O MITO DA ADOLESCÊNCIA
Preâmbulo
Ainda antes desta formação ter começado já eu me interrogava sobre o sentido pleno do título desta acção: “O Adolescente na Escola de Hoje”. Iria o formador privilegiar o significado adolescente de modo a sobressair na escola de hoje? Em contrapartida, o conceito chave seria o de escola de modo que a acção pudesse fazer salientar a sua utilidade e os seus dilemas? Ou ainda, o que estaria verdadeiramente em causa seria a temporalidade referida pelo vocábulo hoje?
1- O Adolescente na Escola de Hoje
2- A Escola de Hoje na Adolescência
3- Hoje, a Adolescência na Escola,
qual o verdadeiro sentido, último, subjacente a esta acção de formação? Durante a primeira sessão as dúvidas começaram a ficar esclarecidas…Se bem que se tratava da escola de hoje, o que estava verdadeiramente em causa era a adolescência. Isso transportou-me de novo a uma reflexão que vem de longe mas que foi materializada por causa desta acção de formação. É um mérito que lhe pertence por inteiro. Não se fique a pensar que esta acção não tem outros aspectos positivos. Tem-os certamente. As chamadas de atenção e os conselhos do formador têm um mérito indubitável devido à sua experiência clínica e aos contactos desenvolvidos nas escolas. Mas quisemos, no entanto, ir mais longe e levar a efeito uma reflexão sobre o conceito de adolescência e o que ele representa ou o que se quer que ele representa e mais tarde o que ele tem representado. De modo que a questão inicial surgiu e foi sendo desenvolvida à medida que a investigação se ia desenvolvendo…
Até que ponto não serão os “adolescentes”, os jovens, forçados a representar um papel que vai variando de acordo com as orientações que recebem da família, das escolas, do Estado, da religião, da economia de mercado, da publicidade, etc. E se o conceito de adolescente fosse entendido como um conceito operativo mas mais ao nível ideológico?
I
Vivemos rodeados de afirmações que se tornaram dogmas; de símbolos transformados em verdades. Nada há de mais difícil e, ao mesmo tempo, de mais importante do que pôr em causa esses dogmas, essas verdades, ou mais exactamente essa afirmações, esses símbolos. A infância, a idade adulta, a velhice existem seguramente. Mas a adolescência? O que está em causa neste texto é uma contestação. A contestação do conceito de adolescência. À primeira vista, parece um empreendimento ousado, diríamos mesmo temerário. A posição da adolescência parece forte. Os escritores exaltaram a adolescência inquieta ou o adolescente. Os médicos afirmaram a originalidade da fisiologia, da patologia do adolescente. Em muitos países, existem inclusive numerosos serviços hospitalares especializados, reservados aos adolescentes.
Na realidade, o conceito de adolescência, enquanto período particular, distinto, da vida, situado entre a infância e a idade adulta, é um conceito recente. Recente na história dos seres vivos. As sociedades ignoram a adolescência. Pode obviamente objectar-se que, definindo-se o homem – na expressão de muitos – pela sua capacidade de aprendizagem, e a adolescência sendo, antes de mais, a idade em que se aprende, não é de admirar que as sociedades animais ignorem a fase da adolescência.
Mas o conceito de adolescente é igualmente recente na história dos homens. Não é só desconhecido das sociedades primitivas, é-o também de sociedade muito evoluídas, como a Grécia, Roma, as sociedades francesas da Idade Média e dos tempos modernos.
Em termos simbólicos falar da “adolescência” é forçosamente falar do alfa e do ómega, das relações entre crescimento e declínio, isto é, do nascimento, da reprodução e da morte. Sabemos bem como são todos esses movimentos – melhor dizendo, pulsões – que intervêm, no decurso de processos mais ou menos conscientes, na concepção e na feitura do que se considera uma “idade”, ou fase da vida. E tanto assim é que podemos imaginar que, num futuro próximo ou longínquo, poderão surgir, à imagem, aliás, do bébé que vemos tornar-se uma pessoa, e dos seus avós que vemos entrar na terceira e, depois, na quarta idade, outras tentativas, filhas de idênticas tentações, de criar novas idades intermédias, quais novas barreiras defensivas levantadas por uma sociedade fragilizada.
Parece-nos, no entanto, que a única maneira de nos prevenirmos contra tais excessos é aceitar o profundo incómodo, quantas vezes, doloroso questionamento, que qualquer idade pode trazer quer aos que se aprestam a vivê-la quer, sobretudo, aos que por ela já passaram...
Ora, relativamente a essa idade onde os indivíduos, ao transformar-se de crianças em púberes, põem globalmente em causa a sociedade em que vivem, não seria doravante mais sensato, tendo em conta que a puberdade é já peso bastante, dadas as profundas alterações que lhes causa., libertá-los do fardo de uma adolescência socialmente fabricada e gerida por outros, quando não por conta de outros, que não eles?
