Thursday, February 08, 2007

GÉNESE E IDEOLOGIA DO ESTADO NOVO

Introdução

Este trabalho representa o fruto de pesquisas levadas ao longo destes últimos meses. É óbvio que não tivemos como objectivo esgotar o tema que propomos tratar por ser demasiadamente vasto por um lado, e porque permanecem pontos obscuros e dúvidas quanto a este período conturbado.
Em todo o caso estamos dispostos a tratar a problemática da "Génese e Ideologia do Estado Novo" não do ponto de vista factual e cronológico como é óbvio, mas do ponto de vista social e político, económico e ideológico.
O explicar o porquê, será para nós fundamental. O trabalho está dividido em quatro partes distintas:

I - O movimento de 26 de Maio de 1926. Derrube da Democracia e implantação da Ditadura Militar.
II - A Ditadura Militar de 1926/33. O advento do Salazarismo e a implantação do Estado Novo.
III - A Constituição de 11 de Abril de 1933. A Ideologia do Estado Novo e a sua prática.
IV - Salazarismo e Nacional-Sindicalismo. A primeira luta interna do Estado Novo.

Estas são as balizas que me propus analisar. Um trabalho desta âmbito é e continuará a ser um trabalho actual e campo de meditação para todos aqueles que colocam os valores da Liberdade acima dos confrontos ideológicos e dos projectos políticos. A assunção de conceitos como os de "interesse nacional" ou de "razão de Estado", e a sua apropriação por uma élite determinada, conduz necessariamente a situações de ruptura ou de totalitarismo.
O povo português ao longo destes difíceis 9 últimos anos já exprimiu bem claramente que depois duma longa ditadura não deseja "transitar" para outra. É necessário ter bem presente que a sociedade só encontra o seu equilíbrio quando é restituído ao Povo o poder de determinar, através de representantes linearmente eleitos, o que é "interesse nacional" ou "razão de Estado".

I - O MOVIMENTO DE 28 DE MAIO DE 1926

Poucos dias depois do 28 de Maio, a 3 de Junho, quando interpelado por um jornalista sobre a eventualidade do estabelecimento em Portugal de uma ditadura do tipo da existente em Espanha com Primo de Rivera, o general Gomes da Costa, ríspida e peremptoriamente: "Não quero a ditadura militar. Quem o disser mente como um cão". Da junta governativa estabelecida inicialmente pelo Exército faziam parte, além de Gomes da Costa, Oscar Carmona, um monárquico discreto, e Mendes Cabeçadas, um herói do 5 de Outubro...
Entretanto, "O Mundo" insuspeito jornal republicano dirigido por Urbano Rodrigues, apelida no próprio dia 28 de Maio o governo derrubado de ditatorial; proclama, no dia 29, em grandes parangonas, "Abaixo a ditadura", referindo-se ao último governo da República; e, no dia 30, escreve "Sejamos patriotas", argumentando que o golpe militar vem "em apoio e reforço dos protestos de todas as oposições republicanas contra o governo ditatorial do Sr. António Maria da Silva."
Ainda no próprio dia 28 de Maio, partidos republicanos promoviam comícios contra a "ditadura" do Partido Democrático no Poder, homenageando figuras de militares com ligações reconhecidas ao movimento, do qual já quase tudo se sabia há muito tempo, excepto, talvez, a data; ao fim do dia, José Domingos dos Santos e os seus correligionários da Esquerda Democrática - o partido situado mais à esquerda no leque republicano - festejavam ruidosamente, no Chiado, a vitória dos tenentes de Maio.
Ao mesmo tempo, um outro boato começava a tomar forma em círculos próximos das altas patentes do Exército: Gomes da Costa não passaria de um "ídolo de pés de barro" e bem cedo veria interrompidos os seus dias de glória...
Toda esta amálgama começou por ser o 28 de Maio de 1926, movimento militar bem acolhido em praticamente todos os sectores da burguesia nacional. Apenas se lhe opuseram firmemente o Partido Democrático (apeado do governo) com o seu jornal O Rebate, o Partido Socialista, o Partido Comunista e a Confederação Geral do Trabalho, central sindical de tendência anarco-sindicalista: pouco depois, juntava-se-lhes a Esquerda Democrática com o jornal A Capital.

1) Antecedentes do 28 de Maio

Com a primeira Guerra Mundial começam a avolumar-se os indícios de desagregação do regime republicano. Passemos rapidamente em revista alguns dos principais:

1.1) Preços e Salários - Logo a partir de 1914, regista-se um aumento em flecha do índice do custo de vida e, com o fim da guerra, assiste-se a uma especulação desenfreada por parte da burguesia portuguesa, com o fim de obstar a uma queda vertical dos preços. No entanto, a acreditar em estudiosos dos movimentos de preços e salários da época, a reacção dos trabalhadores exigindo aumentos salariais impõe-se de tal modo que, em 1919, o poder de compra dos operários parece manter-se praticamente inalterado em relação ao período imediatamente anterior à guerra; mesmo depois, para uma evolução do índice de preços do tipo 1914, os salários da indústria evidenciam uma "elevada sensibilidade" à espiral inflacionista, conseguindo, nalguns casos, acompanhá-la de muito perto.

1.2) Instabilidade Social - Com efeito, 1917 é o ano em que o movimento operário português renasce em força da letargia posterior aos primeiros tempos da República (apesar de que 1911 terá sido o ano com maior número de greves); a luta contra a guerra e a carestia da vida forneceram os principais impulsos para este recrudescimento.
1917 é o ano da "revolução da batata" (assaltos às lojas e armazéns dos intermediários açambarcadores em Lisboa, com barricadas nas ruas e declaração do "estado de sítio"), das greves da construção civil (com lutas de rua e "estado de sítio" em Lisboa), das greves dos correios (cerca de mil prisões) e dos tipógrafos; eclode, ainda, o consulado pré-fascista de Sidónio Pais - a "Republica Nova". Em 1918, a polícia sidonista assassina sete republicanos na Baixa lisboeta ("Leva de Morte"), um atentado põe termo à vida do ditador, e é proclamada uma greve geral revolucionária a 18 de Novembro, cuja adesão é, no entanto, baixa. Em 1919, é a greve geral em Lisboa (por solidariedade para com os trabalhadores da CUF), a greve ferroviária (que dura dois meses), o nascimento da Confederação Geral do Trabalho, central sindical única, com o seu orgão diário A Batalha, que chega a ser o segundo diário português de maior tiragem (20.000 exemplares), facto praticamente único na imprensa operária da Europa de então, e, também, o aparecimento da Federação Maximalista Portuguesa, primeira repercussão institucional da revolução bolchevista e embrião do futuro Partido Comunista Português; paralelamente, manifesta-se, pela primeira vez, a organização terrorista Legião Vermelha. 1920 assiste à greve geral no Porto (iniciada na Carris e terminada com "estado de sítio"), às greves dos metalúrgicos, ferroviários e pedreiros em Lisboa, à invasão policial da sede da C.G.T. e suspensão de A Batalha, e a assaltos aos comerciantes grossistas de Setúbal. 1921 é, - a par das greves nos jornais, atentados terroristas de direita e da Legião Vermelha e a "Noite Sangrenta", em que monárquicos assassinam Machado Santos, Carlos da Maia e António Granjo, republicanos eminentes - o ano da fundação do Partido Comunista Português. E o fluxo prossegue, impetuoso, para só diminuir, paradoxalmente, nas vésperas do 28 de Maio.

1.3) Instabilidade governativa - A República, que durou 16 anos, conheceu 45 governos; e se nos primeiros 8 anos "se ficou por" 15, na última metade contou nada mais, nada menos que o dobro, tendo só os anos de 20/21 atingido o número de 16 governos. Tudo isto de mistura com duas ditaduras (Pimenta de Castro e Sidónio Pais), várias revoltas e tentativas de derrube falhadas mas nunca consequentemente punidas, e uma série de escândalos financeiros pouco claros.

1.4) A Questão dos Tabacos - É um dos aspectos mais obscuros de todo este processo, como já o tinha sido antes com a queda da monarquia.
No fundamental, o governo de António Maria da Silva tinha promulgado uma lei que acabava com o monopólio privado em que os Tabacos tinham existido até então e passava-os para uma "régie" (posse do Estado). A medida não foi bem aceite por grande parte do Parlamento, e o Governo, algum tempo antes do 28 de Maio, alterou a sua decisão, instituindo uma "co-régie" (sistema de exploração misto), mas, mesmo assim, a agitação em torno de tão importante fonte de receitas não cessou.
As posições eram várias: as que defendiam sem "nuances", o monopólio privado (monárquicos quase todos), as que defendiam a "liberdade de exploração", que, na prática, resultava igual (posição de quase todos os republicanos, e não só a sua ala direita, mas até a própria Esquerda Democrática, que, por isso, muito foi criticada pelo próprio Partido Socialista, as que defendiam a posição do Governo (o Partido Democrático e, com reservas, o Partido Socialista e o Partido Comunista), e a C.G.T. que, de um ponto de vista de "autonomia operária", defendia a manutenção integral dos mais de 4000 postos de trabalho envolvidos, denunciando as outras soluções como "manejos da burguesia" e "antioperárias".
Pela sua amplitude, foi uma das questões que mais contribuíram para desprestigiar os últimos anos da administração republicana. No Parlamento, não se discutia outro assunto e não se previa saída para o impasse. Os impostos - O Parlamento iniciara a discussão de uma reforma dos impostos que apontava para um sistema de tributação progressiva, o que desagradava fortemente às classes mais abastadas, como já sucedera, anteriormente, com a Reforma Tributária de 1922.

1.5) A Esquerda Democrática, a Caixa de Conversão e a "Reforma Agrária". - Em 1924/25, o gabinete governamental da Esquerda Democrática, chefiado por José Domingos dos Santos, havia estabelecido uma Caixa do Estado, de auxílio às "pequenas e médias empresas", a Caixa de Conversão, para um período de 5 anos; seria formada por capitais derivados de um aumento de circulação fiduciária (sob a responsabilidade do Parlamento) que seriam eliminados logo que, reembolsados os empresários, retomassem à Caixa. Tal ideia, como é evidente, contrariava a banca, o grande comércio, a lavoura e a indústria. Por outro lado, com o esboço de Reforma Agrária que este governo tentou, a "Proposta de Lei de Reorganização Rural", da autoria do eng. Ezequiel de Campos, os grandes proprietários começaram a não se sentir seguros. A par de uma maciça movimentação popular à volta de este governo, a ala parlamentar direitista conseguiu depor José Domingos dos Santos, cujo grupo passou a constituir uma forte oposição aos governos seguintes. Toda a história gerou enorme confusão.

