Tuesday, January 30, 2007

OS TRIBUNAIS E O ESTADO

Nos sistemas políticos ocidentais, os juízes são independentes. Mas independentes de quê? A resposta que geralmente se dá é que são independentes do governo no poder, perante o qual não se encontram obrigados. Pelo menos aqui, aplica-se o conceito da separação de poderes. E neste sentido específico, a noção de independência judicial tem inegáveis méritos.
Todavia, a noção da independência judicial exige uma análise mais pormenorizada, já que tende a obscurecer outros aspectos importantes do papel dos juristas nestes sistemas.
Um desses aspectos é que os juízes dos tribunais superiores e inferiores também não são nem podem ser independentes do rol de influências, nomeadamente, origem de classes, educação, situação de classe e tendência profissional, que contribuem para a formação da sua visão do mundo.
Notamos já, a este respeito, que a s elites judiciais, como outras elites do sistema de Estado, provêm na sua maioria das camadas média e superior da sociedade. Aqueles que têm uma origem diferente, terão ingressado naquelas camadas quando chegam a ocupar a cadeira de magistrados. Além disso, a tendência conservadora inerente à sua situação de classe é reforçada pelo facto de os juízes em muitos destes sistemas, serem recrutados na magistratura, cujas disposições ideológicas se moldam tradicionalmente segundo padrões conservadores. Nos países do capitalismo avançado, os juízes são indivíduos de tendências conservadoras quanto à organização económica, social e política da sociedade.
Acresce que os governos, que geralmente têm a seu cargo a nomeação e a promoção dos juízes, tendem a favorecer precisamente tendências conservadoras. Não obstante o preconceito ideológico dos magistrados, é um facto que advogados radicais têm atingido posições de relevo na magistratura. No entanto, não geralmente com a simpatia do poder que os nomeia. O mesmo acontece com juízes de tribunais inferiores que suscitaram a crença de serem movidos por impulsos reformadores. Particularmente os juízes de tendências liberais, têm conseguido lugares de destaque no sistema judicial de países como os Estados Unidos. Mas esses constituíram sempre uma minoria, embora o seu liberalismo, por mais admirável que seja, não deva ser tomado por hostilidade às instituições económicas e sociais da sociedade capitalista. O liberalismo desses juízes está contido na estrutura do capitalismo. Eles próprios teriam achado grotesca a ideia de que poderiam sentir qualquer predilecção por um sistema diferente. Tudo isto se aplica aos juízes liberais de todos capitalistas.
É óbvia a razão da importância destas tendências ideológicas - elas afectam o desempenho das funções judiciais. Os juízes não são máquinas de vender lei, nem prisioneiros indefesos de uma estrutura legal fixa, nem meros expoentes da lei. No sistema legal de todos estes países há lugar para o critério judicial na aplicação da lei e para a criatividade judicial. A infinita variedade dos problemas sociais e situações legais faz o critério de um elemento inevitável no processo judicial.
Ao interpretarem a fazerem as leis desta maneira, os juízes não podem deixar de ser profundamente afectados pela sua visão do mundo, a qual, por seu turno, determina a sua atitude para com os conflitos que nele ocorrerem. Podem também ver-se exclusivamente guiados por valores e conceitos que se elevam acima de considerações mundanas de interesses de classe e outros interesses específicos. Todavia, na sua aplicação concreta, estes exemplos vão por vezes patentear uma posição e um preconceito ideológico distintos e identificáveis, na maioria dos casos de um tipo marcadamente conservador. Palavras com "os juízes deviam empenhar-se no princípio de que o objectivo da sociedade e de todas as suas instituições é alimentar e enriquecer o desenvolvimento de espírito de cada ser humano" são, infelizmente, sujeitas a interpretações diversas e contraditórias; não são de algum modo garantia contra qualquer tipo de preconceito, apenas uma capa para ele.
Os próprios juízes estão por vezes conscientes dos seus preconceitos. "O espírito da época, tal como se nos revela, é muitas vezes o espírito do grupo em que, por nascimento, educação, ou ocupação profissional, nos situamos." Palavras de um juiz americano. Esta consciência é acompanhada de um desejo autêntico de vencer partidarismos. Falta saber se chega...
Porém, regra geral, o êxito de tal objectivo depende do impacto social que provoca. Quanto menos crucial for a textura social das questões em jogo, quanto menos afectadas forem as relações entre capital e trabalho, quanto menos afectadas forem as relações entre capital e trabalho, quanto menos em causa estiver a segurança do Estado e a segurança da ordem social, mais probabilidades há de vencer partidarismos. Além disso, os preconceitos são menos evidentes em períodos de relativa acalmia social, do que em período de conflito social agudo.
Nos caso em que as questões em jogo têm ou parecem ter influência directa, ou mesmo indirecta, na constituição da ordem social, particularmente em épocas de crise, os juízes não estão dispostos a reconhecer a sua parcialidade, nem tão pouco eles desejam evitar uma parcialidade que os seu instinto ou a atitude mental lhes dizem ser o seu dever.