Aceitar ser “incomodada” por eles não será o único meio ao alcance de uma sociedade que se pretenda capaz de dominar os seus medos originais e de ultrapassar as suas frustrações.
II
O que era, para os latinos, um “adulescens”? O substantivo, feminino ou masculino, designa um indivíduo que vive uma dada fase da sua vida, que no mínimo, dura treze anos, podendo, portanto, durar mais, e que vai dos 17 aos 30 anos. Esse termo, no entanto, não se aplica às romanas.
Para os latinos, com efeito, o que determina, no caso dos rapazes, as fases da vida são as suas obrigações civis e militares, enquanto, no caso das raparigas, as fases da vida são determinadas pela obrigação de se casar e de ter filhos.
A diferenciação vocabular na designação das idades sucessivas revela bem as disparidades existentes entre os dois sexos. Assim é que quando um indivíduo do sexo masculino, se torna “adulescens”, um indivíduo do sexo feminino com a mesma idade não se torna “jovem, rapariga”, mas “uxor”, “esposa”. O seu estatuto na sociedade depende exclusivamente dos laços de dependência que a ligam ao seu marido e à maternidade. Assim se compreende que, enquanto o “jovem” passa a “homem novo”, a jovem ou “esposa” passe a “mãe de família”, o que acentua a função da mulher, enquanto reprodutora de futuros cidadãos.
O momento determinante de toda esta “formação” linguística é certamente o ano de 1850. É nessa data que o género masculino de “adolescente” perde a sua conotação satírica, o género feminino passa a ser corrente, ao mesmo tempo que os dicionários atribuem à “adolescência” uma fase específica da vida que, abarca globalmente as idades compreendidas entre os 14 e os 20 anos.
Concluindo: quando comparamos a evolução da família de palavras a que pertence “adolescência” com a família a que pertence “puberdade”, deparamos com as incessantes flutuações a que aquela foi submetida, enquanto o que sempre caracterizou a segunda foi a sua notável estabilidade. A puberdade, quando analisada do ponto de vista da semântica histórica, apresenta-se sempre, de facto, como um período de transformação do organismo humano.
Tendo como pano de fundo este fenómeno, em si mesmo simples, as sociedades e as épocas construíram um outro período, de duração bastante variável, a adolescência, em que convergiram, em torno das manifestações biológicas, toda uma série de receios, de ambiguidades psicológicas e sociais, desencadeadas pelo aparecimento dos caracteres sexuais secundários...
III
Os ritos pubertários são ritos de passagem. Autênticas festas da puberdade, recordam a todos os membros da sociedade que com a puberdade, a sexualidade acede à dignidade de facto social. Iniciada, a criança transforma-se em adulto.
As sociedades primitivas não detêm, ou não detinham, uma concepção da adolescência equivalente à nossa, ou seja, desconheciam a lenta aquisição de um estatuto de adulto. Por vezes, nessas sociedades, a transição é de tal modo gradual que mal se sente; noutras, pelo contrário, os ritos de iniciação conferem automaticamente o estado de maturidade; noutras ainda, esses ritos dão apenas início a um período de aprendizagem do código social e de transmissão de saberes; finalmente, sociedades há em que esses ritos são como que desmultiplicados, transformando a vida numa sequência ritmada de momentos de idade.
Os primitivos parecem desconhecer as tempestades e as tensões que caracterizariam a “nossa” adolescência. O que sugere, como nota Klineberg, que as causas dessas tensões “devem ser procuradas ao nível da sociedade e não ao nível biológico”.
A adolescência não é um período natural do desenvolvimento humano. Razão por que se pode encarar a tentativa de certas sociedades tribais de prolongar a fase de iniciação como um fenómeno de ressurgência ou como um fenómeno de antecipação. Ressurgência, com efeito, se admitirmos que num passado longínquo teriam existido formas instituicionais de socialização dos jovens. Mas igualmente antecipação ou, mais exactamente, presciência de um risco, de uma ameaça contingente. Ameaça, com efeito, que a irrupção da nossa sociedade na deles virá confirmar: o conflito possível das gerações.
Que é feito desses ritos? No momento em que se extinguem os fogos dessas tribos, emergem o marketing turístico sedento de lucrativas sensações e as imagens feitas de uma imprensa que comercializa tabus.
A nossa sociedade ocidental nunca cultivou ritos mutilatórios pubertários. Mas as suas criança eram iniciadas por ritos equivalentes como, por exemplo, a comunhão solene, ou a “ida às meninas” aquando do serviço militar obrigatório. O homem, o adulto, esvaziou-as do sentido que possuíam, desvalorizou-as a um ponto tal que a juventude deixou de as poder reconhecer. Sentindo-se, todavia, ameaçado por um perigo crescente, tenta erguer construções inábeis, inventando ritos de passagem equivalentes. Tenta multiplicar ritos irrisórios. Tudo se torna um rito. Deixou, pois, de haver ritos. Assim o adulto se transformou num pai falhado.
