Monday, January 29, 2007

OS FUNDAMENTOS DO NACIONAL-SOCIALISMO I V

" Depois de Auschwitz, não é possível a poesia".

Theodor Adorno

O drama de Alfred Rosenberg foi de ter verdadeiramente acreditado no nacional-socialismo. A certeza com a qual se considerava como o exegeta duma nova mensagem terrestre fez dele, entre os dirigentes do NSDAP, um isolado, o "filósofo" dum movimento onde toda a filosofia residia em definitivo no exercício do poder. Rosenberg nunca tomou consciência disso, embora com o passar do tempo se tenha tornado esquecido quando o poder relegou progressivamente para o esquecimento a fachada ideológica. Precisou de bastante tempo antes de compreender que a Weltanschauung pela qual se tinha batido não tinha mais valor prático pelo menos nos centros de decisão. Apesar disso Rosenberg continuou até ao fim a considerar o paraíso da sua fé como a resposta política, social, filosófica e religiosa aos problemas do seu tempo. É difícil analisar as relações entre o nacional-socialismo, considerado no seu conjunto e a sua ideologia. O nacional-socialismo não tendia unicamente ao sucesso e à dominação, inspirando-se em considerações tácticas colocando esta vontade de dominação como absoluto utilizando, segundo as necessidades, fragmentos ideológicos, como o exprimiu a fórmula de "revolução de niilismo".
Mais, não saberíamos ver nele um fenómeno dependente da história das ideias, independente das contingências da técnica do poder. Ele era um e outro: prática do poder e doutrina e mesmo quando Hitler procurou o poder como satisfação pessoal como certos testemunhos mostram, apareceu finalmente como o prisioneiro dos seus preconceitos. O mesmo que o nacional-socialismo tomado como totalidade, não se apropriava de nenhum elemento ideológico sem examinar em que medida lhe permitiria eventualmente aumentar o seu poder.
Assim os dirigentes nacionais-socialistas, na medida em que controlavam, o jogo complexo da ideologia e da táctica do poder, evitaram sempre formular tomadas de posição concretas. À maneira de Goebbels, sublinhavam que era impossível definir o nacional-socialismo na sua totalidade, pois "está submetido a metamorfoses e a flutuações permanentes". Claro, que o nacional-socialismo continha certas concepções de base (como já aliás mencionamos) às quais estava indissoluvelmente ligado, se a conquista ou a fraqueza do poder o exigissem. Este oportunista táctico correspondia numa larga medida, à maneira mais arbitrária de que o movimento no curso da sua ascensão incorporou elementos ideológicos mais diversos e a sua infidelidade a respeito das ideias ou dos princípios não era mais que a expressão exacta da sua táctica: apropriava-se destas ideias com um determinado propósito. O movimento retomou certas concepções racistas, antisemitas, biológicas e pangermanistas ao mesmo tempo que recebeu um certo número de elementos tradicionais, de natureza agrária, militar, pseudo-religiosa. Hitler deveria declarar um dia "colhemos as nossas ideias em todas as moitas encontradas no nosso caminho, e agora não sabemos donde elas vieram".
Logo que tentamos definir as relações entre o nacional-socialismo e a sua ideologia, embatemos contra outros obstáculos: o carácter heterogéneo desta Weltanschauung, o valor inegável de cada um dos elementos como o seu papel mais ou menos grande na técnica do poder. Assim como a falta de unidade e de coerência interna dos dirigentes do regime leva-nos a delimitar o poder de cada um, assim podemos determinar a sua posição em relação a tais postulados ideológicos. A indiferença de Goering em matéria ideológica, por exemplo, distingue-se radicalmente de fidelidade de Rosenberg à Weltanschauung, e os vínculos sentimentais de Himmler para com a ideologia formavam o maior contraste com as ideias do seu subordinado Heydrich. Estamos tentados a concluir que existia tantos nacionais-socialismos como dirigentes.
Assim, quisemos dizer que a ideia de poder e os seus objectivos tomavam progressivamente o lugar número um e aqueles que não demonstravam uma vontade de vencer ou que recusavam colocar-se ao serviço dos objectivos preconizados por Hitler, viam-se rapidamente reduzidos ao isolamento. O regime nacional-socialista aceitava este desprezo cínico da ideologia acompanhada dum desprezo pelo poder. Hitler definiu muito bem estas relações declarando que o nacional-socialismo era "um movimento popular, mas em nenhum caso era um movimento cultural".