2) O descrédito da I República

Nunca os governos republicanos (e em particular após a Grande Guerra) conseguiram granjear para a sua actuação uma imagem de resistência e determinação, jamais deixando, pelo contrário, de se fazer sentir, por entre os solavancos e sobressaltos das suas questiúnculas, uma permanente (e incómoda) sensação de atavismo e reversibilidade.
"Era a classe média e o alto funcionalismo público quem mostrava maior descontentamento. Se muito banqueiro e muito capitalista lucraram com a guerra e com as especulações a que se entregavam, se um número considerável de arrivistas pouco escrupulosos se guinda na escala social, constituindo uma classe de novos ricos, em contrapartida o médio comerciante, o alto e médio funcionalismo público (incluindo o oficial do exército e da marinha), o médio proprietário rural e urbano, todos esses, enfim, de que havia saído o esteio de base da República em 1910, se mostravam em 1926 descontentes com o regime"(1)
A República escorregava alegremente para a direita desde que se implantara. Na segunda metade da sua vida, os grandes latifundiários e os nascentes magnates da banca e da indústria seguravam já nas suas mãos boas parcelas das rédeas do poder.
O regime saído de 1910 já não agradava a ninguém - muitos sentiam-se defraudados, outros ainda não saciados. E o desprestígio em que o partidarismo patológico, a instabilidade e a ineficácia tinham lançado a I República tomava aspectos calamitosos favorecendo o crescimento duma frente reaccionária de ataque a este estado de coisas, simbolizado pelo governo fraco de António Maria da Silva.
Acalentava-se em Portugal um cego desejo de mudança; generalizava-se o "... o que for soará..."(2)
Os operários sonhavam com a greve geral revolucionária. a pequena burguesia de tendências ditas progressistas, ao mesmo tempo que promovia comícios contra o perigo do "fascio" (o grupo da Seara Nova esteve na primeira linha), implorava por um governo de salvação nacional... Carente de alternativas, o escol intelectual vacilava. São do próprio Raul Proença as seguintes palavras: "Não era, evidentemente, um golpe de estado o que pedíamos ao Senhor Presidente da República, nem nunca pela cabeça nos poderia ter passado que S. Ex. fizesse sobrepor a sua vontade pessoal às chamadas indicações parlamentares. Não acharíamos bem que, tendo jurado um dia respeitar a Constituição, se apressasse logo no outro a esfarrapá-la cordialmente... S. Ex. não podia nem devia sobrepor-se à vontade parlamentar, mas poderia ter influído de uma maneira decisiva, sem por forma alguma transgredir..." referindo-se depois à gravidade excepcional do momento, conclui pela "...urgência cada vez maior de um Governo que não precisasse de enviar bilhetes amorosos às guarnições revoltadas, ... de um governo que fizesse esta coisa milagrosa e inédita - governar. Estamos ou não num destes momentos em que um chefe de Estado, não podendo ser o ditador que domina pela violência, tem de ser um pouco o apóstolo que vence pela convicção, e deve concentrar todas as suas capacidades numa força irresistível de dialéctica, apresentando-se diante dos políticos como um intérprete da elite da nação ..."(3) E com Raul Proença encontramos Jaime Cortesão e tantos outros; alguns anos passados, António Sérgio lamentava-se ao lembrar: "Graças, sobretudo, aos protestos dos verdadeiros democratas e à atmosfera de hostilidade que desses protestos se havia formado, surgiu a revolta militar de 28 de Maio de 1926."(4) Os sectores mais radicais de direita aclamavam por uma solução "europeia", ou seja, o fascismo, que na altura lançava as suas raízes na Europa, como resposta à agudização extrema dos conflitos de classe do grande período revolucionário dos anos 10 e 20 - revolução bolchevista, comuna de Berlim, comuna de Bela Kun na Hungria, experiências autogestionárias no norte da Itália, movimentação laboral em Espanha e França. Após duas efémeras ditaduras pré-fascistas, campeavam no país os grupos fascizantes: o Integralismo Lusitano, de António Sardinha, Alberto de Monsaraz, Rolão Preto, Hipólito Raposo, Pequito Rebelo, Pedro Teotónio Pereira e Marcelo Caetano; o Centro Académico da Democracia Cristã, nascido em Coimbra, com Salazar e Cerejeira; a União dos Interesses Económicos, de João Pereira da Rosa, Trindade Coelho, Sinel de Cordes, Mozés Amzalek e Cunha Leal; a cruzada Nun'Álvares Pereira, de Martinho Nobre de Mello, o mesmo Trindade Coelho, Alfredo da Silva, Filomeno da Câmara, Hipólito Raposo e Pequito Rebelo (sempre eles) e Gomes da Costa.
Paralelamente, sucediam-se as tentativas de derrube, os chamados "putsches", a última das quais, em Abril de 1925, envolvendo figuras de primeiro plano da já próxima grande solução de Maio - julgados, entre outros pelo general Carmona, cumprem uma pena ligeira, e saem-se airosamente promovidos a heróis nacionais...

3) A posição da burguesia

Para o todo da burguesia portuguesa sempre se frustrara, na monarquia ou na república, o matrimónio, a partilha tácita do aparelho de Estado, entre os antigos detentores do poder (terratenentes) e os novos estratos sociais, cujo percurso histórico tivera início há um século atrás. À burguesia nacional restava, finalmente, uma única saída: a resposta autoritária a todos os níveis (económico, político, etc.). Como antes sucedera com 1820, 1910 passava paulatinamente à História para se fazer substituir por 1926.
Interpretar correctamente o 28 de Maio é delinear a relação histórica entre a necessidade sempre renovada (e agora mais que nunca) de acumulação de capital da nossa burguesia e o fraco estado de desenvolvimento das forças produtivas. O 28 de Maio abre a porta à "ordem" social e à "eficácia" governativa que a República não conseguiu alcançar. Fraco desenvolvimento e forte contestação operária não se conjugam com produção intensa de mais-valia e acumulação de capital. Toda a direita estava de acordo: "... a condição fundamental do trabalho e da prosperidade - a ordem."(5)

4) Cunha Leal: da "bipolarização" do golpe

Destacado político republicano, fogoso dirigente da União Liberal Republicana, presidente de um dos 45 ministérios com que a República se foi desgovernando, Francisco da Cunha Leal foi um dos principais "engenheiros" da corrente conspirativa que precedeu o 28 de Maio, ambíguo promotor de contactos entre Mendes Cabeçadas, como representante dos revoltosos, e o Presidente da República Bernardino Machado, e entre o mesmo Cabeçadas e o próprio António Maria da Silva (Raul Proença tinha razão quanto aos "bilhetes amorosos"), definia da seguinte maneira as intenções políticas que os republicanos investiriam no 28 de Maio: "a) proporcionar aos partidos republicanos da esquerda, votados ao ostracismo, mas não condenados nem a vexames, nem a perseguições, ocasião para se depurarem e refundirem; b) determinar, na maior escala possível, a aglutinação das forças republicanas da direita, tornando viável, pela proteção decidida da ditadura, a formação, dentro do regime, dum grande partido conservador, e dando deste modo à República o equilíbrio que ela nunca conseguiu alcançar"(6). Sintomático.
Trinta e três anos mais tarde, a táctica é exposta de maneira um pouco diversa: com o "putsche" seriam gerados dois fortes partidos, um conservador e outro socialista, ficando então o Partido Democrático enfraquecido através da destruição da sua máquina eleitoral caciquista.(7)
Como se conseguiria esta "bipolarização política"? O primeiro enunciado parece ainda mais unilateral; de qualquer jeito, que misteriosos processos esconderia a "protecção decidida da ditadura"? E de que miríficas nuvens desceria o forte partido socialista? Nunca chegou a ser esclarecido. Mais propenso à grande tirada demagógica que à humildade rotineira das situações plausíveis (factor aliás, comum a grande parte dos políticos de então, diga-se em abono da verdade), soberanamente indiferente aos perigos que ameaçavam a já de si débil democracia, do seu comportamento na altura o que fica são os discursos intransigentes incitando ao levantamento, fazendo a apologia do golpe, com uma cegueira política apenas possível no autoritarismo ultramontano (que tanto mal tem feito a este país) e no autoconvencimento mais obtuso de quem, para alcançar os desígnios próprios, não hesita em sacrificar os ideais mais fundos de que se diz acérrimo defensor. Brincando com o fogo, provando que os fins não justificam os meios, Cunha Leal estigmatiza bem a falência da estratégia de todos quantos, em nome da salvação (?) da democracia apelam ao concílio antidemocrático com o Exército.
Neste particular, o "sacudir a água do capote" de 1963(7) mais não demonstra senão uma soberba hipocrisia; em 1930 o autor abria um pequeno volume6 com as seguintes palavras: "Não enjeito nenhuma das responsabilidades indirectas que me cabem no advento da ditadura".
Com "lealdade", para ele e para o tal partido conservador, do qual, naturalmente, seria o líder, os militares reservavam outros voos - à altura da prateleira.

5) Três datas a ter em conta: 28 de Maio, 17 de Junho, 9 de Julho

E assim aparece a futuramente denominada Revolução Nacional, originada numa intervenção militar, nem sequer unitária, nem sequer maioritária.
Todos estavam de acordo quanto à necessidade de derrubar, mas nada havia que se parecesse com uma ideologia comum para aquilo que se devia seguir ao acto insurrectional. Aires de Ornelas, chefe da Causa Monárquica: "... depois da vitória, cada um jogasse as cartas de que dispusesse e que ganhasse aquele que possuísse melhores trunfos."(7)
Até ao último momento foi a indecisão, o desentendimento. No início apenas a facção republicana avança; mesmo assim, o seu chefe o comandante Cabeçadas, é preso em Santarém onde falha nas suas tentativas de aliciamento.
Não é o Exército que se ergue num gesto redentor de massiva entrega patriótica, como anos depois se propagandeou, mas, mais prosaico, é uma parte restrita que se decide a arrancar, perante a passividade da grande massa.
Gomes da Costa, veterano da Flandres, só é definitivamente confirmado como a figura de proa nas antevésperas. O general Alves Roçadas, proposto inicialmente, falecera a 30 de Abril, o que constitui um duro revés para a linha mais conservadora. Gomes da Costa, "catavento" corrupto sempre virado para o lado donde soprasse mais forte a aragem do dinheiro, não era o seu homem de confiança. Apesar de tudo, e para evitar maiores delongas (em dada altura a confusão era tal que se falava em três "putsches" simultâneos) acaba por ser escolhido; o Exército pose, enfim, avançar para a sua "curta marcha sobre Lisboa".
Do golpe militar sai inicialmente um triunvirato constituído por Gomes da Costa, Mendes Cabeçadas e Armando Gama Ochôa, figura de grande prestígio entre os militares. A 30 de Maio é formado o primeiro governo da ditadura militar, chefiado por Cabeçadas, em quem o último Presidente da República, Bernardino Machado, diz confiar; esse governo apenas começa a funcionar, e incompleto a 3 de Junho. Dele faz parte, na pasta das Finanças (após várias recusas sob pretexto de doença) Oliveira Salazar; a sua passagem pelo governo é meteórica: toma posse a 12 de Junho, sai 5 dias depois, a 17. Também no início foi escolhido para a Agricultura, Ezequiel de Campos mas, rapidamente contestado, não chegou a tomar posse... Era, aliás, intuito de Mendes Cabeçadas constituir um governo técnico, extrapartidário, de salvação da República, segundo as suas próprias palavras; estas boas intenções levaram-no a manter-se no governo pouco mais de 15 atribulados dias. A 17 de Junho, o comandante e o seu governo são destituídos por novo golpe de Gomes da Costa, que forma novo gabinete; Salazar solidariza-se com o chefe deposto... e volta para Coimbra. Tempo antes, a 3 de Junho, lia-se no "Primeiro de Janeiro", do Porto, que Gomes da Costa queria a ditadura militar ao contrário de Cabeçadas... O primeiro acusava este de contemporizar com os políticos ("instituição" caída em desgraça) e não dissolver o Parlamento ("instituição" no mesmo estado).
Acerca do 17 de Junho escreveu o coronel A. Ribeiro de Carvalho, velho republicano: "Os elementos reaccionários que tinham ficado de fora da revolução, aproveitando-se da irresolução em que se debatia o comandante Cabeçadas, resolveram intervir, agrupando-se nessa primeira eliminatória por trás do general Gomes da Costa, para empalmarem o movimento e conseguirem pela traição e pela intriga o que não tinham podido obter em 18 de Abril (1925) pelas armas".(8) Por fim, a 9 de Julho, Gomes da Costa e o seu governo são "baldeados" por novo golpe, desta vez de Óscar Fragoso Carmona e Sinel de Cordes.
A demissão forçada de Carmona e Gama Ochôa dos cargos que ocupavam no governo, dias antes, vai servir de causa próxima para este golpe, mas a sua razão é muito mais profunda. Lembre-se que Sinal de Cordes e Carmona são militares monárquicos, que o primeiro foi sempre a eminência parda dos "putsches abrilista", e representava no 28 de Maio a ala mais fascista do Exército, a que mais afanosamente vinha preparando o golpe reaccionário.
Cabe referir, como curiosidade não destituída de significado, que Gomes da Costa, ao ser deportado para os Açores, já não transmite a ninguém os poderes presidenciais que Bernardino Machado legara a Mendes Cabeçadas, e que este, por sua vez, lhe havia cedido; é o fim das preocupações com a legalidade constitucional.
Bem evidente quanto ao "novo" rumo que tomava o movimento militar era um artigo do jornal "Os Radicais", do Partido Radical Republicano; ao qual pertencia Gomes da Costa, que afirmava, em 30 de Junho, que o movimento era de todos (radicais, monárquicos e sidonistas) e que "não havia direito" que, sendo os radicais os mais activos na sua preparação, aparecessem agora os sidonistas a quererem tomar conta exclusiva dele.
Se é verdade que o estabelecimento da ditadura fascistas só se fará de modo definitivo nos anos 30 com Salazar (sem esquecer 1928) o ponto-charneira é aqui: a névoa envolvendo o 28 de Maio começa a dissipar-se, as forças direitistas consolidam-se no poder, o andamento torna-se irreversível. A ditadura parte à procura do seu ditador.



6) Da resistência operária

Não devemos esquecer que a luta contra a ditadura, ainda que desorganizada e com muito poucos resultados práticos, começou no próprio dia em que esta saiu à rua.
O Partido Comunista Português realizava, nessa altura, o seu segundo Congresso.
Desesperadamente, é lançado um apelo à Confederação Geral do Trabalho para formação imediata de uma frente única operária, que não surtiu os efeitos desejáveis. Depois de algumas hesitações o Comité Confederal da C.G.T. aceita a aliança táctica e a 1 de Junho lança a palavra de ordem de "greve geral revolucionária em todo o país". A sublevação quase não se faz sentir; apenas em Évora os trabalhadores rurais se manifestam em peso. Um fracasso; interrompida a 8, retomada a 17, é, por fim, suspensa a 19. Também por essa altura se cria um froucho Comité de Defesa Proletária.
Nunca, antes do 28 de Maio, apesar do espectro da conjura ser bem legível e das campanhas de esclarecimento antifascista levadas a efeito, a C.G.T. e o PCP lograram unir-se contra a ameaça crescente; agora era tarde de mais - a via estava traçada, ninguém conseguiria travar o arbítrio militarista. A repressão fascista não tardaria.
Logo em 1927 dá-se a primeira tentativa democrática de derrube; o seu fracasso é o primeiro de uma série (os "putsches do reviralho", como se dizia na gíria oposicionista) que se prolongou por quase 50 anos.