Margared Mead distingue três tipos de culturas. Uma cultura post figurativa , em que as crianças são, acima de tudo, ensinadas pelos pais; uma cultura com figurativa, em que crianças e adultos aprendem com os seus iguais; e uma cultura pré figurativa, em que os adultos aprendem igualmente com os seus filhos.
A puberdade traduz-se no aparecimento da capacidade de procriar. A puberdade não é um acontecimento, não é sequer um advento: o momento da maturidade é simplesmente a conclusão de uma maturação sexual há muito iniciada e que se foi desenvolvendo durante um longo período da vida.
IV
Algumas teses defendem que a idade média do aparecimento das primeiras regras tem vindo a diminuir. Falam mesmo de uma precocidade secular. Com efeito, apoiando-se num certo número de inquéritos realizados em determinadas populações europeias, afirmam que, de há um século e meio a esta parte, a idade média do aparecimento das primeiras regras se tem vindo a reduzir, por década, entre dois a três meses. Não deixam, no entanto, de referir que, desde 1950, o movimento se teria estabilizado, situando-se, agora, a idade das primeiras regras entre os 12 anos e meio e os 13 anos e meio. É óbvio que estas teses se prestam às mais diversas amálgamas e não tem faltado quem queira confundir puberdade com a idade do aparecimento das primeiras regras. Convém, com efeito, estar atento às formulações propostas, sobretudo quando se trata de referências antigas. A puberdade é um processo de maturação e não pode ser reduzido a um marco, aliás, sem valor, para apreciar a possibilidade de procriação.
Dizer que um processo de maturação se acha terminado é uma afirmação que, enquanto tal, pertence incontestavelmente ao domínio opinativo, ao universo das apreciações flutuantes, tantas e diferentes são as variáveis a considerar. Não apenas morfológicas, mas igualmente neurológicas, fisiológicas, psicológicas, etc. Regra geral, considera-se que a puberdade finda quando está constituído o adulto fisiológico, ou seja, o indivíduo dotado de capacidades reprodutoras, cujo crescimento atingiu, pois, o seu termo. Mesmo a esse nível, a utilização de números médios é redutora. Basta pensar que no termo de um período pubertário que, regra geral, se prolonga por três a quatro anos, a rapariga atinge a sua estatura de adulto por volta dos 14-15 anos, e o rapaz por volta dos 17 anos... Nessas condições, é óbvio que a avaliação caso a caso do poder de procriação é particularmente delicada. E isto sem falarmos da maturação cerebral, maturação que não podemos deixar de considerar como um indicador particularmente significativo. O sistema nervoso dito central não é considerado, e com razão, o lugar superior de todos os comandos? Acontece, todavia que o electroencefalograma, cujos traçados registam a actividade eléctrica cerebral, raramente revela um padrão adulto antes dos 19 anos e não raro surgem, até aos 25 anos, traços imaturos nesse padrão adulto. Aliás, os dados que nos fornecem a anatomia, a biologia, a fisiologia... e a psicologia não nos permitem fixar com exactidão o momento em que se acha formado o cérebro adulto.
A puberdade, nesta perspectiva fica reduzida a um puro sintoma. Sintoma doloroso, é certo, porque feito de lutas, de batalhas inscritas no que alguns designam por crise da adolescência, ou seja, a luta contra a investida das pulsões e dos fantasmas infantis; ou, ainda, a luta de cada indivíduo para se identificar com os ideais do seu sexo.
Se a psicologia e a psicologia clínica procuraram definir uma puberdade psicológica, Jean Piaget, por seu lado, procurou definir uma puberdade intelectual. Piaget esforçou-se por descrever o funcionamento cognitivo da criança e a sua evolução, quer por observação directa quer criando situações experimentais.
Há, no entanto, outros psicólogos que defendem que, mesmo depois da fase do raciocínio formal, o conhecimento continua a evoluir, sendo provável que essa evolução acompanhe todo o ciclo da vida humana.
Se assim for, onde situar a maturidade? E porquê querer à viva força fazê-la coincidir com a puberdade?
V
Há mais de um século, foi publicado na Noruega um dos primeiros estudos sobre a idade do início da puberdade. O seu universo de análise era um pequeno grupo de raparigas e chegava à conclusão de que as primeiras regras haviam aparecido entre elas por volta dos 17 anos. A idade média encontrada, 17 anos, portanto, encheu de satisfação a velha Europa, que não só a adopta sem reservas, como apaga todos os dados anteriormente coligidos, dados esses que se opunham frontalmente aos do referido estudo. A velha Europa tinha uma boa razão para proceder como procedeu: os novos números, ao situar tão tarde o aparecimento das primeiras regras, permitiam recuar o início da adolescência, fenómeno de sociedade que se achava então nos seus princípios, e reduzir proporcionalmente a sua duração.
