ESTADO, REFORMA E REPRESSÃO
O facto político mais importante nas sociedades capitalistas avançadas é a continuação do poder económico privado e cada vez mais concentrado. Em consequência desse poder, os homens - possuidores e controladores - que o detêm gozam de uma preponderância maciça na sociedade e na determinação das políticas e acções do Estado.
Dada esta permanente preponderância, constitui um dos grandes mitos da época dizer que se trata de países que há muito alcançaram a igualdade política, independentemente da situação económica e social a igualdade política avançado. A vida económica não pode separar-se da vida política. O poder económico desigual, à escala e do tipo que vamos encontrar nas sociedades capitalistas avançadas, produz inerentemente a desigualdade política.
Do mesmo modo, é o contexto capitalista de desigualdade generalizada em que o Estado opera, que determina basicamente as suas políticas e acções. O ponto de vista prevalecente é que o Estado, nestas sociedades, poder ser, e é-o em grande parte, o agente de uma ordem social "democrática", sem preconceito intrínseco contra qualquer classe ou grupo. E se, ocasionalmente, se desvia da "imparcialidade", isso ficará a dever-se a qualquer factor externo, acidental, alheio à sua "verdadeira" natureza. Também aqui estamos perante um conceito errado: o Estado nestas sociedades de classes é, primeiramente e inevitavelmente, guardião e protector dos interesses económicos dominantes. O seu "verdadeiro" objectivo e missão é garantir o predomínio desses interesses e não impedi-los.
Contudo, o modo com o Estado cumpre esse papel e o grau em que se manifesta o seu preconceito, variam segundo o lugar e as circunstâncias. A manutenção de uma ordem social caracterizada pela dominação de classes poderá implicar a instituição da ditadura do Estado, a supressão de toda a oposição, a abolição de todas as garantias constitucionais e liberdades políticas. Mas tal não tem acontecido nos países de capitalismo avançado. Com algumas excepções, a dominação de classes nestas sociedades tem permanecido compatível com uma vasta gama de liberdades políticas e civis, e o seu exercício tem sem dúvida sectores da sociedade civil. O principal agente desse atenuamento tem sido o Estado, o que ajuda a compreender o motivo por que lhe tem sido possível apresentar-se, e ser aceite, como servidor da sociedade. De facto, esta função atenuante não anula o domínio de classes, e até serve para garanti-lo.
É absolutamente verdade que nos regimes capitalistas avançados as liberdades políticas e civis têm estado estreitamente circunscritas pela estrutura económica, social e política em que têm existido; que, na prática, essas liberdades têm sido muitas vezes infringidas e, particularmente em época de crise, ainda mais drasticamente limitadas; que as garantias constitucionais não têm impedido a descriminação e opressão sistemática de minorias, como a dos negros ou dos ciganos; que as liberdades de que gozavam os cidadãos dos países capitalistas metropolitanos quase nunca existiam nos territórios que sucumbiram à ocupação imperialista; e que, com toda a sua retórica democrática e liberal, estes regimes se revelaram capazes de crimes abomináveis para proteger os seus sórdidos interesses.
Todavia, depois de ficar tudo dito quanto aos limites e ao carácter contingente das liberdades cívicas e políticas das democracias burguesas, e depois de ficar bem explícito que estas liberdades são uma simples capa para a dominação de classes, é preciso referir que muitos outros aspectos têm constituído elementos importantes e valiosos na vida das sociedades capitalistas avançadas; além disso, eles têm afectado materialmente o confronto entre estado e cidadão e entre classes dominantes e classes subordinadas.
É confundir os factos acreditar e pretender que, porque as liberdades burguesas são inadequadas e estão constantemente ameaçadas pelo desgaste social, não têm vastas repercussões. Com todas as enormes limitações e hipocrisias, vai uma grande distância da democracia burguesa às várias formas de autoritarismo conservador, particularmente o fascismo, que tem constituído o principal tipo de regime político de alternativa para o capitalismo avançado. Aquilo que devemos salientar na crítica das liberdades burguesas não é, ou não deveria ser, que elas têm vastas repercussões, mas sim que elas são profundamente inadequadas e têm de ser alargadas pela transformação radical do contexto económico, social e político que as condena à inadequação e ao desgaste.