7) Défice e empréstimo Externo (9)

"E dir-se-ia que o perfil de o Dr. Oliveira Salazar se perdera na bruma como o Desejado, quando uma onda da Revolução ainda em movimento o trouxe de novo ao Terreiro do Paço, ao Ministério das Finanças".
Corriam os anos de 1927/28 e a ditadura estava em apuros. Após a sucedida política de saneamento financeiro de Marques Guedes, o último Ministro das Finanças da República, reduzindo o Défice do Orçamento Geral do Estado para valor já não atingidos desde o princípio da guerra (o que lhe valeu a aprovação do próprio Salazar que, a manter-se aquela política, previa a anulação total do Défice em 2 anos) a ditadura apresenta as suas primeiras Contas do Estado. Resultado: Saldo negativo de perto de 700 mil contos (à altura do 28 de Maio era de cerca de 83 mil contos). O Ministro das Finanças da ditadura, o próprio Sinel de Cordes, através de uma política ruinosa de aumentos de despesas e elevados empréstimos e financiamentos a Bancos e Sociedades falidas sobretudo das Colónias repunha na ordem do dia - e de que maneira - o problema do desequilíbrio orçamental.
De facto o problema financeiro era o calcanhar de Aquiles da nova situação política; para Sinel de Cordes apenas uma solução se mostrava viável - recorrer a um forte empréstimo externo.
Uma vez divulgado, o projecto do Ministro imediatamente se transformou em problema nacional, suscitando acesa polémica, radicalizando-se as opiniões prós ou contra, inclusive, entre os Situacionistas.
Gorada a primeira tentativa de obtenção de empréstimo junto de grupos financeiros internacionais (as condições impostas eram muito duras, consistindo, ora na conjugação do empréstimo com o Monopólio dos Tabacos, ora no controlo das próprias Contas do Estado) e dificilmente superada uma crise surgida a meio do ano, quando, na ausência de fundos para proceder aos pagamentos do funcionalismo público houve que fazer o desconto de um bilhete de Tesouro do Montepio Geral, Sinel de Cordes joga o seu último trunfo: Contrair um empréstimo de 12 milhões de libras, a negociar com a própria Sociedade das Nações.
Cada vez mais se extremavam as posições. Os políticos democráticos desenvolviam uma intensa campanha contra o empréstimo, dentro e fora do País; a recém formada Liga de Defesa da República, mais conhecida por liga de Paris cuja junta Directiva era formada pelos exilados Afonso Costa, Álvaro de Castro, José Domingos dos Santos, António Sérgio e Jaime Cortesão, envia numerosas cartas, manifestos e exposições a Genebra, sede da Sociedade das Nações, aproveitando a audiência que políticos como António Costa que havia sido presidente da sua Assembleia Geral, detinham ainda nesse organismo internacional.
Em paralelo, de 30 de Novembro de 1927 a 13 de Abril de 1928, surge no jornal Católico "novidades" um conjunto de artigos versando os temas Défice e empréstimo externo, com uma crítica radical da actuação de Sinel de Cordes, causando enorme impacto na opinião pública e em todos os quadrantes políticos; o seu autor - Salazar.
Começando pela análise minuciosa das Contas do Estado negando qualquer validade à operação Empréstimo Externo, expondo com clareza os princípios que considera basilares para uma política financeira equilibrada - Agravamento Tributário, Sistemática restrição de autorizações para gastar, e actuação ditatorial do Ministro das Finanças quanto ao total das despesas dos outros Ministérios, - termina com uma apreciação demolidora da política até então seguida.
A imagem criada ao longo de quase meio ano começa a sortir o efeito desejado; aos olhos de muitos as soluções do professor de Coimbra representam-se já como evidentes e, mais que necessárias, inevitáveis. Os próprios Republicanos são tentados: por exemplo, Mário de Azevedo Gomes na "Seara Nova" em 9 de Fevereiro de 1928, e a própria liga de Paris numa das suas posições à sociedade das nações em Dezembro de 1927, utilizam os artigos do "Novidades".
Entretanto, a 9 de Março de 1928 são conhecidas as condições da Sociedade das Nações para a conseção do empréstimo: 1º Criação de um Agente de Ligação junto do Governo Português com funções de controlo; 2º A faculdade de Comité financeiro enviar a Portugal no caso do Governo deixar de cumprir o protócolo, uma comissão financeira de três membros para administrar as receitas consignadas ao serviço do empréstimo.
As clausulas são recusadas pelo Governo Português que as considera "humilhantes" e lesivas do "brio Nacional" - num dos seus últimos artigos, ao tomar conhecimento da resolução, Salazar não resiste a escrever "... a questão de Genebra não podia naturalmente correr de modo diverso do que correu". Aos olhos públicos a sua infalibilidade transforma-se em fatalismo. E a ditadura continuava em apuros...

8) A política de Salazar

Em Abril os pormenores estão completos e o quadro torna-se revelador: a 9 de Março o governo comunica as condições em que o empréstimo; a 25 de Março Carmona faz-se eleger Presidente da República; a 18 de Abril o coronel Vicente de Freitas é nomeado presidente do ministério, acumulando interinamente a pasta das finanças; a 25 de Abril Salazar deixa Coimbra para sempre e chega a Lisboa, à estação do Rossio, onde é aguardado pelo chefe do Gabinete, e pelo seu jovem ministro da Instrução Pública, eng. Duarte Pacheco, que a instâncias suas fora dias antes a Coimbra convencer o difícil catedrático a aceitar a pasta das Finanças, incumbido de o trazer nem que fosse de rastos. A governação pública da ditadura ajoelhava, aos pés de quem era a sua última e única esperança.
Dois dias depois, Salazar toma posse enunciando os pontos fundamentais do seu "método rígido". Principalmente: "a) Que cada ministério se compromete a limitar e a organizar os seus serviços dentro da verba global que lhes seja atribuída pelo Ministério das Finanças, b) Que se as medidas tomadas pelos vários ministérios, com repercussão directa nas receitas ou despesas do Estado, serão previamente discutidas e ajustadas com o Ministério das Finanças; c) Que o Ministério das Finanças pode opor o seu veto a todos os aumentos de despesa corrente ou ordinária, e às despesas de fomento para que se não realizem as operações de crédito indispensáveis."(5)
Sublinhando a "perfeita unanimidade de vistas" do Conselho de Ministros a este respeito, afirma: "Sei muito bem o que quero e para onde vou, mas não se me exija que chegue ao fim em poucos meses. No mais, que o país estude, represente, reclame, discuta, mas que obedeça quando se chegar a altura de mandar"(5)
A aceitação do ultimato dos plenos poderes representa o princípio do fim da ditadura militar e o primeiro, e firme, passo da ditadura salazarista.
Com a apresentação do orçamento de 1928/29 prevendo um saldo positivo, que obtém, e que era o primeiro havia 15 anos, Salazar torna-se imprescindível; a partir daqui a ditadura tudo sacrificará à sua permanência no poder - até um primeiro-ministro militar (Passos e Sousa, o homem que esmaga a rebelião republicana de 27). Ele governa de facto, e a partir de 5 de Julho de 1932, de direito: é então chamado à Presidência do Concelho, donde não mais sairá. A ditadura encontrou o seu ditador; a sua segura ascensão atingirá a plenitude nos anos 30. De qualquer forma, Salazar não salvou as Finanças que a I República teria arruinado, como mais tarde alardeavam os salazaristas, mas, sim, as Finanças que os dois primeiros anos do 28 de Maio deixaram de rastos.




9) Década de 30: a fascização

Por volta de 1930 um novo termo entra no vocabulário dos portugueses. Estado Novo (tinha sido concebido no tempo de Gomes da Costa por um dos seus lugares-tenentes, João de Almeida, a quem o primeiro encarregara de elaborar um estudo que pudesse servir de base à nova orgânica política do país, nunca chagando a ver a luz do dia e, caindo no esquecimento, apenas agora era difundido); começava a agitar-se os primeiros "slogans" nacionalistas e tornam-se frequentes as referências ao estabelecimento de uma "Nova Ordem".
A questão do regime, em termos duma opção monarquia-república, ultrapassa-se em definitivo com a morte do ex-monarca; ainda nesse ano, em discurso célebre, Salazar refere que Manuel II morria "... quando finalmente se podia considerar preparado para ser rei... "5 e previne os monárquicos da incongruência que seria teimarem em agarrar-se a cadáveres. Afirmando ser necessário governar com a direita e para a direita, assevera que essa marcha não é incompatível com um "regime republicano".
Assiste-se à entrada na cena política da União Nacional onde cabem "todos os portugueses de boa vontade": em 1933 é aprovada a Constituição e dá-se início à fascização dos sindicatos, ao mesmo tempo que é proibido o último partido político português, o Partido Socialista: em 1935 encontram-se extintas todas as restantes associações com actividades mais ou menos políticas. É estabelecida a censura oficial. Institucionaliza-se o monolitismo corporativista à semelhança do que se passa em Itália e na Alemanha.
A luta contra a progressão do fascismo agudiza-se: revoltas militares, revolta da Madeira, inúmeras greves, a greve geral revolucionária de 18 de Janeiro de 1934, o atentado a Salazar em 1937, as tentativas de Frente Popular, o apoio solidário aos revolucionários espanhóis, o robustecimento do Partido Comunista Português são apenas algumas das múltiplas formas que as organizações operárias e republicanas desenvolveram, não quebrando nunca subjugadas perante a ameaça da repressão generalizada que se começa a fazer sentir.
No entanto, o partido único vai reproduzindo os seus braços, as suas "defesas naturais": a PVDE (antecessora da PIDE), a Legião Portuguesa, a Mocidade Portuguesa, a Brigada Naval e, com a Guerra Civil de Espanha, "Os Viriatos", corpo expedicionário de apoio aos franquistas; aparecem as depurações internas eliminando todos os possíveis candidatos a ditador (grupo nacional-sindicalista de Rolão Preto), enquanto se mantém a solidariedade mascarada às potências do Eixo (chega a ser decretado luto nacional pela morte de Hitler.)
Com o fim da década de 30, está praticamente estabelecido o ideário do Estado Novo: a Constituição de 1933, o Estatuto do Trabalho Nacional, a Carta Orgânica do Império, o Acto Colonial, o Programa da União Nacional, os próprios discursos de Salazar e a Concordata com a Igreja.
Da sua imposição prática: "A responsabilidade do governo em relação à política diz respeito a duas pessoas do Gabinete: ao chefe do Governo e ao ministro do Interior".(9) Das advertências severas à "meia dúzia de safanões a tempo" nas "criaturas sinistras" o regime solidifica.

Notas:

(1) Oliveira Marques - História de Portugal, vol II, 2ª edição, Palas, Lisboa, 1976.

(2) Bento Gonçalves - "Palavras Necessárias" in Os Comunistas - 1; A Opinião/Inova, Porto, 1976.

(3) Raul Proença - "A Situação Política" in Seara Nova, 2 de Janeiro de 1926.

(4) António Sérgio - Breve Interpretação da História de Portugal, 6ª edição, Sá da Costa, 1976.

(5) Oliveira Salazar - Discursos, vol I (1928 - 1934).

(6) Cunha Leal - A obra intangível do Dr. Oliveira Salazar, Ed. do Autor, Lisboa, 1930.

(7) Cunha Leal - Cântaro que vai à Fonte. Coisas do tempo presente, ed. do Autor, Lisboa, 1963.

(8) Ribeiro de Carvalho - "Prelúdios de uma Ditadura" cit. in 28 de Maio. Mitos e realidades, de Carlos Ferrão, in Expresso, 2 de Junho de 1973.

(9) António Ferro - Salazar, o Homem e a sua obra, Empresa Nacional de publicidade, Lisboa, 1933.



II - A DITADURA MILITAR 1926/33


1) A Identificação do Movimento com o Dr. Salazar e a Identificação do Dr. Salazar com o Movimento

"Aos políticos é raro, afirma ainda Salazar, em 1966, por ocasião do 40º aniversário do "28 de Maio", que o destino prepare as condições favoráveis de governo; antes são eles que as criam pelo ousar da inteligência e o êxito dos actos praticados."(1)
Quando o prof. Oliveira Salazar foi nomeado para o governo, como ministro as Finanças, evitava cuidadosamente abordar os problemas políticos nas suas intervenções oficiais. Empírico, este jovem professor entre os velhos políticos, este jovem civil entre militares prestigiosos, sente que o momento não chegou; aliás, a que título o faria?
A sua "inteligência" foi, afinal, fazer depender o seu "sucesso" do êxito da obra financeira que empreendia. Este postulado - "prioridade às finanças" - corresponde à primeira fase do processo de personalização do "28 de Maio": o Movimento identifica-se então com o Homem, com o seu êxito financeiro. Mas, à medida que este último se desenha, ele ascende, isso facto, à situação em que são dadas aos homens políticos inteligentes e audaciosos "as condições favoráveis de governo". Inicia-se, então, a segunda fase do processo de personalização: corresponde também a um novo enunciado "a política depois". Se, na primeira fase, o Movimento se identifica com o Dr. Salazar, na segunda, em contrapartida, é o homem que tenta identificar-se com o Movimento, moldando-se às suas arestas para melhor o abraçar.