Sabemos hoje que os primeiros sinais pubertários se manifestam na rapariga por volta dos 12 anos e meio, e que no rapaz se manifestam um pouco mais tarde, por volta dos 14 anos; estes números são médias, estando subentendido que, em ambos os sexos, os primeiros sinais pubertários podem surgir dois anos antes ou dois anos depois, relativamente às idades referidas. Razão por que os nossos contemporâneos confrontados com uma diferença de cinco anos 17 e 12 anos), em apenas um século, diferença tida, aliás, por indubitável, se viram obrigados a postular, para a Europa, um rejuvenescimento pubertário.
Como é óbvio, a teoria do rejuvenescimento, para se justificar, recorreu a sistemas explicativos variados. Foram avançados argumentos “científicos” como o aumento global da temperatura do planeta, as alterações ocorridas nos estilos de vida, o incremento da prática desportiva, a noção de peso crítico exigido para o aparecimento dos sinais pubertários, etc. Todos esses argumentos foram avançados; houve quem os defendesse e discutisse, não faltando quem os tivesse recusado.
O facto é que a tendência era então para se generalizar todas as observações locais. Este ecumenismo europeu, a propósito da idade pubertária e da sua evolução histórica, poderia, no entanto, ter sido abalado pelos primeiros estudos estatísticos sérios, publicados nos Estados Unidos, por volta de 1900, que situavam a idade pubertária da rapariga por volta dos 14 anos. Mas não isso que aconteceu. O preconceito estava solidamente implantado, deixando escapar a oportunidade oferecida pelas estatísticas mundiais, todas elas convergindo na idade média, actualmente aceite, para deixar cair no esquecimento o estranho desfasamento histórico “observado” na Europa e consequentemente todas as teorias que haviam sido forjadas a posteriori para o explicar.
Qual a verdade de tudo isto?
Ao longo da história, a maior parte das sociedades, postas na impossibilidade de controlar a emergência dos sinais pubertários, procurou remediar essa impotência, rodeando esse facto biológico de sinais culturais, sociais e, quando necessário, jurídicos, que no seu conjunto lhe conferiam um carácter de passagem. Foi o que aconteceu em Roma com a puberdade, foi o que aconteceu, noutras partes, com as cerimónias rituais que celebravam as primeiras regras. Outras houve ainda que criaram um prazo, um tempo de espera, entre a puberdade biológica e o acesso ao estado adulto. Mas até à segunda metade do século XIX, época em que emerge o fenómeno da adolescência, nunca se tinha visto uma sociedade tentar retardar a puberdade com o objectivo de a fazer coincidir com determinadas exigências sociais, reduzindo desse modo a duração de uma idade intermédia, nova e perturbante.
É inegável que, ao estudarmos a evolução sociofilológica da palavra, as delimitações jurídicas, as observações médicas, as evocações literárias ou autobiográficas dos séculos precedentes, nos apercebemos da notável constância da idade média do aparecimento dos primeiros sinais pubertários. Inclusivamente, quando comparamos esses dados, de tão diversa origem, espelhando cada uma delas, todavia, o olhar de uma dada época, com as séries estatísticas de que dispomos, cujo carácter parcial é óbvio, como é discutível o valor científico de algumas delas, mais nos convencemos de que, ao longo dos tempos, sempre existiu, de facto, uma constante pubertária.
É inegável que o preconceito de uma puberdade tardia, nascido em meados do século XIX, se revelou útil e ainda útil se continua a revelar. O aparecimento desse preconceito é contemporâneo, como vimos, do conceito de adolescência. Nos finais do Antigo Regime, surge, pela primeira vez, um desfasamento entre a idade da puberdade fisiológica e a idade de uma maioridade natural que será fixada em 15 e em 18 anos, respectivamente, para a rapariga e para o rapaz. Por outras palavras, o que então se visa é submeter a natureza, alterar uma idade biológica que, ao longo dos séculos, se terá mantido constante.
O artifício instituído pelo Código Civil de 1803, baseado no antigo modelo romano que fazia corresponder puberdade, nubilidade e maioridade, consistiu em elevar brutalmente de dois anos e de três anos a idade da nupcialidade, respectivamente, da rapariga e do rapaz, rompendo desse modo com as práticas até então estabelecidas. Esse Código acabará por ter uma profunda influência nas mentalidades, e é nessa influência que radica a procura e a produção de “provas científicas”, destinadas a fundamentar a nova configuração das idades. E quando essas provas não se mostram conformes com a teoria do momento são pura e simplesmente encaradas como acidentes.
