Thursday, February 22, 2007

A PERSONALIDADE AUTORITÁRIA

"O horror e a civilização são inseparáveis. Não se pode abolir o horror e manter a civilização."

Horkheimer e Adorno

No princípio do ano, um grande semanário da capital promovia um inquérito a algumas centenas de pessoas, para tentar apurar quais teriam sido os principais acontecimentos do ano de 1992, quer a nível nacional quer a nível internacional.
No que respeita aos acontecimentos a nível internacional que mais chamaram os entrevistados, destacava-se entre outros o fenómenos crescente da xenofobia e do racismo. É justamente sobre esta temática que é importante realizarmos aqui uma breve mas concisa reflexão. Não iremos salientar tanto o aspecto social do problema mas mais a questão psicológica, no intuito de chegarmos a um conjunto de características básicas visto que já foi realizada há mais de quarenta anos com a direcção de dois dos mais destacados filósofos da chamada Escola de Francoforte. Refiro-me naturalmente a Max Horkheimer e a Theodor W. Adorno.
A obra de conjunto, com inúmeros contributos que levaram a cabo, tem justamente a título de "A Personalidade Autoritária", data de 1950 e espraia-se por qualquer coisa como 1000 páginas.
Tendo em conta o recrudescimento dos movimentos neo-nazis e racistas fundamentalmente em França e na Alemanha posterior à unificação, e que através de certas manifestações desportivas tudo indica que já chegaram em força a Portugal, é oportuno relembrar aqui tópicos essenciais desse trabalho, visto que foi realizado durante os anos difíceis da guerra e do pós-guerra.
A Personalidade Autoritária é considerada por alguns como uma das obras-chave da ciência social empírica moderna que operou a união da teoria alemã com o empirismo americano que provou ser altamente produtiva. Não esquecer que Horkheimer e Adorno fugiram da Alemanha para os Estados Unidos quando da subida ao poder do nazismo.
Em termos de orientação básica, o estudo significa uma mudança na ênfase para a Teoria Crítica (nome dado por Horkheimer à sua filosofia) em geral e para o seu interesse pelo fascismo em particular. A mudança não indica uma decisão de ignorar os factores sócio-económicos (influência recebida do Marxismo) objectivos, mas antes uma mudança de ênfase para os aspectos psicológicos subjectivos do problema e sobre a possível melhoria da situação através da reeducação. Horkheimer diz: "Podem chocar o leito o facto de termos salientado os aspectos pessoais e psicológicos mais do que os sociais do preconceito. Isso não se deve a uma preferência pessoal pela análise psicológica nem a uma falha em verificar que a causa da hostilidade irracional se deve, em última instância, encontrar na frustração e injustiça sociais. O nosso objectivo não é meramente descrever o preconceito mas explicá-lo, a fim de ajudar à sua erradicação... A erradicação significa reeducação cientificamente planeada na base da compreensão a que se chegou cientificamente."
Em vista do holocausto nazi, a ordem do dia é evitar ou reduzir a virulência da próxima revolta. Esta posição teórica e prática é um afastamento da posição marxista clássica do primado da infra-estrutura , ou seja, a anulação da tese de que "Não é a consciência dos homens que determina o seu ser, mas, pelo contrário, o seu ser social que determina a sua consciência."
É igualmente um afastamento da filosofia social pessimista ou seja, da doutrina da inevitabilidade do colapso da civilização burguesa para a crença na possível reeducação dos membros da sociedade capitalista.
O estudo respeita à investigação da inter-relação entre os síndromas de personalidade e a susceptibilidade ao preconceito (Muitos dos acontecimentos que têm tido lugar em França e sobretudo na Alemanha continuam a ter a sua explicação através desta relação). O problema consiste em estabelecer a correlação entre "os traços de personalidade profundamente enraizados e o preconceito aberto e avaliar estes traços por meio de uma abordagem interdisciplinar.