1.1) A significação do postulado "prioridade às finanças"

É evidente que Salazar estava perfeitamente consciente do sentido da frase pronunciada em 27 de Abril de 1928, quando da sua chegada ao Ministério das Finanças: "Sei muito bem o que quero e para onde vou..."(2)
Aparentemente, é apenas ministro das Finanças; contudo, graças aos plenos poderes que obteve, controla todos os outros ministérios, que não podem tomar a responsabilidade de qualquer despesa sem a sua autorização, que nem sequer podem tomar qualquer medida com incidência directa sobre as receitas ou despesas som o acordo prévio de Salazar.(3)
A importância deste acordo foi considerada tão fundamental pelo actual presidente do Conselho que, quando da elaboração da Constituição de 1933, exigiu a sua transcrição nas próprias disposições constitucionais;(4) aliás, por consequência, Salazar só deixaria a pasta das Finanças em 1940, uma vez a sua autoridade bem estabelecida.
É bem certo que os "plenos poderes" não foram facilmente aceites pelos outros ministros; levaram, segundo o próprio Salazar a sacrificar "outros problemas à resolução do problema financeiro, dominante no actual momento"(5) Salazar exigia assim que o governo renunciasse às reformas económicas e sociais, as únicas susceptíveis, em princípio, de tornar o "Movimento" popular. Que lhe propõe, em compensação, o nono ministro das Finanças? Um programa "impopular". Segundo o próprio Salazar, o equilíbrio financeiro "conquista-se com aumentos de receitas e redução de despesas; exige pois sacrifícios. É ... uma política impopular".(6) Mas o presidente Carmona aceitou as ideias do seu ministro das Finanças: foi dada prioridade à reforma financeira sobre os "outros problemas", isto é, o económico e o social.
Muito rapidamente, mais um passo, e este a longo prazo decisivo, vai ser dado pelo futuro chefe de governo. Depois do seu discurso de 9 de Junho de 1928, dirigido aos oficiais do Exército Português, Salazar interpreta a "ditadura das finanças" que se vira confiar, como a condição sine qua non da sobrevivência do próprio "Movimento". Não se trata apenas de ter prioridade sobre o problema económico e social; trata-se de demonstrar que da reforma financeira depende a resolução de todos os problemas nacionais; este é o problema fundamental; ela deve fornecer o "princípio de accção" do Movimento, a justificação da intervenção do Exército na vida política.
É neste segundo discurso oficial do ministro das Finanças, pronunciado em 9 de Junho de 1928, quando da reunião com os comandantes das Forças Armadas portuguesas que se descobre o verdadeiro significado desse "finanças em primeiro lugar". Salazar constata o estado deplorável em que se encontra o País. Esta situação relaciona-se com "quatro problemas fundamentais: o financeiro, o económico, o social e o político. Pu-los por esta ordem e isso não foi arbitrário da minha parte; esta simples disposição releva uma orientação definida".(7) Como os problemas nacionais não podiam ser todos resolvidos simultaneamente, sem correr o perigo de muito empreender para nada levar a bom êxito, é preciso fazer uma escolha, por difícil que seja. Opta, bem entendido, pela resolução do problema financeiro; este é o núcleo da crise.
A instabilidade monetária, impossível de debelar sem a reforma financeira, é uma das principais causas da crise económica; esta última provoca, necessariamente, perturbações sociais; estas, pelas perturbações ocasionadas, rompem ou impedem que se encontre um equilíbrio político; ora, a estabilidade das instituições do Estado supõe, previamente, a organização das diferentes forças económicas e sociais; por consequência, a reforma financeira reconhece-se como essencial: "será por aqui, afirma Salazar, que deve começar a solução do problema nacional."(8)
As consequências que da opção deste postulado resultam, para o Movimento do 28 de Maio, são bastante significativas para nos pouparem maiores desenvolvimentos. Qual foi, em efeito, o resultado do postulado "prioridade às finanças", qual foi o preço da "estabilidade orçamental" que ele encerra?

1.2) O preço da "estabilidade orçamental"
Parece hoje que o preço da "estabilidade orçamental" foi a identificação do "Movimento de 1926" com o seu ministro das Finanças. A partida foi ganha muito rapidamente no seio do governo. Graças aos plenos poderes que obteve, exerce sobre os seus colegas, paralisados pela "prioridade financeira", um ascendente que não deixará de aumentar. A partir dessa época, tenderá a tornar-se a "alma" do governo, se esquecermos o general Carmona, tornado, alguns meses antes presidente da República. Mas o antigo chefe de Estado apoia o seu ministro...
Se tal era a situação no seio da equipa ministerial, ela não era a mesma face ao tribunal da opinião. A realização do equilíbrio orçamental exigia um aumento dos impostos, processo que nunca é muito popular. Já em 1913 o peso dos impostos pesava fortemente sobre um país essencialmente agrícola. Esse peso aumentou na proporção de 28%. Pode-se adivinhar o vivo descontentamento que estas medidas puderam provocar. "Este foi o momento - escreve A. Ferro num estilo que não tem igual senão a admiração que tem pelo homem -, a hora difícil do Dr. Salazar, como ministro das Finanças. Por toda a parte, nos cafés, nos eléctricos, nas lojas, nos bancos, nas casas burguesas, à hora do jantar, a campanha de alarme, o verdadeiro pânico: "Mas este homem é um louco!... Mas este homem tira-nos a pele!... Mas este homem leva-nos à ruína! O Dr. Salazar teria soçobrado, nesse momento, se tivesse saído da sua terrível e admirável serenidade. Mas não, longe de desanimar, ele continuou, sossegadamente, a somar, a diminuir, a multiplicar e a dividir ..."(9)
Perante esta situação pode-se facilmente imaginar a intensidade da propaganda desencadeada pelo Executivo, presidido pelo futuro marechal Carmona. Esta política financeira ameaçava desencadear uma corrente de opinião desfavorável ao seu governo. A opinião não estava morta, as correntes de 1926 mantinham-se vivas. Uma vez tornada política do governo, a "prioridade financeira" devia tornar-se política da Nação. Era preciso convencer a opinião pública da necessidade de uma tal política, mas não era possível fazê-lo sem pôr em evidência o homem que a representava no seio do governo: o Dr. Salazar. Pouco a pouco, todas as outras "luzes" do Movimento se apagam; uma só, mais viva ainda, atrai a atenção do público. Um longo monólogo começa.
É este espírito severo de economia que se encontra, quando da publicação do seu primeiro orçamento, no dia 1 de Agosto; a partir daqui Salazar torna-se a primeira personalidade do regime. Talvez seja um pouco exagerado afirmar isto mas não é menos verdade que a atmosfera se transforma e que a estrela de Salazar se afirma ainda mais, no seio do "Movimento": este identifica-se com o Homem, com a sua obra, com o sucesso financeiro. Tal foi o fruto da estabilidade orçamental e da propaganda semeada à volta da "prioridade financeira": tal foi, também, a primeira fase para a personalização do Movimento. A segunda fase inicia-se então.
Ao equilibrar o seu primeiro orçamento, o Dr. Salazar tinha adquirido uma autoridade e um prestígio que lhe permitiam pretender reformas mais vastas, mais importantes, mais decisivas. É preciso ainda ter presente o reverso da medalha: se o Movimento se identifica com o Homem, o sucesso do novo empreendimento obriga Salazar a ter em conta as relações de força no seio do "28 de Maio": por isso, identifica-se, por sua vez, com o Movimento.
O futuro chefe do governo acaba de publicar o seu primeiro orçamento, que apresenta uma particularidade então muito louvada: está equilibrado; à medida que a "confiança" se instaura na vida financeira, repetir-se-ão cada vez mais as intervenções políticas do ministro das finanças.
A esta correlação devem acrescentar-se duas constantes que, aliás, se interpenetram: cada vez que Salazar avança no domínio político, fá-lo sob a égide das Forças Armadas; o apoio destas à "obra" que ele desejaria empreender é-lhe necessário. Nenhuma das correntes civis em presença lhe pode oferecer uma base de apoio suficiente para construir o seu futuro político. Em contrapartida, as Forças Armadas, desejosas de encontrar um equilíbrio entre essas correntes, procuram um político que aceite ultrapassar as tendências em presença. Portanto, se o futuro presidente do Conselho deseja "ligar-se" às Forças Armadas, deve permanecer um político na confluência das correntes políticas, quer dizer, um homem independente ao serviço dos militares.
Salazar, com um grande realismo, com um inteligente oportunismo, "abandona", uma vez no Poder, as forças que o tinham içado até lá.(10) Como revelou, aliás, no fim desse ano, tal atitude fora-lhe aconselhada pelos militares. "Quando o exército me convidou a fazer parte do governo, pôs-me o problema da Nação acima do problema das instituições, defendendo, por isso mesmo, o regime existente. Concordei, aceitei e é essa a minha insofismável posição. Onde alguns querem ver, portanto, infidelidade a princípios, que aliás nunca enunciei, há apenas lealdade, intransigente lealdade!(11)
Sem dúvida, "infidelidade" em relação aos católicos e aos monárquicos, mas lealdade em relação aos militares: homem "independente", o Dr. Salazar está, finalmente, ao serviço das Forças Armadas. Na época perturbada em que Salazar afirma a sua autoridade, compreende que o militar é a única força susceptível de o manter no poder, para que o apoio deste seja sem reservas, torna-se homem independente, ultrapassando as correntes em presença. Identifica-se assim, por sua vez, com o Movimento.
Só o novo chefe do governo entende desfrutar a personalização do Movimento. Tornando-se independente das diferentes forças em presença, não pensa afastá-las do "Movimento"; bem pelo contrário, não esconde que o apoio de uns e outros é necessário ao regime. Mas este apoio deve ser fornecido em bases novas, em torno de um núcleo de princípios, de algumas ideias fundamentais que são comuns, precisamente, a todas as tendências.
Imperceptivelmente, Salazar conduz o "Movimento" para um enriquecimento doutrinal, para novos horizontes. O "28 de Maio", flutuante na ideologia, impreciso na organização dos poderes públicos, encontra um segundo impulso. Pode mesmo dizer-se, e aí reside a principal consequência da personalização do "Movimento", que se assiste então, como o provou a evolução ulterior, ao nascimento de um regime novo, de uma nova "ordem de coisas".
Em vários discursos pronunciados entre 1928 e 1933(12), Salazar determina esses "grandes princípios" e diz-nos em que sentido se orienta a "nova ordem de coisas": por um lado, para o nascimento de uma monocracia e, por outro lado, para um melhor enquadramento das massas.

2) O nascimento de uma monocracia

Uma monocracia, que se opõe à democracia, à oligarquia e à monarquia, é o governo de um só. Parece-nos que o regime português nascente se orienta, desde os primeiros passos, para uma fórmula monocrática: o emprego deste termo para caracterizar o regime salazarista teria a vantagem de evocar o duplo monopólio do poder e da ideia, numa só mão. As ideias de Salazar não são senão o reflexo dos temas "contra-revolucionários" surgidos no primeiro quartel do século XX; o pensamento de Salazar, como o fascismo e o nacional-socialismo, traduz-se numa reacção nacional-autoritária. Com efeito, no discurso de 1 de Junho de 1933, o ditador português afirma: "Um dos mais altos objectivos do 28 de Maio e da evolução que seguiu na política e no direito é o restabelecimento do Estado Nacional e Autoritário."

3) O Estado Nacional

A "Nação" aparece, na obra do pensador português, como o valor fundamental da nova ordem de coisas. Mas a "Nação" já não é o somatório dos indivíduos do Estado liberal, mas "a essência indefinível da continuidade histórica dos Portugueses através dos séculos, como seu património material e moral. Somos todos seus devedores e sacrificamo-nos aos seus interesses superiores"(13)
Esta "Nação" assim definida constitui, segundo Salazar, "a primeira realidade" do "Estado Novo": com efeito, "para ela existe o Estado, isto é, em seu benefício se organiza o poder, se criam e funcionam serviços"(14)
Assim, enquanto Mussolini exclama: "Tudo no Estado, nada fora do Estado, nada contra o Estado", Salazar, pelo contrário, afirma, a partir de 21 de Outubro de 1929: Nada contra a Nação, tudo pela Nação".(15) Parece portanto que, a este respeito, uma diferença fundamental separa o pensamento de A. Salazar do de B. Mussolini. Para este último a "realidade primeira" é o Estado; o postulado "tudo no Estado, nada fora do Estado, nada contra o Estado" é muito elucidativo. A Nação mussoliniana não existe sem o Estado e os elementos que a compõem devem subordinar-se aos interesses do Estado. Mas, será isto uma diferença fundamental? A definição da palavra Nação, dada por ambos os pensadores, é idêntica. O doutrinador português define-a com "a essência indefinível da continuidade dos Portugueses ao longo dos séculos". É neste sentido que se deve interpretar o art. 1 do Estatuto do Trabalho Nacional português de 11 de Setembro de 1933, que dá, com poucas diferenças, a mesma definição que a Carta de Trabalho fascista italiana: "A Nação portuguesa, constitui uma unidade moral, política e económica, cujos fins e interesses dominam os dos indivíduos e dos grupos que a compõem".