O facto de se utilizar uma variável imprecisa, no caso vertente, a idade das primeiras regras, para determinar a entrada da rapariga na puberdade, vai obviamente facilitar esse empreendimento “científico”. Dado, por outro lado, que os diferentes sinais visíveis, e menos visíveis, constitutivos da puberdade, não aparecem ao mesmo tempo, pode existir, em função do critério utilizado, uma margem importante de variação no estabelecimento do início da puberdade. Uns irão privilegiar a pilosidade pubiana (sinal etimológico da puberdade); outros, as primeiras regras (manifestação visível de um útero em formação); outros ainda, o desenvolvimento dos seios (cuja formação antecede, muitas vezes, de dois a três anos, o aparecimento das primeiras regras); finalmente outros, a ovulação (que pode ocorrer vários anos depois das primeiras regras) … Ou seja, não vai ser difícil obrigar os números a falar…
No contexto que estamos a descrever, era perfeitamente possível agir como se o biológico andasse a reboque do ideológico e dos seus imperativos do momento. Haveria fatalmente de chegar a altura em que o conceito de adolescência seria inflacionado e de, no seu rasto, surgirem nas décadas seguintes, ao longo de todo o século XIX, estudos numerosos sobre a idade natural tardia da puberdade. A introdução de justificações “naturais” coincide, pois, com uma construção artificial. Essas justificações têm todo o ar de ser suficientemente eloquentes e numerosas para merecerem ser tidas por incontestáveis, mesmo se, nos princípios do século XX, surgem outros trabalhos propondo conclusões muito mais matizadas. Mas era demasiado tarde. O facto é que a sistematização dos estudos retrospectivos que aparecem nos anos 60, época em que esse fenómeno atinge o clímax, não só avalizará o passado, como reforçará a teoria de uma nova precocidade pubertária. E não serão as vozes que se erguem e tentam tornar menos nítida essa evidência questionando, nomeadamente as amostras populacionais seleccionadas e o seu nível socioeconómico e, pois, a qualidade da sua alimentação, cujos efeitos sobre a idade da puberdade são perfeitamente conhecidos, que irão alterar o que quer que seja.
Ao entrar-se numa sociedade envolvida num processo de mutações rápidas, a noção de manifestação dos primeiros sinais pubertários e a definição da idade em que ocorrem revelam-se pouco elásticas, sendo por esse motivo progressivamente substituídas pela noção de adolescência, conceito totalmente maleável, cujo conteúdo varia ao sabor das circunstâncias.
VI
Em 1905, em Viena, Freud publica o seu célebre livro “Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade”, primeiro escrito da literatura psicanalítica a debruçar-se sobre as mutações psicológicas que acompanham a puberdade.
Nesse seu livro, no capítulo que dedica às “transformações da puberdade”, Freud não escreve uma só vez a palavra adolescência. No momento em que os seus contemporâneos se deixam cair na armadilha de uma “adolescência” criada de fresco, Freud, também ele interessado nas profundezas do comportamento humano, entende não ter razões para dar qualquer crédito a esse conceito artificial. Refere, sim, “período da puberdade”, fala em “idade da puberdade”, e é tudo.”Com o começo da puberdade, aparecem as transformações que vão dar à vida sexual infantil a sua forma definitiva e normal”, assim rezam as primeiras linhas do seu texto. Na sua concepção, não existe a adolescência como classe de idade, nem como período particular do desenvolvimento humano. Para Freud, a criança existe. Existe igualmente o adulto, trazendo em si, na sua história, a criança que foi. Entre a criança e o adulto, existe a puberdade. Esta é apenas uma continuação da pequena infância e, de modo muito particular, da sua problemática sexual e relacional, uma e outra intimamente relacionadas. Para Freud, a sexualidade infantil sendo a sexualidade de base, as formas que a sexualidade reveste na puberdade, período terminal das transformações corporais e psíquicas, têm a seus olhos um interesse manifestamente reduzido. Em seu entender, essas transformações são no essencial uma reactualização dos desejos e de precoces impossibilidades.
Dora, a célebre paciente de Freud que, se fosse hoje, seria considerada uma adolescente, não só pelos seus 18 anos como pelo tipo de crises de que sofria, nunca é tratada desse modo pelo mestre vienense.
Só mais tarde a partir dos anos 20 psicanalistas abrem caminho à aceitação como válida de uma noção algo precária criada pelos seus contemporâneos transformando em pressuposto o que poderia ter sido apenas um artifício cómodo. Pouco interessados em desenvolver o pensamento de Freud, que se limitara a falar de puberdade, não hesitam, em resposta a uma pressão social, em sintonizar-se com um certo ar do tempo…A psicanálise passa, então, a interessar-se por tudo o que inquieta e incomoda, nomeadamente o problema dos jovens delinquentes.