Efectivamente, a grande questão que se põe em relação aos regimes capitalista, é quanto tempo a sua estrutura democrático-burguesa poderá continuar a ser compatível com as necessidades e os objectivos do capitalismo avançado; se as suas contradições económicas, sociais e políticas são de molde a tornar inoperante a ordem política em que de uma maneira geral se têm acomodado.
Foi esta a questão que se pôs insistentemente acerca dos regimes capitalistas no final da década de vinte e nos anos trinta, quando o fascismo e o nazismo pareceram a muita gente de esquerda, e não só, anunciar o rumo que o capitalismo liberal iria seguir em muitos países, que não a Itália e a Alemanha. Em décadas posteriores, essa questão afogou-se na celebração da democracia ocidental, do mundo livre, do estado social, da sociedade da abundância, do fim da ideologia e do equilíbrio pluralista. Ter posto de novo essa questão ainda há alguns anos teria parecido ridículo ou perverso, mas de qualquer modo obsoleto. O que quer que se dissesse sobre as deficiências económicas, sociais e políticas do capitalismo (e a tendência era ilogiá-lo, ou antes, elogiar a sociedade "pós-capitalista"), pelo menos considerava-se que os alicerces liberais e democráticos estavam seguros, imunes à contestação, excepto no tocante à ameaça desferida pela Esquerda.
Nos últimos anos, porém, essa velha questão voltou à superfície, sendo posta com frequência cada vez maior e não exclusivamente pela Esquerda. Isto não surpreende, dadas as tendências reveladas pelo capitalismo avançado e pelo sistema político a ele associado. Não se trata de uma questão de haver perigo eminente de a democracia burguesa resvalar para o fascismo de estilo antigo. O que se verifica é que as sociedades capitalistas avançadas estão sujeitas a tensões mais agudas do que há muito tempo haviam experimentado, e que a sua incapacidade para resolver essas tensões cria condições para uma evolução para formas mais ou menos acentuadas de autoritarismo conservador.
Há várias razões que nos levam a ter esta visão das perspectivas políticas destas sociedades, mas a mais fundamental reside, por fatal paradoxo no seu êxito produtivo. Na realidade, à medida que a capacidade material do sistema económico revela a um ritmo crescente a sua promessa imensa de libertação humana, também a sua incapacidade para ajustar rendimento a promessas se torna mais nítida. A contradição não é de hoje. No entanto, revela-se mais claramente com os avanços da produção e da tecnologia.
Para satisfazer as suas potencialidades humanas, as sociedades industriais avançadas exigem um elevado grau de planeamento, coordenação económica, emprego premeditado e racional dos recursos materiais, a uma escala nacional e internacional. Contudo, as sociedades capitalistas avançadas não podem conseguir isto dentro dos limites de um sistema económico que continua essencialmente voltado para os objectivos privados daqueles que possuem e controlam os seus recursos materiais.
Do mesmo modo, estas sociedades exigem um espírito de sociabilidade e cooperação dos seus membros, um sentido de envolvimento autêntico e de participação, que são inatingíveis num sistema cujo impulso dominante é a apropriação privada. Diz-se a todo o momento que a indústria é uma associação de homens, uma empresa cooperativa, uma aventura social. É isto certamente que ela necessita de ser, mas que a própria natureza do sistema capitalista torna impossível. Os dois lados da indústria permanecem em conflito, em permanente e inevitável oposição. Na verdade, toda a sociedade, mergulhada como está num miasma de concorrência e comercialismo, é um campo de batalha, cada vez mais activo, mas sem perspectiva de paz verdadeira.