Os autores afirmam assim a sua principal hipótese: "A investigação a relatar neste volume foi guiada pela seguinte hipótese principal: que as convicções políticas, económicas e sociais de um indivíduo formam muitas vezes um modelo amplo e coerente, como se ligado por uma "mentalidade" ou "espírito"; e que neste modelo é uma expressão de tendências profundas na sua personalidade.
O principal alvo era o indivíduo potencialmente fascista, aquele cuja estrutura é tal que o torna particularmente susceptível à propaganda antidemocrática."
Os autores tinham no espírito um modelo definido da personalidade autoritária muito antes de iniciarem este estudo empírico. Erich Fromm também abordou o problema do autoritarismo no seu livro, Fuga à Liberdade, também escrito em Francoforte. Comparou o "carácter sadomasoquista", típico da classe média inferior alemã, com o carácter autoritário e considerava-o mais susceptível à ideologia nazi. Como afirma: " Pelo termo "carácter autoritário", significamos que ele representa a estrutura da personalidade que é a base humana do fascismo".
Os autores de A Personalidade Autoritária reconhecem a sua profunda dependência quanto a Freud: "Para a teoria como para a estrutura da personalidade baseámo-nos muito em Freud...". É evidente que os autores sabem do difícil problema da operacionalização da teoria psicanalítica de Freud, a partir da afirmação: " Um desafio metodológico particular foi imposto pela concepção dos níveis na pessoa; isso tornou necessário criar técnicas de levantamento de opiniões, atitudes e valores que estavam à superfície, para revelar tendências ideológicas que estavam mais ou menos inibidas e atingiram a superfície apenas em manifestações indirectas, e para trazer à luz forças da personalidade que jaziam no inconsciente do sujeito".
Utilizando uma combinação de diversas técnicas, como questionários, entrevistas profundas e teste projectivos, A Personalidade Autoritária tentou penetrar em diversos níveis da estrutura da personalidade desde o nível de "superfície" ao nível de "inconsciente". Para o primeiro, os questionários - que eram menos dispendiosos - foram utilizados; para o último, foram usadas as entrevistas profundas, cujas resultados, por sua vez, ajudaram a melhorar os questionários em todas as fases do projecto.
O estudo começa com uma investigação sobre a ideologia anti-semítica. Como é afirmado pelos autores: "Uma das formas mais anti-democráticas da ideologia social é o preconceito, e dentro deste contexto o anti-semitismo fornece um frutuoso ponto para um estudo psicológico social". Como movimento social, o anti-semitismo é claramente uma das maiores ameaças à democracia. O anti-semitismo "é um dos mais poderosos veículos psicológicos para os movimentos antidemocráticos e fornece... talvez a mais eficiente ponta de lança para um ataque frontal a toda a estrutura social..."
O problema foi a investigação das crenças sobre os judeus como base para atitudes anti-semíticas contra eles. Foram estabelecidas cinco sub-escalas para avaliar as crenças estereotipadas sobre os judeus - agressividade, ofensividade, ameaças, isolamento, intrusão - além do desejo de os segregar. As cinco sub-escalas foram depois combinadas na "Escala Total Anti-Semitismo (A-S)", que se "destinava a avaliar a prontidão do indivíduo para apoiar ou se opor à ideologia anti-semítica como um todo". A escala baseava-se na concepção da ideologia das "opiniões negativas estereotipadas que descrevem os judeus como ameaçadores, imorais e categoricamente diferentes dos não-judeus, e atitudes hostil exigindo várias formas de restrição, exclusão e supressão como meio para resolver "o problema judeu".
A intercorrelação entre as sub-escalas e de cada uma com a escala total A-S era suficientemente elevada para dar apoio "à hipótese de que o anti-semitismo é uma estrutura geral do espírito". A fase seguinte dedicava-se ao preconceito amplamente concebido, ou seja, descobrir se o anti-semitismo é parte de uma ideologia etnocêntrica mais ampla. O etnocentrismo foi definido como a ideologia etnicamente centrada que aceita os membros do "grupo inferior" (ingroup) e rejeita os do "grupo exterior" (outgroup).