Na segunda metade do século XIX, assistimos a um crescendo inegável dos receios relativos à juventude. O adolescente, pois tal é doravante o nome que se lhe dá, torna-se objecto de um número crescente de estudos. A esse título, igualmente, é apontado a dedo como a causa de muitos males de que sofre a sociedade de então.
Durkheim, sociólogo da integração, estigmatiza-o enquanto factor de desintegração da sociedade. Chega a afirmar, na sua obra intitulada O Suicídio, que “se os jovens se suicidam mais facilmente, é porque justamente estão mal integrados na sociedade. Por outro lado (…) os seus apetites sexuais arrastam-no para a prática da violência, da brutalidade, quando não do sadismo. Gosta de sangue; adora violar”.
Em 1909, é publicada pela Alcan La Criminalité dans l`Adolescence. Causes, Remèdes d`Un Mal Social Actuel. Nesta sua obra, Duprat prolonga e aprofunda a perspectiva de Durkheim. Afirma ele: “ O adolescente é um vagabundo nato”. Apaixonado por viagens, por mudanças de toda a ordem, é um ser profundamente instável. “Foge como fogem os histéricos e os epilépticos.” “O adolescente é potencialmente um doente”…
É evidente que, enquanto alguns se mostram interessados em julgar e em condenar, outros houve, nomeadamente Freud, que vão procurar compreender as motivações que presidem às aparentes desordens que se observam.
O primeiro motivo de preocupação é, sem dúvida alguma, a emergência da sexualidade na adolescência. Não motiva apenas o interesse, causa igualmente receios em pais, médicos e educadores. “O sexo dos estudantes liceais preocupa efectivamente, nomeadamente as amizades particulares, a prática da masturbação e a homossexualidade nos colégios internos. Com a preocupação, surge o controlo: vai ser necessário gerir, controlar e vigiar. Por exemplo, Lombroso, criminologista dos finais do século XIX, afirma explicitamente: “ Quando dois jovens estão juntos, é preciso desconfiar. É bem provável que estejam a fazer algo de mal.” Num seu romance póstumo, Le Lieutenant-Colonel de Maumort, Roger Martin du Gard evoca a homossexualidade nos grandes colégios internos dos anos 80 do século XIX.
VII
Os anos subsequentes do pós guerra (1945) vão revelar uma juventude que, decididamente, gosta de gozar a vida, de se exprimir, de levantar problemas novos, exactamente como faria, não um ser em expectativa de vir a ser, mas alguém que assume plenamente a sua personalidade. A aquisição, por parte da adolescência, de uma maturidade nunca antes alcançada coloca toda uma série de problemas que, por sua vez, vão exigir a intervenção teórica e prática dos diversos tipos de profissionais do funcionamento humano.
No âmbito de uma sociedade que não pára de descobrir a juventude que vive no seu seio, na sequência aliás, de uma série de “pioneiros” que contribuíram para a invenção dos contornos psicanalíticos desse novo jovem, o pós guerra vai revelar-se fértil em contribuições nomeadamente de além Atlântico.
À força de estudar e de falar sobre a dita adolescência, essas teorias acabarão por pensar que o objecto dos seus estudos existe realmente. Como se isso não bastasse, farão com que a própria sociedade acredite que existe algo de evidente, de natural e de atemporal que dá pelo nome de adolescência.
Assiste-se, então, ao aparecimento de uma profusão de conceitos, os recentes indo mais longe do que os precedentes na busca de um “verdadeiro” objecto imaginário. Ouve-se, então, falar em adolescência como fase de transição, de pós-adolescência, etc. Anna Freud é uma figura de proa desse movimento. Diz ela:” Nunca estávamos satisfeitos com os conhecimentos que íamos adquirindo sobre a questão. Os pais (como, aliás, nós próprios) não tinham a menor confiança nos nossos talentos de psicanalistas no tratamento da adolescência. Apareceu, por essa altura, uma série de publicações para demonstrar o contrário. O facto é que a adolescência continuava a ser o que sempre fora, um parente pobre e afastado da teoria psicanalítica”. Logicamente, Anna Freud deveria ter baixado os braços…Continuou, no entanto, a insistir na inadequação dos métodos de diagnóstico e de análise ao fenómeno da adolescência.
Paradoxalmente, ou talvez não, é bem possível que o fracasso verificado tenha sido providencial. O facto de os modelos teóricos psicanalíticos (e subsequente prática) destinados à elucidação dos mecanismos humanos mais íntimos, ou seja, os mecanismos mais subjacentes e mais específicos de cada pessoa, não se adequarem a essa idade da vida, mostra que são capazes de abarcar o conjunto dos factores sociais, culturais, económicos, demográficos, que não só pesam sobre os púberes como contribuem para modelar o seu tipo humano, provisório e não analisável. No entanto, esse fracasso relativo, em vez de levar a uma reavaliação do fenómeno “adolescência”, do carácter volátil da sua formação e, por conseguinte, da sua natureza eminentemente artificial, incitou, pelo contrário, um certo número de terapeutas a criar centros e instituições para o seu respectivo tratamento. Ou seja, em vez de tentar compreender a natureza de um movimento complexo que fluía, fugia das terapêuticas e pretendia alcançar patamares estáveis de autonomia, essas respostas tinham por único objectivo controlá-lo.