Não poderíamos deixar de falar no itinerário intelectual de Rosenberg e de fazer algumas referências à sua célebre obra O Mito do Século XX. Nascido no báltico, filho de pais alemães oriundos da pequena burguesia vai em 1918 para Munique, onde frequenta os meios emigrados russos e assim entra em contacto com a Sociedade Thule, uma associação secreta racista de carácter ocultista que apoiando-se em tradições tenebrosas e "revelações" mesquinhas relativas aos judeus, aos franco-maçons e aos bolchevistas, esforçava-se por pagar um culto fanático da "raça ariana e germânica".
A sociedade devia provisóriamente tornar-se o centro das operações contra-revolucionárias na Baviera. Estes encontros deixaram traços na personalidade de Rosenberg. Algum tempo depois de se encontrar com Dietrich Eckart (o poeta místico de Thule) Rosenberg aderiu ao NSDAP. Os seus ressentimentos de emigrado inspiraram-lhe a teoria do espaço vital, que deveria tornar-se a concepção fundamental da política estrangeira de Hitler. Ao mesmo tempo a influência da Sociedade Thule dava a orientação e o estilo às suas tentativas filosóficas. Verificamo-lo pelos títulos das suas primeiras obras: Vestígios do Judeu na Evolução dos Tempos, O Amoralismo no Talmud (as duas publicadas em 1920), O Crime da Franco Maçonaria (1921), O Pântano ou a Peste na Rússia (1922).
foi um dos principais divulgadores do célebre documento - falso aliás - intitulado Os Protocolos dos Sábios de Sião e a Politica Judia Mundial (1923), que reeditou em 1940. Nos seus escritos, Rosenberg revela-se um homem de cultura média, conhecedor de imensas teorias apócrifas, assim como toda a literatura de propaganda engendrada por um nacionalismo visionário e patológico. Com a sua produção literária aumentando de ano para ano valeu-lhe ser considerado, sem exagero, como o "ideólogo em chefe" do NSDAP. Em 1930, a a obra de Rosenberg atinge o apogeu com a publicação do Mito do Século XX que foi considerada com o Mein Kampf de Hitler a obra mais importante do nacional-socialismo.
Este estudo tinha como objectivo tentar reunir numa filosofia nacional-socialista os elementos discordantes aos quais o movimento devia o seu sucesso. A obra começa pela afirmação pretenciosa que "nos nossos dias a história universal deve ser reescrita"; inspirando-se nas teorias de Houston St.Chamberlain, de Gobineau e dos seus sucessores, assim como do pensamento de Nietzsche (aliás interpretado erroneamente) Rosenberg interpreta a história como uma sucessão de lutas raciais: "uma nova imagem da história da Terra e da Humanidade, de cores vivas e fecunda, começa a revelar-se-nos", declara o preâmbulo, "se reconhecermos que o conflito entre o sangue e o mundo ambiente, entre o sangue e o sangue, constitui o último fenómeno que nos é acessível, para além dele não nos é permitido inquirir nem procurar.
Mas isto conduz-nos imediatamente a reconhecer que o combate do sangue e a mística pressentida na vida não são duas coisas diferentes, mas um só e único fenómeno revestindo formas diversas... Do mesmo modo a histórias das raças é ao mesmo tempo a da natureza e a da mística; inversamente, a história da religião, do sangue é a grande narração universal do progresso e do declínio dos povos, dos seus heróis e pensadores, inventores e artistas.
A obra inteira, na sua inspiração e fervor, fundava-se numa argumentação efectiva deste género, impermeável a toda a refutação lógica e objectiva. A teoria segundo a qual só o homem nórdico é capaz de engendrar civilizações e criar formas políticas, não se apoiava na prova da existência de sangue nórdico nos povos que produziam tais obras, mas ao contrário no método oposto, difícil de discutir: via em todos os povos que manifestaram, como por exemplo os Gregos da Antiguidade, um génio criador de civilização, a prova de como a sua teses de partida estava bem fundada.
Com o seu pessimismo, pensava que o germanismo, este precioso vestígio de sangue nórdico, e por consequência o mundo inteiro, estavam ameaçados de declínio e arrastados para a sua perda. Os "cruzamentos espirituais do nosso povo" apareciam-lhe como os sintomas desta degeneresgência, e lamentava ao mesmo tempo "o desaparecimento da razão próxima da natureza" e de um estadismo nórdico determinado pela vontade, - todas formulações aliás um pouco confusas. Glorificando ou menosprezando segundo critérios cósmicos, proclamava a substituição de concepção do mundo cristão, factor de desagregação, por um mundo de novos valores que pela sua expansão teria necessidade dum novo espaço vital. A acção e o combate substituiriam a piedade e a humanidade, o "belo" se veria oposto ao "bem" e o "amor" apagar-se-ia perante a concepção germânica e viril da "honra": tudo isto, uma vez mais, sob o sinal duma influência ideologia de sangue:
"hoje em dia desperta uma nova fé: o mito do sangue, a confiança segundo a qual podemos, com o sangue, defender também a essência divina do homem. A confiança, encarnada num conhecimento luminoso segundo o qual o sangue nódico representa este mistério que substitui e subjugou os antigos sacramentos."