Sem dúvida que a suplantação do capitalismo, por outras palavras, a apropriação para o domínio público da maior parte dos recursos da sociedade não pode, por si só, resolver todos os problemas associados à sociedade industrial. Aquilo que pode fazer, contudo, é levantar as grandes barreira que obstruem uma solução e, pelo menos, criar a base de uma ordem social racional e humana.
É a necessidade de suplantar o capitalismo que todos os orgãos de legitimação procuram ocultar. Mas elas não podem esconder a discrepância entre promessa e rendimento. Não podem esconder o facto de que, embora sejam sociedades ricas, continuam a existir nelas vastas áreas de pobreza; de que as medidas colectivas que tomam nos campos de saúde, bem estar social, educação, habitação, ambiente social, ainda não satisfazem as necessidades; de que o ethos igualitário que proclamam é desmentido pelos privilégios e desigualdades que conservam; de que a estrutura de dominação e sujeição; e de que o sistema político de que se vangloriam é uma versão corrupta e defeituosa de uma verdadeira ordem democrática.
A consciência destas discrepâncias de modo algum conduz automaticamente à rejeição pode ser muitas vezes a favor de pseudo alternativas que são perfeitamente funcionais e, logo, se derrotam a si próprias. De facto, a experiência tem demonstrado cabalmente que a conversão de uma consciência de males profundos numa vontade de transformação socialista é um processo doloroso, complexo, contraditório, molecular, que pode ser grandemente retardado, desviado e distorcido por um número infinito de factores.
No entanto, o clima de todas as sociedades capitalistas avançadas é corroído por um profundo mal-estar, por um sentido de possibilidades individuais e colectivas por satisfazer. Não obstante tudo o que se diz sobre integração, aburguesamento, e outras coisas do género, nunca esse sentido foi mais agudo do que agora; e nunca, em toda a história do capitalismo avançado, houve uma época em que um maior número de pessoas estivesse mais consciente da necessidade de mudança e reforma. Nem tão pouco alguma vez houve mais homens e mulheres que, embora não sejam movidos por intenções revolucionárias, estejam mais decididos a agir em defesa dos seus interesses e expectactivas. O alvo imediato das suas reivindicações pode ser o patrão, a autoridade universitária ou o partido político. Porém, é com o Estado que os homens constantemente deparam nas suas relações com outros homens; é para o Estado que eles se voltam sempre como alvo das suas pressões; e é do Estado que eles esperam a satisfação dos seus anseios.
Confrontados com estas pressões e conscientes do mal estar geral que se produz, os detentores do poder respondem de duas maneiras. Em primeiro lugar, proclamam a sua vontade de introduzir reformas. Nunca a linguagem da política foi mais generosa com palavras com reforma, renovação, e até revolução. Nenhum político, por mais reaccionário, é agora simplesmente conservador. Poderemos não ser todos "socialistas", e não o somos seguramente: mas todos somos ardentes reformadores sociais. Muita da retórica que agora se usa na linguagem política é totalmente falsa. Mas não toda. Seria trivial e demasiado simplista pintar os homens cujas mãos detêm o poder de Estado como inteiramente indiferentes à pobreza, às barracas, ao desemprego, à educação inadequada, aos parcos serviços sociais, à frustração social e a muitos outros males das suas sociedades. Tal visão ocultaria o fulcro da questão.
O problema não reside nos desejos e nas intenções dos detentores do poder, mas antes no facto de que os reformadores, com ou sem aspas, são prisioneiros, e muitas vezes prisioneiros voluntários, de uma estrutura económica e social que, necessariamente, transforma as suas proclamações de reforma, por mais sinceras que sejam, em verborréia.