“Nessas condições, não será de admirar que, além da terapia analítica, se recorra a toda uma panóplia de meios de tratamento, alterações provocadas no meio ambiente, tratamento institucional, criação de comunidades terapêuticas, etc.” São palavras de Anna Freud que, a seguir, acrescenta:”De um ponto de vista prático, e seja qual for o seu valor, não se pode esperar dessas tentativas experimentais um qualquer enriquecimento directo do nosso insight teórico quanto ao conteúdo inconsciente do espírito adolescente.”
Cansada de esperar hipotéticos resultados teóricos e terapêuticos, a sociedade, logo a seguir à guerra, vai procurar resolver por sua conta e risco os problemas criados pela parte menos disciplinada da juventude. Aliás, os jovens, pelo seu lado, actuam exactamente do mesmo modo. Com efeito, o crescimento das grandes metrópoles e das suas periferias satélites, o desenvolvimento de uma economia de grande consumo, o êxodo rural e o seu cortejo de rupturas familiares e culturais levam, de certo modo, os jovens a agrupar-se em bandos. Ou seja, em cada geração, cada grupo de idade vai, pouco a pouco, aprender a organizar-se por si próprio e a defender os seus próprios interesses. A delinquência juvenil que, no período anterior à guerra, era “tratada” em casas de correcção deixa de ser um problema exclusivamente penal, ou de polícia, para se transformar numa questão sociojurídica. Em 1945, na base de noções como reeducação e educação vigiada, são definidas várias medidas de tipo educacional, geridas por um juiz de menores. A partir desse momento, a ideia de que o jovem “com problemas” deve ser tratado num meio social aberto vai-se aos poucos difundindo, vindo posteriormente a evoluir no sentido de prevenir os comportamentos delinquentes, em particular as recaídas. Essa evolução encontrou num decreto de 1958 em França a sua tradução legal. Concomitantemente, desenvolve-se uma reflexão sistemática sobre os danos e perturbações causados pela juventude, na perspectiva de definir medidas jurídicas e socioeducativas tanto quanto possível adaptadas aos comportamentos verificados no terreno. Todo esse processo culminará com a Declaração dos Direitos da Criança proclamada pela ONU, em 1959.
Na prática, pretende-se que as crianças e os jovens que eventualmente se encontrem em situações de anomia, ou revelem comportamentos anómalos, passem a depender de instâncias ou de circuitos institucionais especificamente concebidos para a protecção, o apoio ou a reeducação integrativa de que, conforme os casos, precisem.
Todos esses esforços e todas essas medidas não impedirão, contudo, que a marginalização da juventude se amplifique, ou mais exactamente, que os problemas que levanta deixem de pertencer ao domínio socioeducativo e passem a pertencer ao do médico-psicológico. Sempre que tal acontece, e tais ocorrências tendem, de facto, a aumentar, a crise pubertária passa a ser encarada como um fenómeno patológico.
O facto é que o ponto de vista se altera. Se, numa primeira fase, é uma paciência contida que impera face às perturbações induzidas pela puberdade, numa segunda fase, assiste-se à emergência de uma vontade decidida a eliminar totalmente essa perturbação induzida. Dir-se-ia que a juventude se transformou, de repente, numa nova doença misteriosa, cujo tratamento reclamasse cuidados de natureza sociomédico-psicológica. Esse novo olhar, que via na puberdade uma doença, olhará, mais tarde, e do mesmo modo, a gravidez e a velhice. Será necessário esperar por Winnicott, pediatra e psicanalista inglês, para que toda essa gente fosse chamada à pedra, a crise pubertária não tem nada de patológico, é um fenómeno absolutamente salutar; pelo contrário, o que é patológico é a ausência de crise.
VIII
Em 1900 em França há cento e trinta mil alunos no secundário; Em 1950 – um milhão; actualmente – mais de cinco milhões. Para se ocupar desta juventude, um exército de um milhão e duzentas mil pessoas, entre as quais seiscentos mil professores e professoras. Como já alguém se lembrou trata-se da maior empresa do mundo, sem contar com o Exército Vermelho. Mais de 10 por cento das despesas do Estado. Um Estado professor que pouco faz falar de si. Aos pais foram sendo progressivamente retiradas a maior parte das suas funções tradicionais, em termos educativos. Desejariam eles, aliás, que as coisas se tivessem passado diferentemente? Seja como for, é um facto, a família foi desresponsabilizada. A experiência deixou de ser uma matéria pessoalmente transmissível. Apenas o saber é transmissível, porque essa transmissão é funcional. Num mundo que vive em permanência da novidade, a palavra de ordem é “tornai-vos independentes”… dependendo cada vez mais de nós.
