por conhecer os seus limites e nós veremos surgir uma outra civilização cujo símbolo seria Sócrates, finalmente a tocar flauta?".
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