4) O Estado Autoritário

Contra o enfraquecimento do Estado liberal, o pensador Salazar rejeita qualquer compromisso com o liberalismo e com o seu corolário, o individualismo, enquanto forma de governo e enquanto fundamento do poder.
"Que o cuidado do povo nos venha das entranhas, escrevia ele, e que nós sejamos os defensores da sua ascenção contínua na ordem material e moral, não implica, de modo nenhum, para nós, a necessidade de acreditar que a origem do poder se encontra nas massas ..."(16)
A soberania não reside na Nação, no sentido liberal do termo; isso é um logro! Se a democracia é o "governo do povo, pelo povo e para o povo", é preciso permanecer consequente e bater-se pela instauração de uma democracia directa.(17) Mas Salazar não acredita que a sociedade de massas possa estar um dia apta a governar-se a si própria. E, se for necessário adiantar uma prova dessa incapacidade, basta interrogarmo-nos sobre a atitude das massas face à desordem governamental: "elas desprezaram a soberania que o voto lhes conferia..." Na impossibilidade de o poder ser dirigido pelas massas, variáveis e indecisas, a "Nação" só poderá ser dirigida por uma minoria que, pela graça de Deus, deverá elevar-se acima das discórdias mesquinhas para determinar o interesse nacional.(18)
Essa mesma minoria deve unir-se à volta de um chefe que, em virtude de títulos indiscutíveis e situação pessoal, preeminente e exclusiva(19), detém o poder de Deus. Quando do segundo congresso do Centro Católico, em Lisboa, em 1922, Salazar afirma: "O fundamento do poder público, ou origem da soberania encontra-se em Deus (...) esta doutrina exclui, portanto, a origem contratual da sociedade e a origem democrática do poder, no sentido em que a origem do poder estaria no povo e não em Deus". O chefe é o único que pode satisfazer as exigências do momento, interpretar a vontade das massas ou aplicar, sem desfalecimento, a única doutrina de salvação, segundo os desígnios da Providência: "A legitimidade do que comanda, dizia ele nesse mesmo congresso, encontra-se na finalidade da ordem; o bem comum."

5) O enquadramento das massas

O enquadramento das massas aparece como uma consequência lógica do núcleo de ideias propostas pelo presidente Salazar: a finalidade essencial é "ensinar" às massas a pensar e a agir de acordo com a ideologia do regime. Esta obra de educação é fundamental, dado que na base de todas as reformas se encontra, segundo Salazar, o Homem: antes de reformar a sociedade é necessário reformar este último. Aliás, em Portugal, a obra de educação é absolutamente necessária: é toda a mentalidade de um povo, a sua psicologia profundamente viciada que urge modificar. não deverá ser só trabalho das escolas, nem dos legisladores: esta obra "salvadora" pressupõe a instituição de um partido único, isto é, a "monopolização" da vida política pelo Chefe e seu escol. A esta primeira técnica de enquadramento das massas, e ainda como nos regimes anti-liberais, é necessário acrescentar um outro processo, uma vez mais comum à Itália fascista e ao Portugal salazarista: a restauração de um sindicalismo único graças à utilização das instituições corporativas.

6) A instauração do sindicato único

Através de diversa regulamentação, que não trataremos aqui por falta de espaço e de tempo, o governo de Salazar tenta eliminar toda a estrutura, federativa ou sindicalista, que implique liberdades colectivas. Não é uma consequência natural do pensamento de Salazar? Sendo o governo o centro exclusivo da vida estatal, este não pode admitir, no seio do Estado, a coexistência de ordenamentos jurídicos múltiplos, em concorrência senão em conflito. Era desde logo lógico que os decretos-leis de 1933 impusessem limitações severas à liberdade de associação e conferissem ao Estado atribuições mais largas que as que lhe eram reconhecidas pelo art. 14 da Constituição de acordo com os princípios do catolicismo social.(20)
Doravante, os cidadãos não podem constituir associações sem prévia autorização das autoridades: para ser lógico e sincero seria preciso riscar a liberdade de associação da lista das liberdades individuais, pois que os cidadãos não gozam desta liberdade senão na medida em que os legisladores e governantes queiram permitir-lhes. O fundamento de uma tal regulamentação já não deve ser procurado na Constituição, mas antes no art. 1 dos Estatutos do Trabalho Nacional, de inspiração fascista, e que merece por isso ser recordado: "A Nação portuguesa constitui uma unidade moral, política e económica, cujos fins e interesses dominam os dos indivíduos e grupos que a compõem."
Passa-se assim, sem crise política, a uma concepção nova das liberdades públicas, em contradição com o espírito e a letra da Constituição de 1933: trata-se menos de direitos individuais, anteriores à própria existência do Estado, cujo fundamento é a própria natureza humana da sociedade, do que de "faculdades", sempre precárias, que o Estado se digna outorgar aos seus súbditos. Esta nova concepção não atinge unicamente o domínio corporativo, sindical ou profissional: visa, necessariamente, todas as manifestações das liberdades colectivas. Como espantar-nos, então que o Portugal do Dr. Salazar se oriente para o partido único?

7) A instauração do partido único

Contrariamente ao que aconteceu na Itália fascista, não houve, na origem do golpe de Estado de 28 de Maio de 1926, um partido político organizado, cujos militantes pudessem servir de quadros ao regime nascente. Este conformou-se aliás, até 1932, com a existência dos antigos partidos políticos(21). Com efeito, embora a ideia da criação de um partido único, então chamado "União Nacional Republicana", tenha aparecido no fim do ano de 1927, o "Movimento do 28 de Maio" teve grandes dificuldades em concretizá-lo.
Só em 30 de Julho de 1930, depois do 4º aniversário do golpe de Estado de 28 de Maio de 1926, o general Domingos de Oliveira, então presidente do Conselho, anuncia oficialmente a criação de uma "União Nacional". Contudo, ainda que o epíteto "republicano" tenha desaparecido, e com ele muitas dificuldades, só em 23 de Novembro de 1932 este partido é verdadeiramente organizado, e isso sob a alta direcção do chefe do governo de então, Salazar.(22)
Segundo os estatutos que foram então promulgados, a União Nacional é definida como uma associação sem carácter de partido e independente do Estado, destinada a assegurar na ordem cívica, pela colaboração dos seus filiados, sem distinção de escola política ou de confissão religiosa, a realização e a defesa dos princípios consignados nesses estatutos, com plena aceitação das instituições em vigor(23). Poder-se-ia pensar que, uma vez efectuado o regresso às casernas, dada a estabilização do regime, a União Nacional se tornasse a força de apoio preponderante; todavia, a maioria dos autores comprazem-se em sublinhar que, ainda que partido único, a sua força política permanece fraca e não pode assimilá-lo por exemplo ao partido nazi e nem mesmo à Falange.
É que a própria natureza do regime nascente e que a União Nacional é chamada a secundar não segrega, de modo algum, a necessidade de um partido activista: a finalidade do poder não é revolucionar, nem mesmo reformar as estruturas sociais existentes, mas antes preservar e conservar a ordem estabelecida. Para uma tal tarefa não há qualquer necessidade de apoio político das massas, mas de um enquadramento preventivo, nomeadamente pela utilização das instituições corporativas e pela rejeição do pluralismo partidário. E, logo que o equilíbrio social é ameaçado directamente, faz-se apelo, consoante a gravidade dos acontecimentos, ou às Forças Armadas ou às forças repressivas clássicas.
Estes dados transformarão o partido único português num simples orgão de coordenação da "acção nacionalista", republicana e monárquica; assim paralisada, a União Nacional, força de apoio de um regime contra-revolucionário, não poderá nunca tornar-se uma força ameaçadora para a concentração de poderes, que se efectuará, cada vez mais, em proveito do presidente do Conselho.
Aliás não é de modo algum uma coincidência que, desde há tantos anos, os três presidentes da República que se sucederam sob o actual regime tenham sempre "nomeado" o Dr. Salazar para a Presidência do Conselho. Há quem chegue a dizer a propósito de Salazar: o "Estado é ele". Será isto exagero? A verdade é que o salazarismo revela-se mais uma "arte de governar" do que uma "doutrina política" transmissível. Eis porque o regime político português, longo para a vida de um homem, curto para a "corrente" da História, aparecerá amanhã como um parêntese no eterno devir para uma maior Liberdade. Ou não será a História de Portugal também a História do Homem?

Notas:

(1) Oliveira Marques - História de Portugal, vol II, 2ª edição, Palas, Lisboa, 1976.

(1) O. Salazar - Discursos ..., op. cit., Vol. VI, pág. 435.

(2) O. Salazar - Discursos ..., op. cit., vol I, pág. 6.

(3) Ver as condições deste verdadeiro "ultimato" in O. Salazar - Discursos ..., op. cit. vol. I págs. 3 a 6.

(4) Ver. art. 108. "Os actos do Presidente da República e do governo que envolvam aumento ou diminuição de receitas ou despesas são sempre referendados pelo ministro das Finanças".

(5) O. Salazar - Discursos ..., op. cit., vol. I, pág. 4.

(6) O. Salazar - Discursos ..., op. cit., vol. I, pág. 4.

(7) O. Salazar - Discursos ..., op. cit., vol. I, págs. 9 a 18. Este discurso intitula-se "Os problemas Nacionais e a Ordem da sua Solução."

(8) Ibidem, pág. 13.

(9) António Ferro - Salazar ..., op. cit., pág. 67.

(10)O Centro Católico nomeadamente, que foi um dos seus fundadores e que dissolveu em 1932.

(11)António Ferro - Salazar ..., op. cit., pág. 91.

(12)Ver também os discursos de 26 de Maio de 1934, intitulado O Estado Novo Português na Evolução Política Europeia (O. Salazar - Discursos ..., op. cit. vol. I, pág. 335 a 350) e de 9 de Dezembro de 1934. intitulado A Constituição das Câmaras na Evolução Política Portuguesa (Ibidem, pág. 371 a 398)

(13)P. D'Assac - Dictionnaire politique de Salazar, S.N.I., 1964, pág. 184.

(14)O. Salazar - Discursos ..., op. cit. Vol.III, pág. 394.

(15)O. Salazar - Discursos ..., op. cit., Vol. I, pág. 34.

(16)O. Salazar, in prefácio de Une révolution dans la Paix, Paris, 1936.

(17)Desde 1916 Salazar sublinha "o carácter fictício do regime constitucional, da soberania do povo, da maioria parlamentar representando a vontade da Nação..."

(18)Segundo Salazar, não se deve acreditar que "o governo possa ser obra da multidão, mas de uma élite à qual incumbe o dever de dirigir a colectividade e de se sacrificar por ela" (O. Salazar, in prefácio de Une Révolution dans la Paix, Paris, 1936.)

(19)"Se há uma Nação, esta é uma realidade muito mais vasta que a nossa casa, a nossa rua, a nossa estrada, a nossa escola. Mas é preciso que alguém tenha a preocupação constante de contrapor ao facto singular a universalidade dos factos, ao caso pessoal e local o caso nacional, de corrigir a ideia que cada um involuntariamente forme das realidades nacionais filosofando àsoleira da porta, com o que todos devem conhecer dos mesmos factos no conjunto da vida da Nação. Os homens, os grupos, as classes vêem, observam as coisas, estudam os acontecimentos à luz do seu interesse. Só uma entidade, por dever e posição, tudo tem de ver à luz do interesse de todos". (O. Salazar, Discursos ..., op. cit., vol. I, pág. 264).

(20)O art. 14 da Constituição estava assim redigido: "Incumbe ao Estado reconhecer as corporações morais e económicas e as associações ou organizações sindicais, e promover e auxiliar a sua formação".

(21)Estes foram proíbidos e particularmente o partido católico, depois do famoso discurso de Salazar de 1932: Discursos ..., op. cit., vol. I, pág. 161 e segs.

(22)Ver os dircursos de Salazar de 28 de Maio de 1930 e de 23 de Novembro de 1932: Discursos ..., op. cit., vol. I, pág. 67 e 159 e segs.