Por exemplo, em relação aos países subdesenvolvidos na América Latina, se eles recebessem um auxílio totalmente desinteressado, o que não acontece, esse auxílio seria anulado pelas estruturas económicas, sociais e políticas e administrativas que dominam a sua existência, e que aqueles que dão o auxílio estão verdadeiramente interessados em preservar. Trata-se de um aspecto extremamente válido quanto à acção do Estado em reformas levadas a cabo no contexto do capitalismo avançado. Essa acção ter que ser circunscrita aos limites estruturais criados pelo sistema económico em que ocorre. Esses limites são frequentemente descritos como os limites inevitáveis impostos à acção do Estado por um sistema político "democrático". Mais precisamente, trata-se de limites impostos pelos direitos de propriedade e por um poder económico desigual, os quais o Estado prontamente aceita e defende.
Em tais circunstâncias, a reforma é evidentemente possível. Mas, salvo casos excepcionais, em que a pressão popular é invulgarmente forte, essa reforma é também inadequada e incapaz de resolver os problemas e afastar as razões de queixa que inicialmente deram origem à pressão para se operar a mudança. Este tipo de reforma pode até ajudar a atenuar pelo menos algumas das mais graves disfuncionalidades da sociedade capitalista. E, tal como repetidas vezes salientamos, esta atenuação é efectivamente uma das mais importantes atribuições do Estado, uma parte intrínseca e dialéctica do seu papel de guardião da ordem social. Todavia, a reforma é sempre mais reduzida do que a promessa: os cruzados que iriam atingir novas fronteiras, para criar a grande sociedade, eliminar a pobreza, abolir a luta de classes, garantir justiça para todos, etc, etc, - esses cruzados detêm-se sistematicamente na sua caminhada, e o Estado volta a estar sob pressões renovadas e aumentadas.
Ao encontro da contestação, o Estado exerce uma segunda opção, ou seja, a repressão. Por outras palavras, reforma e repressão andam de mãos dadas. Não são opções de alternativa, antes complementares. No entanto, tal como a reforma se revela incapaz de aplacar as pressões e os protestos, o mesmo acontece contra a subversão, etc. Confrontados com problemas irresolúveis, aqueles que comandam as alavancas do poder vêem-se cada vez mais obrigados a desgastar os elementos da democracia burguesa através dos quais se exerce a pressão popular. O poder das instituições representativas é de novo reduzido, ficando o executivo mais isolado delas . A independência dos sindicatos desaparece, e os direitos sindicais, particularmente o direito à greve, são rodeados de novas inibições, mais severas ainda. O Estado tem de se armar de meios de repressão mais vastos e eficientes, procurar definir mais rigidamente o âmbito da dissensão e oposição "legítimas", e lançar o pânico entre aqueles que ultrapassam os limites.
Este processo têm tendências fortemente cumulativas. A repressão, como a reforma, não alcança os seus propósitos. Pelo contrário, quanto mais o Estado procura reprimir, maior a oposição que provoca. E quanto mais oposição provoca, maiores os poderes que tem de invocar. É neste caminho que se situa a transição da democracia burguesa para o autoritarismo conservador. Esta transição não precisa de assumir um carácter dramático, nem tão pouco exige uma modificação violenta das instituições. Nem o seu avanço, nem o resultado final, têm de ser idênticos ao fascismo dos anos entre guerras. Na verdade, é muito improvável que assuma as formas particulares do fascismo continua a suscitar. Na realidade, o uso do fascismo como ponto de referência tende perigosamente para esconder alternativas menos extremas que não exigem o desmantelamento total de todas as instituições democráticas, a subversão total de todas as liberdades, nem certamente o abandono de uma retórica democrática. Não é difícil conceber formas de autoritarismo conservador que não seriam fascistas à velha maneira, que reclamariam o seu carácter "democrático" precisamente por não serem fascistas, e cujo estabelecimento seria defendido nos melhores interesses da própria "democracia".
Não se trata de uma projecção distante num futuro improvável: descreve um processo que já está em curso e que, dadas as características do capitalismo avançado, deverá acentuar-se. A transição gradual do capitalismo para o socialismo poderá ser um mito; já o não será a transição gradual da democracia burguesa para formas mais ou menos pronunciadas de autoritarismo.
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