Quando se condenam jornalistas por desprezo do tribunal porque se recusarem a revelar as suas fontes os tribunais parecem aderir à proposição de que o mais dever de cidadão é para o Estado. tais sentimentos têm desde sempre movido as elites judiciais. Um dos exemplos extremos deste século da parcialidade judicial, em qualquer sistema político, foi o flagrante preconceito dos juízes alemães durante a República de Weimar a favor de criminosos e vândalos da extrema-direita, por um lado, e contra a extrema-esquerda, por outro. É no entanto de duvidar que estes juízes sentissem que estavam a trair o seu dever judicial. Pelo contrário, é mais provável que eles julgassem que o cumpriam ao revelar grande tolerância para com os homens que combatiam a subversão comunista, e estrema severidade para com aqueles que, aos olhos dos juízes, eram os agentes da subversão.
Trata-se sem dúvida de um caso extremo. Mas a verdade é que nos países de capitalismo avançado os juízes têm-se mostrado contra todos os dissidentes de esquerda. Quanto mais acentuada a dissidência, mais agressiva a hostilidade judicial. Neste capítulo, o critério judicial tem sido utilizado para apoiar, e não para obstruir, as tentativas que os governos e as legislaturas têm feito para aplacar ou suprimir opiniões e actividades dissidentes. É verdade que os tribunais têm por vezes ajudado a refrear a intolerância doutros sectores do sistema de Estado, e a importância deste facto não deve ser substimada. mais frequentemente, porém, particularmente em épocas de crise social, os juízes têm revelado uma predisposição para compartilhar o zelo da autoridade repressiva e para considerar como mal menor o subquente desgaste das liberdades cívicas.
Pode argumentar-se que há formas de legislação repressiva ou de acção executiva que pouco espaço deixam para o exercício do critério judicial - casos que o juiz, se decidir aplicar a lei, tem de aplicá-la com a severidade desejada por aqueles que a promulgaram. Mas a aplicação judicial da lei e a aceitação judicial dos esforços repressivos de governos e legislaturas não constituem simplesmente uma aplicação "neutra" da função judicial. Constituem, sim, um acto político de importante significado, que oferece a esses governos e legislaturas um elemento preciosos de legitimação. Onde não existe critério a única opção aberta aos juízes, face à repressão do Estado, é pedirem a demissão. Não é uma opção a que muitos juízes tenham julgado necessário recorrer. De qualquer maneira, há sempre uma certa medida de critério judicial, e, se é verdade que os tribunais o têm aproveitado algumas vezes em favor dos dissidentes, a regra geral tem sido aproveitá-lo para fortalecer a atitude do estado contra os dissidentes.
Isto integra-se no preconceito geral que os tribunais, preocupados com proteger a "sociedade" (isto é, sociedade onde existe desigualdade de classes), têm constantemente demonstrado a favor dos privilégios, da propriedade e do capital. Assim, a história do sindicalismo nos países capitalistas é também a história de uma luta interminável contra os esforços dos tribunais para impedir que os sindicatos defendam os interesses dos seus membros. Além de secundarem os esforços dos governos e das legislaturas contra os sindicatos, os tribunais tém inúmeras vezes tomado a iniciativa e procurado, através do exercício da criatividade judicial na interpretação dos estatutos, reduzir ou anular direitos sindicais e da classe operária que até governos e legislaturas conservadoras, sob pressão, tinham aprovado e promulgado.
É um facto que, à semelhança dos governos e dos interesses capitalistas, os juízes reconhecem que os sindicatos, longe de constituírem uma ameaça à "sociedade", podem na realidade contribuir consideravelmente para a sua "estabilidade", limitando o conflito social, em vez de exarcerbá-lo. Por consequência, as atitudes do poder judicial para com os direitos sindicais têm deixado de ser definidas em termos de uma hostilidade incessante que, de qualquer maneira, teria sido difícil sustentar sem expor os juízes a críticas prejudiciais.
Mesmo assim, os assalariados e as organizações para a sua defesa nunca estão inteiramente a salvo dos ataques do sistema judicial aos seus direitos. Talvez menos descaradamente do que no passado, mas de qualquer maneira provocando igual impacto, o critério judicial continua a ser uma ameaça permanente, não só ao "poder compensatório" que os trabalhadores conseguiram criar ao longo dos anos, como também à afirmação de militância desse poder.
Os tribunais têm sempre considerado um dos seus principais deveres para com a "sociedade" proteger os direitos de propriedade contra tentativas que o Estado tem sido forçado a fazer para limitar o âmbito de acção dos tribunais. O sector judicial não tem conseguido impedir a "interferência" do Estado nas liberdades dos possuidores de propriedade. Gradualmente, os juízes têm vindo a aceitar aquilo a que um jurista chamou a passagem do "liberalismo individualista" para o "colectivismo não sistemático". No entanto, os juízes não têm deixado de fazer tudo quanto está ao seu alcance para limitar e retardar essa transformação. Em nenhum outro campo têm eles sido guardiões mais vigilantes do "cidadão" contra o Estado.
Em resumo, o sector judicial comporta-se perante os conflitos da sociedade capitalista exactamente da mesma maneira de que qualquer outro sector do sistema de Estado. Os juízes têm estado profundamente envolvidos nesses conflitos. De todas as classes, tem sido a classe dominante aquela que menos se tem queixado da natureza e orientação desse desenvolvimento.