(23)Segundo estes estatutos, os fins da União Nacional são os seguintes: exercer junto dos orgãos da Administração central e local uma função de íntima colaboração; apresentar opiniões respeitantes à reforma de certos regimes jurídicos ou a sua execução; promover, como um dos principais objectivos, a formação doutrinária das novas gerações, assegurando, especialmente àjuventude que terminou os seus estudos, a continuação da acção exercida anteriormente na organização nacional Mocidade Portuguesa. Os meios para estes fins são: a própria expressão associativa, reuniões públicas de propaganda, realização de inquéritos sob os problemas nacionais, publicações de toda a espécie, colaboração com outros organismos de carácter patriótico, mensagens dirigidas às autoridades e aos portugueses em geral, realização de congressos e de conferências: Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira (Lisboa, Rio de Janeiro), vol. 33, pág. 396 (Ver. "A União Nacional").




III - A CONSTITUIÇÃO DE 11 DE ABRIL DE 1933


1) A Elaboração da Constituição

O interregno entre a revolução de 1926 e a constituição de 1933 ou Ditadura Militar é o mais largo dos interregnos constitucionais portugueses e a génese dessa Constituição, se não terá sido das mais complexas e atribuladas, é certamente aquela de que menos se sabe.
Em princípio, continuou em vigor a Constituição de 1911, excepto no respeitante às relações entre o Poder Legislativo e o Executivo e às liberdades públicas e em termos precários. Mas não só não tardariam a ser publicados numerosos decretos com força de lei que comportariam alterações constitucionais como um decisivo debate político se travaria no interior do novo regime entre os que pretendiam mera reforma das instituições republicanas e os que, próximos do "Integralismo Lusitano" ou do fascismo italiano, reclamavam uma Constituição diferente. Venceriam estes com Salazar.
O Decreto de 22 de Dezembro de 1931, criou um Conselho Político Nacional, chamado fundamentalmente a dar parecer acerca dos projectos de Constituição e de Códigos Administrativo e Eleitoral e acerca da organização do regime corporativo. Compunham-no o Presidente do Ministério, o Ministro do Interior, o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, o Procurador-Geral da República e 11 homens públicos nomeados pelo Presidente da República. Não terá, entretanto, este Conselho Político Nacional desempenhado um papel de relevo. Na realidade, foi Salazar que concebeu e elaborou um projecto de Constituição, apoiado ou coadjuvado por um pequeno grupo. Antiparlamentarista como se proclamava, não convocou o regime uma assembleia constituinte para apreciar esse projecto ou, eventualmente, outros projectos que fossem apresentados. Simplesmente, o governo publicou-o nos jornais diários de 28 de Maio de 1932, para efeito de discussão no país e, depois, refundiu-o e submeteu-o a "plebiscito nacional". E, como continuavam as liberdades restringidas ou suspensas, tal não poderia deixar de se reflectir num carácter muito limitado e pouco pluralista dessa discussão.
O plebiscito realizou-se em 19 de Março de 1933. Os resultados foram publicados em 11 de Abril no Diário do Governo. Nesta data entrou a Constituição em vigor.

2) Fontes e Projecto
Ao contrário do que sucede com as Constituições liberais, não se torna fácil indicar uma ou algumas Constituições que possam ser consideradas fontes principais da Constituição de 1933. É somente a respeito dos seus diversos títulos e capítulos que se vislumbram inspirações e semelhanças. Decerto, em muita linguagem e em muitas das soluções de fundo ela não rompe com as Constituições anteriores. Mas, por outro lado, o engrandecimento do Poder Executivo ou do governo deriva das leis constitucionais da Ditadura, tal como o sistema de compressão das liberdades públicas da sua prática; a intervenção do Estado na sociedade e na economia, a ordem administrativa e, muito provavelmente, a sistematização do texto constitucional denunciam leitura da Constituição de Weimar; e a qualificação do Estado como Estado corporativo e a criação da Câmara Corporativa reflectem a atenção prestada ao fascismo italiano.
O traço que se pretende mais original da Constituição é o corporativismo, tomado como forma quer de organização social quer de organização política e ao qual se juntam elementos da doutrina social da Igreja e ainda da Constituição de Weimar.
Enquanto forma de organização social, o corporativismo recorta-se através de uma "ordem económica e social", que repousa na solidariedade (ou na solidariedade a todo o custo" dos interesses das classes sociais e em nome da qual se proíbem a greve e o lock-out (art. 39) se afirma a função social da propriedade, do capital e do trabalho (art. 35) e se admite a associação do trabalho à empresa (art. 36). A integração corporativa envolve as corporações morais e económicas e as associações ou organizações sindicais, incumbindo ao Estado reconhecê-las e promover e auxiliar a sua formação (art. 14).
Como forma de organização política, o corporativismo visa a participação das sociedades primárias no poder, pois "elementos estruturais da Nação" (art. 5) não são apenas os indivíduos, são também essas sociedades menores. O sufrágio orgânico, contraposto ou, pelo menos, complementar do sufrágio individual, tal é o instrumento que preconiza. Assim, pertence privativamente às famílias, através dos respectivos chefes, eleger as juntas de freguesia (art. 17) nas corporações morais e económicas estarão organicamente representados todos os elementos da Nação, competindo-lhes tomar parte na eleição das câmaras municipais e na constituição da Câmara Corporativa (art. 18); na organização política do Estado concorrem as juntas de freguesia para a eleição das câmaras municipais e estas para a dos conselhos de província, e na Câmara Corporativa haverá representação de autarquias locais (art. 19). A tradução do projecto constitucional em normas faz-se através de não poucas expressões de acentuado cunho ideológico - pragmático ou proclamatório. As mais significativas são as que qualificam o Estado de "república corporativa" (art. 5) e a economia de "economia nacional corporativa" (art. 34).

3) Direitos fundamentais
No tocante aos direitos fundamentais, na Constituição de 1933 sobressaem:
1) O carácter autoritário do regime dos direitos, liberdades e garantias, com leis especiais a regular o exercício das liberdades de expressão, de ensino, de reunião e de associação, "devendo, quanto à primeira, impedir preventiva ou repressivamente a perversão da opinião pública na sua função de força social" (art. 8)(1); mas carácter autoritário que não se converte em totalitário, em virtude da limitação da soberania pela moral e pelo direito (arts. 4 e 6).
2) O aparecimento, enquadrados no projecto corporativo, de um elenco de direitos sociais-direitos à protecção da família (art. 13), de associação do trabalho à empresa (art. 36), a educação e à cultura (arts. 42 e 43) - bem como de contratação colectiva (art. 37), a acrescentar à função social de propriedade (art. 35).
3) A atribuição quer individual quer institucional dos direitos fundamentais, por incumbir ao estado definir e fazer respeitar os direitos e garantias resultantes da natureza ou da lei, em favor dos indivíduos, das famílias, das autarquias locais e das corporações morais e económicas (arts. 6, 13, 37, 42 e 45 a 48).

4) Um Estado sem partidos

A Constituição parece pressupor o reconhecimento dos partidos políticos, quando estipula que os funcionários públicos estão ao serviço da colectividade e não de qualquer partido ou organização de interesses particulares (art. 22). Inclusivamente o artigo 8 nº 14 ao garantir a liberdade de associação, implicaria, pelo menos a sua admissibilidade.
Todavia, um dos aspectos mais relevantes da ideologia e da vida política do "Estado Novo" viria a ser, bem ao invés, a proscrição dos partidos políticos, ainda que sem proibição ou inexistência legal. Se nenhuma lei os proibiria expressa e genericamente, o regime geral da liberdade de associação conduziria ao mesmo resultado, na medida em que, ao arrepio do Art. 8 da Constituição, havia de sujeitar a formação de quaisquer associações políticas a autorização - a autorização administrativa que nunca seria concedida.
O específico da concepção de Salazar sobre a organização constitucional seria a ideia de um estado representativo sem partidos, assente, por um lado, numa postura orgânico-corporativa sobre a essência da Nação e sobre o papel do cidadão e, por outro lado, numa crítica radical aos malefícios do sistema de partidos. Um "estado sem partidos", em contraposição quer ao estado pluripartidário ou pluralista ocidental quer ao estado de partido único dos regimes de Leste ou dos regimes fascistas era o que se pretenderia.

5) A Constituição económica

A Lei Fundamental de 1933 é a primeira Constituição portuguesa que confere à economia um tratamento específico e global, estatuindo sobre os seus mecanismos através de um conjunto de directrizes e meios de acção do Estado imagináveis pelo liberalismo individualista.
Logo no artigo 6º, incumbe o Estado de "coordenar, impulsionar e dirigir todas as actividades sociais, fazendo prevalecer uma justa harmonia de interesses, dentro da legítima subordinação dos particulares ao geral" (nº 2) e de "zelar pela melhoria de condições das classes sociais mais desfavorecidas, obstando a que aquelas desçam abaixo do mínimo de existência humanamente suficiente" (nº 3). Mas vem a ser no título VIII da parte I, sob a epígrafe de "ordem económica e social", que se encontram as normas mais significativas.
O Decreto-lei de Setembro de 1933, aprovou um "Estatuto do Trabalho Nacional". E não é tanto na Constituição quanto ao Estatuto, bem próximo da Carta del Lavoro fascista, que deve perscrutar-se o exacto sentido da economia corporativa visada pelo legislador constituinte.



6) Sistema de Governo

A Constituição consigna como "orgãos da soberania" o Chefe do Estado, a Assembleia Nacional, o Governo e os Tribunais (art. 71). As novidades consistem no abandono do termo "Poderes do Estado", no uso da designação "Chefe do Estado", a par da de Presidente da República, e na autonomização do Governo. O Chefe do Estado é eleito por sufrágio directo, "pela Nação", por sete anos (art. 72), pode ser reeleito e só perante a Nação responde pelos actos praticados no exercício das suas funções (art. 78) Compete-lhe nomear o Presidente do Conselho e os Ministros, dar à Assembleia Nacional a eleger poderes constituintes, convocar a Assembleia Nacional extraordinariamente para deliberar sobre assuntos determinados e adiar as suas sessões, dissolvê-la quando assim o exigirem os interesses superiores da Nação e prorrogar por seis meses as eleições subsequentes, dirigir a política externa do Estado, promulgar as leis com direito de veto, etc. (arts. 81, 87 e 98). Os actos do Presidente da República, salvo a nomeação e a demissão do Presidente do Conselho, as mensagens dirigidas à Assembleia Nacional e a mensagem de renúncia ao cargo, devem ser referendadas pelo Ministro ou pelos Ministros competentes ou por todo o Governo (art. 82). A Assembleia Nacional tem noventa Deputados, eleitos por sufrágio directo por quatro anos (art. 85). Compete-lhe, designadamente, fazer leis vigiar pelo cumprimento da Constituição e das leis, autorizar o Governo a cobrar as receitas do Estado e a pagar as despesas públicas (mas não já aprovar o orçamento), aprovar as convenções internacionais, declarar o estado de sítio, deliberar sobre a revisão constitucional antes de decorrido o prazo de 10 anos sobre a última revisão (art. 91). A Assembleia funciona três meses improrrogáveis em cada ano (art. 94).
O Governo é formado pelo Presidente do Conselho e pelos Ministros, sendo aquele nomeado e demitido livremente pelo Presidente da República (art. 106) e coordenando e dirigindo a actividade de todos os Ministros que perante ele respondem politicamente pelo seus actos (art. 107). Compete ao Governo referendar os actos do Presidente da República, elaborar decretos-leis no uso de autorizações legislativas ou nos casos de urgência e necessidade pública, elaborar os decretos, regulamentares e instruções para a boa execução das leis e superintender no conjunto da administração pública (art. 108). O Conselho de Ministros reune-se quando o seu Presidente ou o Chefe de Estado o julguem indispensável.
Como orgãos auxiliares instituem-se um Conselho de Estado e uma Câmara Corporativa, aquele na esteira do Conselho de Estado da Carte Constitucional e do Conselho Político Nacional de 1932, esta criada de novo, aquele auxiliar do Presidente da República, esta da Assembleia Nacional.
O sistema de governo de 1933, se não é, evidentemente, parlamentar (antes, militantemente antiparlamentar), tão pouco pode qualificar-se de presidencial ou, sequer de "presidencialismo bicéfalo"(2). Deve qualificar-se segundo outros autores de representativo simples de chanceler.
Não é parlamentar, por quanto acaba de se referir e por Presidente da República e Governo não estarem sujeitos a notações na Assembleia Nacional, como expressamente se estipula (arts. 78 e 111).
Não é presidencial, porque este sistema, implica separação e equilíbrio entre Presidente da República e Parlamento e tal não se verifica na Constituição portuguesa. Para além do mais, bastaria recordar que em sistema presidencial não existe dissolução do Parlamento pelo Presidente.
É sim, um sistema representativo simples, porque a pluralidade de orgãos governativos fica encoberta pela concentração de poderes no Chefe de Estado - considerado o mais directo representante da comunidade nacional e de quem dependem quer a Assembleia Nacional quer o Governo (que ele nomeia e demite livremente). É sistema de chanceler, porque o presidente está acompanhado de um Governo com competência própria e não pode agir sem o Presidente do Conselho de ministros, que referenda todos ou quase todos os seus actos e perante o qual respondem politicamente todos os Ministros (arts. 82 e 97).

