Friday, February 09, 2007

NOTAS SOLTAS SOBRE O CAPITALISMO


"Não nos falta comunicação, antes pelo contrário, temo-la em excesso, falta-nos criação. Falta-nos resistência ao presente."

Deleuze e Guattari

No domínio da Literatura terá sido Franz Kafka, aquele que eventualmente deu talvez a melhor descrição das muitas facetas da moderna sociedade capitalista. Um amigo conta a propósito da sua conversa com Kafka: "Mostrei a Kafka alguns livros novos publicados pela firma de Neubegauuer. À medida que voltava as folhas de um volume com ilustrações de George Grosz, disse:
Esta é a visão familiar do Capital - o homem gordo de chapéu alto roubando o dinheiro dos pobres.
É apenas uma alegoria, disse eu.
Franz Kafka franziu as sobrancelhas.
Você diz "apenas"! Nos pensamentos dos homens, a alegoria torna-se uma imagem da realidade, o que é naturalmente um erro, Mas o erro existe já aqui.
Quer dizer que a figura é falsa?
Não diria exactamente isso. É tanto verdadeira como falsa. É verdadeira apenas num sentido. É falsa visto que proclama que esta visão incompleta é toda a verdade. O homem gordo de chapéu alto senta-se nos ombros dos pobres. Correcto. Mas o homem gordo oprime os pobres dentro das condições de um dado sistema. Mas não é o próprio sistema. Nem sequer é o seu dono. Pelo contrário, o homem gordo está também preso, o que a figura não mostra. A figura não está completa. Por isso, não é boa. O capitalismo é um sistema de relações, que partem de dentro para fora, de fora para dentro, de cima para baixo e de baixo para cima. Tudo é relativo, tudo está preso. O capitalismo é uma condição tanto de mundo como da alma".
A sociedade burguesa é uma totalidade antagónica. Existe apenas através dos seus antagonismos e não pode esbatê-los. A totalidade é também uma inter-relação funcional, porque todos os indivíduos dependem da totalidade que formam. Além disso, cada qual sobrevive apenas através da unidade das funções que os seus membros desempenham.
A totalidade determina todos os particulares, que são aparências, factos de experiência imediata, em que o geral se manifesta. A dialéctica mostra a diferença entre o particular e o geral, ditada pelo geral.
Não há estado democrático universal, porque a única coisa universal no capitalismo é o mercado. O capitalismo funciona através de regras imanentes de fluxos descodificados (fluxos de dinheiro, fluxos de trabalho, fluxos de produtos...) Os estados nacionais constituem determinantemente os modelos de realização dessas regaras imanentes. Ora, os modelos de realização podem ser muito diversos (democráticos, ditatoriais, totalitários...) podem ser realmente heterogéneos, mas não deixam de ser por isso libertos em relação ao mercado mundial, na medida em que este não se limita a supor, mas produz também desigualdades de desenvolvimento determinantes. Por isso é que, como já muitas vezes foi notado, os estados democráticos estão tão ligados e comprometidos com os estados ditatoriais que a defesa dos direitos que a defesa dos direitos do homem tem de passar necessariamente pela crítica interna de toda a democracia.
Os direitos do homem são axiomas: podem coexistir no mercado com muitos outros axiomas, nomeadamente sobre a segurança da propriedade, que os ignoram ou os suspendem ainda mais do que os contradizem.
Quem é que pode assegurar a gerir a miséria dos bairros de lata, senão os polícias e os poderosos exércitos que coexistem com as democracias? Qual é a social-democracia que não deu ordem de disparar quando a miséria sai do seu território ou gueto? Os direitos não salvam os homens nem uma filosofia que se cola ao estado democrático. Os direitos do homem não nos farão abençoar o capitalismo. E é necessária muita inocência, ou muita manha, para uma filosofia de comunicação que pretende restaurar a sociedade dos amigos, formando uma opinião universal como "consenso" capaz de moralizar as nações, os estados e o mercado. Os direitos do homem não dizem nada sobre os modos de existência imanente do homem dotado de direitos. E a vergonha de se ser homem, não a experimentamos apenas nas situações extremas, mas em condições insignificantes, perante a baixeza e a vulgaridade da existência que assombra as democracias, perante a propagação desses modos de existência e de pensamento para o mercado, perante os valores, os ideais e as opiniões da nossa época.