Tuesday, January 30, 2007

DA CRIATIVIDADE COMO IDEALIDADE ÀS CONDIÇÕES REAIS DA CRIATIVIDADE

"A tendência dos artistas e das pessoas vivamente interessadas pela criação artística, para aceitar o ponto de vista da "arte pela arte", nasce e reforça-se na sequência do desacordo irremediável que existe entre eles e o meio social que os rodeia."

Plekhanov

A dimensão da criatividade individual presente no produto cultural desenrola-se ela própria sobre o fundo mais vasto das condições gerais da criação num momento histórico determinado e para uma classe social determinada.
É assim, por exemplo, que a genialidade, apesar de incomensurável com a média geral (por isso mesmo é dita genialidade), se não pode definir exclusivamente em termos de incomensurabilidade. Ela é o excepcional, e por isso distinta, mas ela também guarda algo de comum e de comunicável, sem o que jamais conseguiria materializar-se. Por mais inovador que seja, o compositor, por exemplo, inscreve-se sempre numa tradição musical - que, sem dúvida, poderá revolucionar, por meio de novos temas, técnicas, concepções, etc - utiliza materiais diversos que ele próprio não criou inteiramente, uma linguagem, preocupações estéticas, morais ou políticas, etc.
A criação cultural nunca se desenvolve, pois, no vazio. Ela surge de e em condições bastante precisas, em diálogo com as quais se mantém ao longo da elaboração ou modelação em que consiste. Estas condições não se opõem, de modo algum, a uma perspectiva de criação; muito pelo contrário, constituem a sua possibilidade real.
Contrariamente a certas das tais evidências dominantes, a existência de condições não é um obstáculo insuperável para a criação, que a impeça de poder verificar-se. É, sim, possibilidade indispensável de criação. Só há criação, transformação a partir de determinadas condições dadas. Não querer reconhecê-lo é perder de vista qualquer possibilidade de vir a considerar a criação enquanto fenómeno social real, para a condenar irremediavelmente a um desterro para as longínquas paragens da unificação ou da mistificação.
Porém, uma vez arredada a teia obscurantista dos preconceitos que tendem a encarar a criação artística como um produto ex nihilo engendrado no céu limpo e "puro" da fantasia espiritual, indispensável se torna ainda mostrar o modo concreto por que, na verdade, ela é repetidamente levada a cabo no plano cultural das sociedades humanas.
O artista não é, de forma alguma, um ser estranho que paira acima, ou adiante, da sociedade. A sua condição originária é a de um ser social, como no fundo, a de todo e qualquer homem.
Se ele é ou se sente marginalizado, se se encontra "adiantado"relativamente à sua época, ou incompreendido no seu poder visionário, isso não significa que ele esteja fora ou além da sociedade. Significa, sim, que essa é a forma concreta de uma sua determinada maneira de se relacionar com ela.
Aliás, ainda restaria ver, para sermos concretos, se essa possível marginalização ou incompreensão era imposta pela própria sociedade (isto é, por um conjunto de condições objectivas, entre as quais avultam, necessariamente, as atitudes directa ou indirectamente assumidas pelas classes dominantes), ou se, por outro lado, era procurada pelo próprio artista; se correspondia de facto a uma situação real ou se, pelo contrário, não traduzia mais que uma forma subjectiva de procurar sentir-se, precisamente, criador ou genial.
Importa, de facto, nunca esquecer que os marginalizados e os incompreendidos nem por isso deixam de estar em relação dialéctica com a sociedade. Isto torna-se muito claro sobremaneira a viver, segundo ligações tortuosas e de diverso tipo, que podem ir desde a mesada paterna até aos chorudos lucros provenientes de uma actividade literária que, paradoxalmente, se enquadra perfeitamente nos objectivos pluralistas e liberais do sistema.
Algo de semelhante se poderia dizer também dos eventualmente denomináveis marginalizados indiferentes, aqueles que, no fundo, se podem dar ao luxo de se estar nas tintas para o sistema, ou seja, aqueles que, de algum modo, dele acabam por beneficiar, quer já directamente, quer sob a forma de certeza de um futuro assegurado logo que o desvario da marginalização passe.
Por conseguinte, parece ficar bem claro que toda a criação artística se dá dentro de condições bem determinadas, quer respeitantes à estrutura fundamental da sociedade em questão e ao lugar aí ocupado pelo criador, independentemente da forma como ele deliberada ou conscientemente assume esse lugar.
Falar de criação artística fora destas condições é pois, cair no idealismo de supor uma arte desencarnada ou uma casualidade mágica seja de que tipo for. Ou seja, é considerar o fenómeno artístico e a criação fora do seu contexto real e, portanto de uma forma mistificada e mistificadora.
Este artigo foi escrito sob a influência directa da última obra de Peter Hammill The noise de 1993: "And it's all on offer, guaranteed natural, quality control assured, in the Great European Department Store..."