7) A prática Constitucional e a natureza do regime

A prática da Constituição de 1933 consistiu, em resumo, no seguinte:
- Numa estabilidade e numa continuidade sem paralelo na Europa - não tanto das instituições quanto das pessoas e dos cargos (desde 1933, somente houve três Presidentes da República e dois Presidentes do Conselho; não se deram verdadeiramente senão remodelações do Governo, nunca Governos novos; e raras foram as crises políticas de que houve notícia).
- Fortissímas restrições ou mesmo apagamentos das liberdades de expressão (com censura prévia à imprensa), de associação e de reunião e de certas garantias da segurança pessoal (conexas com a existência de uma polícia política).
- O não reconhecimento da Oposição ou da organização da Oposição fora dos períodos eleitorais, em contraste com a existência, embora ténue, de uma "associação cívica" (a União Nacional) - de apoio ao regime e de cuja comissão central foi presidente, salvo entre 1968 e 1970, o Presidente do Conselho.
- O carácter não substantivo das eleições (5 para Presidente da República e 10 para a Assembleia Nacional), antes e depois de 1945, não servindo as eleições - apesar de constitucionalmente imprescindíveis e sempre realizadas nos prazos prescritos - para legitimar os governantes, mas sim para outros fins (para o regime, preparação de quadros, propaganda ou animação política, conhecimento dos adversários, aparência democrática para o estrangeiro; para a oposição, oportunidade de presença, possibilidade de se fazer ouvir sem todas as restrições à liberdade do resto do tempo, lançamento de certas ideias-força. Daí e por não se ter chegado ao sufrágio universal, um número reduzido de eleitores recenseados e de eleitores efectivamente votantes.
- A aplicação da Constituição Económica, não em moldes de economia sujeita a fins éticos e políticos superiores aos seus agentes, no âmbito de uma autêntica integração corporativa (como defendiam os doutrinadores do corporativismo), mas sim em moldes de Capitalismo autoritário, administrativo e proteccionista, mais apostado na conservação do que no desenvolvimento.
- O completo domínio da vida política pelo Presidente do Conselho e a redução da Presidência da República a uma magistratura representativa e eventualmente arbitral, a parte honorífica do regime tendo sido o cargo do Chefe de Estado desempenhado sempre por militares, por períodos muito extensos, e os candidatos escolhidos pela União Nacional ou pela Acção Nacional Popular.
- A ambiguidade das realizações corporativas - entre Corporativismos de Associação e Corporativismo de Estado (com bem pouca liberdade dos organismos corporativos perante o Governo, em que houve um "Ministério das Corporações") e entre Corporativismo puro e Corporativismo Subordinado (com incompleta atribuição de funções Políticas aos referidos organismos), avultando em toda a estrutura corporativa a fragilidade e a pulverização dos Sindicatos Nacionais.
- A subalternização da Assembleia Nacional não apenas pelo apagamento jurídico dos seus poderes mas também por outros factores: A sua composição homogénea, tendo sido eleitos, exclusivamente, deputados propostos pela União Nacional ou pela Acção Nacional Popular; o largo número de funcionários deputados; o escasso trabalho desenvolvido e o carácter académico ou de mero interesse local de quase todos os discursos e debates; a ocupação da Assembleia quase somente pelas propostas enviadas pelo Governo.
- Em contraste com essa subalternização e com a do Conselho de Estado (este por causa do apagamento do Presidente da República), a importância da Câmara Corporativa, quase elevada a Segunda Câmara (na medida em que os seus pareceres, eram geralmente acolhidos pela Assembleia e pelo Governo). Tal importância, assim como a tendência conservadora imperante na Câmara explicam-se pela representação de interesses e de grupos de pressão e pelo avultar da tecnocracia num regime sem pluralismo partidário.
Tendo em conta os aspectos acabados de indicar, a própria Constituição no seu texto original e ao longo de sucessivas revisões pode afirmar-se, sem hesitação, que o regime político de 1933 - chame-se-lhe "Estado Novo", Salazarismo ou República Corporativa - se integra de pleno entre os regimes autoritários de direita.
Algo controverso - é apenas saber se pode ou deve qualificar-se de regime fascista ou se cabe noutro tipo ou subtipo de regime. Chamar-lhe fascista ou não, é em minha opinião uma questão sem sentido pois as similitudes com regimes fascistas e o uso, de técnicas fascistas é flagrante, apesar do regime não assentar num partido ideológico de massas que se tivesse apoderado do Estado.

Notas:

(1) "Não reconhecemos a liberdade contra a Nação, contra o bem comum, contra a família, contra a moral" (Salazar, Discursos..., vol. I, pág. 309, 1948)

(2) Na designação de Marcelo Caetano que, porém olhando à prática, prefere falar em "presidencialismo de primeiro-ministro"



IV - SALAZARISMO E NACIONAL-SINDICALISMO


1) A ilusão fascista

A ilusão de Rolão Preto foi a de alguns fascistas "puros". pensar que se podia fazer a Revolução na Extrema-Direita, julgar que havia um fascismo "social". Algo, no fundo, tão equivocado como partir para o Congo à procura de ursos polares: do mesmo modo que essa espécie não pode existir em África, também nunca houve nem podia haver um fascismo "à esquerda" que reconciliasse a Revolução e a Tradição, que fosse uma "revolução na ordem" e que estivesse pois, dialecticamente, "para além do comunismo". O único dirigente político europeu que tentou realmente ser, ao mesmo tempo, de extrema-direita (fascista) e de esquerda (revolucionária acabou isolado e desiludido: chamava-se Georges Valois. Nada disto no destino do "Füher" nacional sindicalista: apesar dum exílio de alguns meses em Espanha, nunca, porém, a sua carreira resvalou para a tragédia.
Não pode haver duas revoluções dentro da mesma revolução, mesmo que esta seja mera contra-revolução. Rolão Preto imaginou o contrário, supôs erradamente que a revolução nacionalista, iniciada por Gomes da Costa, continuada por Carmona e monopolizada por Salazar, podia ser bicéfala, dupla: tranquila e frenética, conservadora e revolucionária, calma a extrovertida, mesquinha e grandiosa, serena e apoplética, salazarista e nacional-sindicalista. As ilusões desfizeram-se de vez em 1934, no momento em que, exasperado com o prestígio crescente do chefe nacional-sindicalista, lembrando-se do conselho de Periandro a Trasíbulo(1), compreendendo o perigo que representava para um partido apático e burocrático como a recente União Nacional o dinamismo e o fascínio dum movimento de tipo fascista como o grupo de Rolão Preto (que contava nessa altura com vários jornais e cerca de 50.000 filiados), Salazar decide por cobro aquela excrescência de revolucionarite, liquidando as veleidades de "social" num regime vincadamente retrógrado, agrário, conservador e clerical. Daí a nota oficial que o Diário de Notícias publica na sua primeira página a 29 de Julho de 1934, poucos dias depois de os nazis austríacos terem assassinado o católico e corporativista Dolfuss, espécie de equivalente centro-europeu do professor "vegetariano". A nota oficiosa, com a assinatura de Oliveira Salazar, é dirigida "aos nacionais-sindicalistas" e resume-se num firme convite feito a estes no sentido de entrarem para a União Nacional - os estudantes desse movimento para a A.E.V. (Acção Escolar Vanguarda, percurssora da Mocidade Portuguesa) -, sob pena de o governo passar a considerar que o movimento nacional-sindicalista, de elemento de ordem que pretendia ser, se tinha transformado em "elemento perturbador e de desagregação das forças nacionalistas do Estado Novo". A cisão no interior do movimento era inevitável, observava ainda a nota, sendo de esperar portanto que uns fossem para a U.N., se dobrassem à chefia de Salazar, e que outros, os irredutíveis, caíssem no "resvaladouro da pura agitação política e dos manejos revolucionários". A estes últimos reservar-se-ia o cautério conveniente a tais morbos. Em suma, dizia-se na nota oficial da Presidência do Conselho, sendo a U.N. "a força" indispensável e suficiente para a realização integral" do programa nacionalista do Estado Novo, ficavam os nacionais-sindicalistas advertidos de que deviam inscrever-se naquela - ou prepararem-se para a excomunhão, tidos doravante por "inimigos" ou "indiferentes". A cisão fora já consumada com uma dissidência jornalística: o antigo nacional-sindicalista Mário Múrias, então com 34 anos, lançara em 1 de Março desse ano um jornal "A Revolução Nacional", que se havia de publicar só até Agosto de 1934. Poucos dias depois da nota oficial de Salazar, sob a presidência de Eusébio Tamagnini reunia-se o directório do nacional-sindicalismo, aprovando-se uma moção que coube a José Cabral comunicar: decide-se exprimir a "firme vontade de colaborar dentro da União Nacional ..., no objectivo supremo e comum de consumar e assegurar a revolução nacional". A dispersão do movimento estava pois consumada: dum lado, ficavam os fascistas puros, os revolucionários com uma atitude "social", sob a chefia do criador do movimento dos camisas azuis, Rolão Preto; do outro, os fascistas filo-salazaristas que, procurando acima de tudo emprego e promoções, correm todos para a ortodoxia, para o bom redil: Dutra Faria, Ramiro Valadão, Castro Fernandes, José Cabral (que há-de lidar o seu nome ao decreto extinguindo a maçonaria em 1935), Pires de Lima, Cabral de Moncada, etc. Ficaram fiéis ao "Füher" equivocado: Garcia Domingues, António Lepierre Tinoco, o actor António Pedro, o inseparável Alberto Monsaraz, etc. Quase todos estes acabariam aliás por combater o salazarismo - e alguns estariam mais tarde no M.U.D., na candidatura de Quintão Meireles (1951) ou na de Humberto Delgado (1958). Como o próprio Rolão Preto, revolucionário perdido no meio da contra-revolução, "fascista" paradoxal que pertence à história do antifascismo português...
A nota de Julho de 1934 era apenas como que o epílogo dum diferendo que se iniciara dois anos antes, quando Rolão Preto, inspirando-se nos fascismos europeus e nas experiências próximas de um Ledesma Ramos, ou dum José António Primo de Rivera (fundador da Falange em 1933, associando-se então aos dois precedentes, todos eles mortos durante a Guerra Civil em Espanha), criara em 1932 a especial dissidência integralista conhecida por "nacional-sindicalismo", cujas ideias expôs em livros como Para Além do Comunismo (1932), Alma!, O Nacional-Sindicalismo, Salazar e a sua época (1933), etc., bem como no jornal diário Revolução (1932-1933). É neste jornal bem como no jornal de Faro O Nacional-Sindicalista que se afirma ao longo dos seus números que as bases do estado nacional-sindicalista são:
1. A Família
2. A Tradição
3. O Município
4. O Sindicato
5. A Corporação
6. A Nação

Também se afirma, por seu turno, que o Nacional-Sindicalismo é:
- Anticomunista
- Antiliberal
- Antidemocrático
- Antiburguês
- Anticapitalista
- Anticonservador

O Nacional-Sindicalismo é também:
- Familiar;
- Municipalista e Regionalista;
- Sindicalista;
- Corporativista;
- Representativo;
- Autoritário;
- Nacionalista;
- Revolucionário.