A estrutura da ideologia etnocêntrica geral incluia como sua principal característica a distinção grupo interior - grupo exterior como base para um pensamento social. Os grupos exteriores principais foram identificados como judeus, negros, membros das classes sócio-económicas inferiores, e radicais. Os autores resumem a ideologia do etnocentrismo: "O etnocentrismo baseia-se numa distinção grupo interior - grupo exterior penetrante e rígida: envolve imagens negativas estereotipadas e atitudes hostis em relação aos grupos exteriores, imagens positivas estereotipadas e atitudes e atitudes submissivas em relação aos grupos interiores, e uma visão hierárquica, autoritária da interacção do grupo em que os grupos interiores são justamente dominantes, os grupos exteriores subordinados".
Foi então criada uma escala do etnocentrismo com vários subescalas (negros, minorias, patriotas) a fim de avaliar opiniões e atitudes pseudo-democráticas e abertamente anti-democráticas. As subescalas estavam combinadas na escala "Etnocentrismo Total (E)", que foi de novo administrada aos sujeitos. Houve de novo uma elevada intercorrelação entre as subescalas. O resultado da análise estatística das subescalas apoiava a hipótese de que "existe uma coisa como a ideologia etnocêntrica geral".
O terceiro passo incide sobre a ideologia económica política como uma expressão das forças políticas e económicas da sociedade e a sua relação com o etnocentrismo. A ideologia é definida como " um sistema organizado de opiniões, valores e atitudes". Apesar de ser costume comparar ou, pelo menos, correlacionar tanto o extremismo de direita como o de esquerda com o etnocentrismo, os autores acreditam que "o fascismo, que representa a mais extrema estrutura e ideologia da ala direita política e económica, é também a mais virulenta forma anti-democrática do etnocentrismo".
Dado que nenhuma destas posições extremas constitui qualquer ameaça real para a sociedade americana, o estudo incide sobre o liberalismo versus conservadorismo. Baseado em estudos anteriores, "há provas consideráveis que sugerem uma afinidade psicológica entre o conservadorismo e o etnocentrismo, o liberalismo e o anti-etnocentrismo". Por isso, foi feita uma tentativa para avaliar a ideologia política-económica ao longo de uma dimensão libaralismo-conservadorismo, utilizando uma escala Conservadorismo Político-Económico (PEC). As descobertas mostraram uma relação estatisticamente significativa, apesar de quantitativamente imperfeita, entre o conservadorismo e o etnocentrismo, entre o liberalismo e anti-etnocentrismo.
Em seguida, abordou-se a religião, mas os factores objectivos (denominação e frequência eclesial) não provaram ser muito significativos. Em seguida, a "Escala F" tentou avaliar tendências anti-democráticas implícitas. Na base das investigações até esse ponto, identificaram-se algumas variáveis que formaram o conteúdo básico da escala F (F=fascismo). São as seguintes as variáveis e as suas definições:
1. Convencionalismo. Adesão rígida a valores convencionais, de classe média.
2. Submissão autoritária. Tendência para procurar e condenar, rejeitar e punir pessoas que violam os valores condicionais.
3. Agressão autoritária. Tendência para procurar e condenar, rejeitar e punir pessoas que violam os valores convencionais.
4. Anti-intracepção. Oposição ao subjectivo, ao imaginativo, ao compassivo e terno.
5. Superstição e estereotipia. A crença em determinantes místicas do destino do indivíduo; a disposição para pensar em categorias rígidas.
6. Poder e "Dureza". Preocupação com a dimensão submissão-dominação, forte-fraco, dirigente-seguidor; identificação com figuras do poder; sobrevalorização dos atributos convencionalizados do eu; asserção exagerada da força e dureza.
7. Destrutividade e cinismo. Hostilidade degeneralizada, aviltamento do humano.
8. Projectividade. A disposição para acreditar que as coisas rudes e perigosas continuam no mundo; a projecção exterior de impulsos emocionais inconscientes.