No fundo, é a sua oposição ao cristianismo e a todas as noções que lhe são aparentadas que dá ao Mito do Século XX a sua fisionomia e a sua fama. Num "catecismo" da Weltanschauung nacional-socialista que resumia em algumas fórmulas concisas as principais ideias da obra, Rosenberg dizia que "o cristianismo foi engrandecido porque os alemães nele acreditaram"; mais isto não atenuava de forma alguma a violência da declaração de guerra. Assim podemos ler:
"Da educação confessional à educação por valores germânicos, há a distância de várias gerações. Representamos a transição de uma a outra. Somos os que ultrapassaram uma época para fundar uma era nova - compreendida no plano religioso. Assumimos um pesado destino, e é por isso que ele é grande...
Destruir imagens! Não importa qual a revolução que se postrou capas. Mas fundar a sua causa sobre o nada sem cortar todas as pontes, eis o que faz a nobreza da era nacional-socialista...
O povo alemão não está atingido pelo pecado original, possui pelo contrário uma nobreza original. A caridade cristã foi substituída pela camaradagem nacional-socialista e germânica - um processo que encontrou a sua expressão simbólica no abandono do rosário em proveito da enxada ao Serviço do Trabalho".
O misticismo apresentado no Mito do Século XX assim como nas outras obras do autor certamente indispuseram os dirigentes nazis, e em todo o caso não reforçou a posição de Rosenberg. Hitler chegou a admitir só ter lido uma pequena parte porque considerou a obra difícil de compreender. Goebbels qualificou-a de "erudição ideológica", os acusados do processo de Nuremberga declaram todos sem excepção nunca terem lido a obra. Apesar de tudo isto a obra conheceu uma tiragem superior a um milhão de exemplares, mas raros foram os leitores...
E quando Rosenberg declarava que centenas de milhar de alemães foram interiormente revolucionados pela obra, esta satisfação falseava antes a necessidade de revalorizar por imaginários triunfos filosóficos uma carreira ilusória.
Seria um erro no nacional-socialismo uma vontade de poder limitada a ela mesma e determinada unicamente pelos desejos individuais dos seus dirigentes: encerra incontestávelmente um elemento utópico. "Deuses e animais, eis como o mundo se nos apresenta hoje em dia" declarou um dia Hitler no curso duma das suas digressões filosóficas. Esta frase lapidar exprime perfeitamente o que foi realmente o nacional-socialismo, para além de toda a mascarada ideológica a toda a táctica política. É sobre ela que se fundam as visões totalitárias do Terceiro Reich, a sua concepção de homem, a sua vontade de dominação racista. E é ela ainda que contém o princípio a partir do qual desenvolveram-se os múltiplos elementos ideológicos. A arrogância, a rigidez, os esforços desesperados do Terceiro Reich, mas ainda as suas convulsões desordenadas e grotescas, a sua brutalidade e finalmente a obstinação patológica que lhes são próprias, tudo isso está contido na fórmula de Hitler: Os homens não são todos iguais; dividem-se em deuses e em animais. Todos o regime totalitário parte duma imagem nova do homem, e é o que o distingue por definição das formas clássicas de despotismo. As suas exigências revolucionárias não visam somente a transformação do estado; Não se contenta só promulgar novas leis, impor uma ordem nova ou formas diferentes de colectividade. O que ele deseja, é um homem novo. No inverso das grandes revoluções do passado, o totalitarismo não pretende mudar as coisas, mas os seres, não as estruturas, mas a própria vida: é precisamente por isso que ele é "totalitário".
Nada nos mostra melhor o carácter "totalitário", no sentido estrito do termo, do Terceiro Reich, que o domínio que exerceu em todos os escalões da vida social, para criar o novo tipo de homem cuja educação devia ser, no espírito dos nazis, a tarefa do século XX. O próprio Hitler identificou este projecto com as suas aspirações ao poder. Declarou com efeito:
"A selecção da nova classe dirigente é o meu combate pelo poder. Todo aquele que a mim adere torna-se um eleito por esta profissão de fé e pela maneira como a proclama. O imenso significado do nosso longo e duro combate pelo poder, é que ele permite a eclosão duma nova geração de senhores, chamados a tomar entre mão não somente os destinos do povo alemão, mas ainda os do mundo inteiro."
É, a nós, que babe evitar que os nazismos que existem no nosso dia a dia, nos dominem "oferecendo-nos", subrepticiamente na maior parte das vezes, esta imagem do novo homem, despida de toda a substância humana que como aprendizes de filósofos devemos preservar.