2) A Ilusão do poder: os banquetes

Recordemos o essencial do movimento nacional-sindicalista no período áureo da vigência dessa experiência, ou seja, em 1932-1933, em especial na fase em que, no começo de 1933, o triunfo nazista viera entusiasmar as fileiras de Rolão Preto. O triunfo hitleriano na Alemanha acalentou e aqueceu ao rubro os sonhos de poder das hostes chefiadas por Rolão Preto. Contentemo-nos agora em registar os principais momentos da "onda nacionalista" de fulgurações germânicas que se ateia sobretudo durante a primeira metade de 1933.
"Isto vai por Deus!" - torna-se um dos estribilhos entusiásticos dos companheiros de Rolão Preto, sobretudo, como se disse, desde que um vagabundo austríaco se apossou da Alemanha. O "a onda alastra" passa a constituir uma rubrica do "Revolução", na qual se registam as cotas e as pescarias minúsculas duma maré-cheia que parece empurrar a nau com a Cruz de Cristo do nacional-Sindicalismo até ao porto almejado. Nesta praia-mar, três momentos capitais merecem ser registados e analisados: os dois banquetes de homenagem a Rolão Preto, um em Lisboa, no Parque Eduardo VII, a 18 de Fevereiro de 1933, outro no Porto, no Palácio de Cristal, três meses depois e, por fim, as manifestações nacionais-sindicalistas em Braga, no 28 de Maio desse ano, por ocasião do sétimo aniversário do movimento de Gomes da Costa.(2)

3) Os dados estão lançados

O banquete em Lisboa, coincidindo quase que exactamente com a data-aniversário da publicação do "Revolução", fora preparado com a publicação de listas de adesão ao festejo previsto, lista a que "Revolução" e "O Nacional Sindicalismo" dão expressivo relevo. O banquete reuniu cerca de 730 nacionalistas simpatizantes do movimento. A mesa de honra era constituída por Álvaro de Sousa Rego, tenente Carvalho Nunes, José Cabral, Luis Pastor de Macedo, capitão Teófilo Duarte, Mira da Silva, João Ameal, A. Pinto de Lemos, eng.º Peres Durão, Sá Campos, Américo Cabral, Carvalho da Costa, Rui de Almeida, brigadeiro João de Almeida, Afonso Lucas, eng.º Neves da Costa, professor Eusébio Tamagnini - que será, ele próprio, honrado mais tarde com um banquete nacional-sindicalista -, Rui Vecchi, coronel Valdez de Passos e Sousa, coronel António Rodrigues Montez, António de Sousa Rego, António Pedro, capitão Corujeira de Carvalho, capitão Mário Pessoa, capitão Daniel Neto, António Lepierre Tinoco - como representante dos "operários nacionais-sindicalistas" que fazem lembrar a célebre arlesiana de quem se fala mas que nunca aparece. Por detrás da mesa de honra, retratos de Sidónio, Gomes da Costa e Salazar; dois militares e um civil, as espadas e o produto final de tantos golpes e espadeiradas. Numa mesa, um rancho gracioso de camisas azuis, a "Secção Feminina do Nacional-Sindicalismo" ou o movimento "a Mulher Portuguesa". à sua chegada ao palácio da Exposição do Parque Eduardo VII, Rolão Preto é acolhido com fervor, passando entre fileiras de camisas azuis que erguem os braços à maneira romana que os fascistas europeus espalharam pela Europa da altura, - saudação a que o próprio Salazar de início não escapou, como o documentam fotografias da época. As aclamações a Rolão Preto esfuziam: "Viva o dr. Rolão Preto! Viva o nosso chefe!" Um sexteto entoa então o Hino da Restauração, enquanto o chefe, camisa azul, gravata escura, bigodinho hitleriano e calças compridas, entra na sala de banquete do palácio da Exposição. Após o hino referido, o conjunto passará a executar composições de Rui Coelho, um músico que frequentemente encontramos associado à vida do nacional-sindicalismo. A meio do banquete, Neves da Costa pediu silêncio para passar à leitura de alguns dos inúmeros telegramas chegados. No termo da festa proferiram discursos Álvaro de Sousa Rego, Neves da Costa, Pinto de Lemos - que exclamaria, respondendo aos que os acusavam de serem bolchevistas: "Bolchevistas! sim! Se bolchevistas significa o desejo de que uma maior justiça social seja derramada sobre todos os homens (...) - ah! não há dúvida, nós somos então bolchevistas!" - António Quitério (pelos estudantes do movimento), António Pedro e, por fim, o chefe do Nacional Sindicalismo.
Este, saltando para cima da mesa de honra, fez um discurso que foi por diversas vezes interrompido por aplausos. "Nós encaramos a Revolução permanente, a Revolução que não se detém, que há-de transformar totalmente esta Pátria gloriosa!" - brada Rolão Preto no seu discurso aos setecentos e tantos convivas ali reunidos para o sagrarem chefe da Revolução nacionalista. No final da sua alocução, diria: "Eu, que nunca pedi nada ao Dr. Oliveira Salazar, eu que nada lhe peço, eu que só aparecia diante do dr. Oliveira Salazar com a cabeça bem erguida, digo, a ele que me está ouvindo: Sr. dr. Oliveira Salazar, oiça V. Exª a alma nacional que vibra, escute os votos da mocidade portuguesa e se quer, alea jacta est!" O Diário da Manhã, orgão oficial da União Nacional salazarista, depois de afirmar que o chefe nacional-sindicalista falou de Salazar, transcreve deste modo a passagem: "Sr. dr. Oliveira Salazar: ouça V. Exª a alma portuguesa que vibra; ouça os valores da nossa mocidade e, se quer, alea jacta est!". Seja como for, Salazar - que realmente devia ter ouvido o discurso do Füher dos camisas azuis - decerto não deve ter gostado daquela reivindicação de cabeça erguida ou daquele suspeito "alea jacta est!" Como no conselho dado por Periandro a Trasíbulo, o manhoso chefe beirão devia pensar com os seus botões, no silêncio da sua tão modesta casa da Rua do Funchal, sentado num velho sofá que os testemunhos da altura dizem ser esburacado, que havia que eliminar aquela espiga estouvada que porfiava em erguer a cabeça, cheia de ecos teutónicos, numa seara que ia tentando para o nivelamento, aquele excelente nivelamento que os tiranos desejam como conveniente para o bom ordenamento da República. Ou talvez tivesse lido também Platão e se lembrasse assim duma passagem da "Politeia" do grande discípulo de Sócrates: o tirano, escreve Platão, deve desfazer-se dos que contribuíram para a sua elevação e que falam livremente diante dele. "É preciso portanto - continua o filósofo grego - que o tirano se desfaça deles se quer ficar o chefe e que não deixe, tanto entre os seus amigos como inimigos, um único homem de valor". Ouçamos ainda Sócrates platónico discorrer sobre os expedientes tirânicos: "Com um olhar penetrante, deve discernir os que têm coragem, grandeza de alma, prudência, riquezas", preparando-lhes ciladas e movendo-lhes guerra implacável. Salazar, tendo lido ou não o ateniense, adivinhava talvez que entre aqueles estouvados discípulos do hitlerismo e do fascismo mussolinesco havia alguns que podiam levar a sério certos slogans sobre a "Revolução permanente" e outras balelas da fraseologia dos antigos sequazes do Pelicano real, agora hipnotizados pela tarântula da cruz gamada. Não ostentavam também, os estouvados do Parque Eduardo VII, braçadeiras com cruzes vermelhas sobre fundo branco? O vermelho, mesmo o da Cruz de Cristo, não era cor que agradasse ao Homem que Christine Garnier observaria detestar tanto os cromatismos violentos como as palavras excessivas.(3)

4) A onda alastra...

O entusiasmo apodera-se das hostes nacionais-sindicalistas. a alguém que pedia 100 quilómetros à hora, Dutra Faria responde que já vão mais depressa, "muitíssimo mais depressa". Sente-se de facto que o fervor reina entre os camisas azuis: as palavras são agressivas, as expressões triunfalistas, a confiança enorme: "Chefe, temo-lo. Confiança", escreve Tinoco em "Revolução". O mesmo tom se sente no resto da imprensa nacional-sindicalista. Ao banquete lisboeta seguem-se diversas acções que atestam o crescimento da onda a que se referem textualmente os adeptos de Rolão Preto. Pouco depois da noite entusiasta do Eduardo VII o chefe lança, no artigo "Forças" (nº 296) a ideia de uma "batalha de conferências" a realizar pelo País fora. O relatório do secretariado do movimento, redigido por Neves da Costa, respira ardor triunfalista. A geografia do movimento estende-se: no Porto, em Fevereiro de 1933, reúne-se pela primeira vez o secretariado nacional-sindicalista sob a chefia de Augusto Pires de Lima. O secretariado conta ainda com Melo Pires, Carlos Leite, Henrique Baptista e Alberto dos Santos. A cidade nortenha prepara aliás, para Maio, uma réplica à apoteose do Parque Eduardo VII. Na Madeira, o movimento toma pé pela mesma altura, como desde Março o noticia o diário lisboeta dos camisas azuis. Coimbra, a cidade universitária por excelência, a cidade clerical e retrógrada donde tinham saído, desde as primeiras horas do 28 de Maio, os primeiros ideólogos e mentores da "Revolução" - de lá vinham a "turma académica" constituída pelos ministros Salazar, Mendes dos Remédios e Manuel Rodrigues -, Coimbra torna-se num bastião do nacional-sindicalismo, a ponto de ali se realizar um banquete de fervor extremista da direita, centrado em torno de Eusébio Tamagnini, lente de Ciências e nacional-sindicalista, futuro ministro da Instrução Pública de 1934 a 1936, depois de ter ajudado Salazar a integrar o rebanho da Cruz de Cristo vermelha no bom aprisco da cinzenta União Nacional. Pois também Coimbra, cidade-universidade, ergueu pendões hitlerizantes. "Revolução" anuncia orgulhosamente que o movimento nacional-sindicalista conta na cidade do Mondego com a adesão dos seguintes lentes e docentes da Universidade local:

Direito
Luis Cabral Moncada, professor catedrático
Carlos Moreira, lente catedrático
João da Costa Leite Lumbrales, lente catedrático

Letras
Lopes de Almeida, lente catedrático
Gonçalves Rodrigues

Ciências
Eusébio Tamagnini, lente catedrático
A praia-mar nacional-sindicalista não se fica pela cidade dos lentes - quase todos eles futuros ministros de Salazar.
O movimento estrutura-se internamente e anuncia a divisão em quatro secções técnicas: secção economico-social, secção jurídica secção cultural e secção do ultramar. As zonas geográficas serão três, assim distribuidas pelos seus secretários nacionais-sindicalistas:

Norte - Augusto Pires de Lima (médico do Porto)
Centro - E. Tamagnini (professor em Coimbra)
Sul - Alçada Padrez (advogado em Lisboa)
A Cabral de Moncada cabe ainda a chefia da Secção Jurídica do nacional-sindicalismo. Estas quatro figuras ocupam, em torno de uma grande fotografia de Rolão Preto, a primeira página do nº 405 do "Revolução".
Em Faro, o nacional-sindicalismo tem um dos seus pontos mais fortes, ali se publicando O Nacional-Sindicalista. Em Janeiro, antes mesmo do banquete do Eduardo VII, Rolão Preto faz o balanço do movimento e conclui com esta nota de optimismo: "Éramos meia dúzia, somos hoje um exército". Assim parecia. O banquete tripeiro iria confirmar estas lisonjeiras esperanças. O secretariado nacional-sindicalista, ali criado, tentaria com êxito ultrapassar em entusiasmo e densidade de prosélitos tudo o que a capital conseguira no 18 de Fevereiro. Entretanto, noutros pontos do País, o movimento criava raízes: em Braga, onde António Dória é empossado como secretário distrital em Abril; na Guarda, onde o secretário do movimento conta com os nomes de Mário Guerra, Tavares Ferreira (advogado), João de Almeida (militar), Álvaro da Cunha Leal (médico), Filipe Aguiar (comerciante). Nesta cidade como noutras, a clientela social do nacional-sindicalismo parece recrutar-se de preferência entre as classes médias - os estratos sociais que Rolão Preto constantemente refere como a base social dum Estado orgânico guiado pelos camisas azuis - com perfeita ausência do operariado cujas simpatias Tinoco em vão procura captar com demagogias "bolchevistas", chagando ao ponto de dar razão a uma passagem de Marx e Engels acerca da burguesia.(4) Depois de citar o Manifesto Comunista, Tinco, o defensor oficial do obreirismo nacional-sindicalista, talvez mesmo o único sindicalista (ou candidato a tal) neste movimento sem sindicatos nem operários - convida os hipotéticos elementos do trabalho que lêem "Revolução" (ou a sua separata "Revolução dos Trabalhadores") a destruírem não só a "Democracia burguesa" como o "Comunismo que escraviza os homens". E Rolão Preto, numa fórmula que julga "social", pede: "É preciso que os muitos ricos o sejam um pouco menos, para que os muito pobres sejam menos pobres. Só assim se pode evitar a derrocada". O artigo intitula-se "O nacionalismo sindical" (Revolução nº 110) e reflecte uma ilusão progressista e social que não devia afinal atrair às fileiras encamisadas de azul muitos operários dispostos a receberem as sacrificadas migalhas dos tais "muito ricos" que, num arrebatamento socializante, ofereciam aos "muito pobres" com que serem "menos pobres"...

Notas:

(1) Há na Política de Aristóteles uma passagem capital sobre o modo como devem proceder os tiranos. Ei-la em resumo: Periandro, consultado por Trasíbulo sobre o melhor meio de governar, cortou em silêncio algumas espigas que se elevavam acima das outras. Trasíbulo compreendeu que devia desembaraçar-se dos cidadãos mais eminentes. O grego entendeu a parábola, Salazar também. E sempre que alguma espiga mais alta furava o alinhamanto horizontal da seara, a vigilante foice salazarista cortava-a. Fosse ela quem fosse. Salazar nunca se esqueceu do conselho dado a Trasíbulo. E aplicou-o sempre, com desvelo: todos abaixo dele. por isso nunca podia ter tolerado a restauração da realeza.

(2) Neste trabalho ficamo-nos pela primeira parte desse capítulo por razões óbvias...

3) "Em casa de Salazar não se encontram flores de tons violentos, apenas cores sem paixão: rosa, azul, branco..." escreve Christine Garnier no seu livro Férias com Salazar (Lisboa, 1952, pág. 122)

4) Veja, Comunismo e Nacionalismo - Diferenças -"semelhanças" de A. Tinoco, na habitual "página do operário" de Revolução (nº 141). Num nº anterior do jornal, Rolão Preto garante que o "Nacionalismo é revolucionário" e, no mesmo número, Tinoco transcreve uma passagem do Manifesto Comunista de Marx e Engels acerca da burguesia (artigo "A burguesia").