9. Sexo. Preocupação exagerada com "comportamentos" sexuais.

A questão é, porquê e como desenvolve a personalidade autoritária estas características? Na base da análise das entrevistas com 45 indivíduos preconceituosos e 35 não preconceituosos da amostra original de 2099, os autores apresentam a teoria dos modelos de desenvolvimento que produz as personalidade autoritárias e não-autoritárias.
Salienta-se como a sua mais importante descoberta a íntima correspondência da abordagem do sujeito e a sua procura em zonas tão diferentes como a família e o ajustamento sexual, a religião e a filosofia social e política. O pensamento e comportamento estereotipados, hierárquicos e dicotómicos de termos de relações grupo interior - grupo exterior e de superordenações e subordinações é característico da personalidade autoritária - cujas origens remontam às relações pais-criança como principal factor de influência.
Os autores reconhecem as limitações do estudo porque ele incide exclusivamente nos aspectos psicológicos e assim exclui os factores históricos e as forças económicas. As limitações devem-se em parte ao tamanho da amostra. Nas suas palavras: "Apenas num estudo verdadeiramente representativo seria possível avaliar quantitativamente a soma do preconceito na nossa cultura, determinar a validade geral da correlações de personalidade salientadas neste volume".
Apesar disso, sublinha-se a possibilidade e a necessidade de tratamento dos sintomas da doença, preconceito, porque "ficamos, por vezes, muito contentes por podermos controlar uma doença mesmo se a não podemos curar". O principal resultado do estudo vê-se, portanto, no facto de que a sua contribuição para o conhecimento da potencial personalidade fascista "tornará mais eficiente o tratamento dos sintomas".
A pergunta seguinte é, o que se pode fazer sobre a própria doença? A utilização da psicoterapia individual (alteração da personalidade adulta) é desprezível em vista do número limitado de terapêutas disponíveis. O treino da primeira infância parece ser a mais eficiente, porque o programa correcto, "mesmo dentro do actual modelo cultural, podia produzir personalidades não-etnocêntricas. Tudo quanto é realmente essencial é que as crianças sejam genuinamente amadas e tratadas como seres humanos individuais". Apesar disto, o impacto deste programa seria minorado pela influência de pais etnocêntricos. Por isso, parece óbvio que "a modificação da estrutura potencialmente fascista não pode ser conseguida apenas por meios psicológicos. A tarefa é comparável à da eliminação da neurose, ou da delinquência ou do nacionalismo do mundo". Aparece aqui um dos temas das teses sobre Feuerbach de Marx: "Estes são produtos da organização total da sociedade e só se modificarão se a sociedade for modificada".
Mas, o grito de batalha apela apenas para a investigação interdisciplinar e para os esforços de todos os cientistas sociais. A educação esclarecida é necessária porque o fascismo é imposto às pessoas contra os seus interesses básicos e "quando elas podem ser perfeitamente conscientes de si mesmas e da sua situação conseguem comportar-se realisticamente".
Para vencer a resistência ao "auto-conhecimento e a resistência aos factos sociais", a psicoterapia individual deve desempenhar o papel principal. Na verdade, é-nos dito, "a psicoterapia individual pode ser melhorada e adaptada para uso com grupos e mesmo para uso a uma escala de massa. Esta informação, quando comparada com a anterior sobre a utilidade desprezível da psicoterapia, revela a atitude ambivalente dos autores. Algumas das razões para esta ambivalência são compreensíveis sob o ponto de vista da sua precária posição na sociedade americana.
Os autores concluem reflectivamente mas dum ponto de vista libertário um modo empobrecedor e dejà vu: "Apesar de haver razões para acreditar que os preconceituosos são os mais recompensados na nossa sociedade, na medida em que estão em causa valores externos... há boas razões para acreditar que os tolerantes recebem uma maior satisfação das necessidades básicas... A prova é que são, basicamente, mais felizes do que os preconceituosos... Se o medo e a destrutividade são as principais fontes emocionais dos fascismo, o eros pertence principalmente á democracia"