Entretanto, a multiplicação dos actos de violência perpetrados pelos jovens não se verifica apenas nas cidades e suas periferias, atinge directamente os estabelecimentos escolares.
Paradoxalmente, a escola, lugar de saber, é um fracasso devido à sua ignorância em psicologia da educação. A violência na escola é também um reflexo da violência da escola, porque ignorar as necessidades escolares específicas da criança é uma violência que lhe está a ser feita em permanência. Em nome da igualdade de oportunidades, procedeu-se a uma uniformização dos ritmos escolares e das idades norma de aprendizagem, criaram-se pontos obrigatórios de passagem, institui-se um sistema de orientação e introduziram-se critérios de avaliação que são, de facto uma selecção que não diz o nome que tem.
Como escreveu E. Todd em 1983: “ A estrutura antropológica, ao contrário do sistema ideológico, perpetua-se automaticamente. A família é, por definição, um mecanismo reprodutor dos homens e dos valores.” Nessa célula elementar que é a família de procriação, prossegue E. Todd, “cada geração, cujos valores de base são forjados no cadinho familiar, tem a possibilidade de reinventar, a partir da adolescência, a ideologia dominante do seu universo social”.
IX
Podemos interrogar-nos se esse povo adolescente, que há muito se transformou numa pós-adolescência interminável de múltiplas dependências, é um fenómeno integralmente negativo, ou seja, se comporta apenas inconvenientes. Os profissionais da saúde, especializados nos problemas da juventude, não terão qualquer dificuldade em responder pela afirmativa. Constata-se, no entanto, que não é essa a resposta que dão os financeiros e os fabricantes de bens de consumo. Basta passar os olhos pelos desdobráveis publicitários que editam para vermos que assim é. Ao lê-los, uma conclusão se impõe – a função económica da adolescência é inversamente proporcional ao lugar que lhe reserva a sociedade. Os adolescentes, esse povo extraordinário!” eis o que eles proclamam. E não admira que lhes saiam da boca exclamações dessas! Basta atentar nos seguintes factos; Os 15 – 24 anos em França representam um poder de compra avaliado em duzentos e dezoito biliões de francos; os 18 – 24 anos gastam em média, e por mês, dois mil setecentos e doze francos em divertimentos e outros prazeres diversos; 84 por cento daqueles com 15 – 24 têm conta bancária própria…Este último indicador é apenas a ponta do icebergue do processo de bancarização em curso da juventude.
Pelo seu lado, a publicidade e os meios de comunicação exploram não só a influência que as crianças exercem sobre o consumo dos seus pais, influência tanto maior quanto é verdade que tendem a viver juntos mais tempo sob o mesmo tecto, como a auto sugestão que os pais exercem sobre si próprios e que os leva a imaginar que um dado produto é mais conforme do que aqueloutro às aspirações dos filhos.
Na realidade, a publicidade explora a fundo um paradoxo comportamental entre desejos e necessidades que se tomam por originais quando, de facto, e porque correspondem a necessidades naturais, são próprias de uma dada idade e a sua satisfação, sinal de um evidente conformismo. Assim, para serem originais, os jovens escolhem e compram artigos pensando obviamente que estão a fazer prova de um gosto pessoal, quando, na realidade, esses artigos foram lançados por agentes comerciais que se servem do seu conformismo natural para aumentar as suas próprias vendas. O mesmo se passa com a promoção das vedetas da canção, de modas ao nível da roupa, etc…
Em suma, numa visão a médio prazo, parece estar a formar-se uma enorme estirpe de consumidores submissos. A pergunta que podemos fazer sobre os efeitos que teria sobre os jovens a sua situação de espera prolongada às portas da idade adulta tem aqui a sua resposta. Não é bom para os jovens, é certo, mas é muito útil para os agentes económicos.
Tal não deve conduzir a sociedade a renunciar aos seus códigos e valores, mas não a dispensa do dever de prestar atenção às aspirações daqueles que ainda não têm responsabilidades, e de aceitar ser abalada por essas aspirações emergentes.
Abalos esses que recentes acontecimentos, geograficamente próximos ou longínquos, nos vieram lembrar, independentemente das formas que tomaram, o seus carácter universal.
Não só na China, em Maio e Junho de 1989, onde os estudantes da praça Tien Na Men pediram mais democracia e liberdade a gerontocratas, mas igualmente em França, onde, em Novembro e Dezembro de 1986, no Outono de 1990, em Março de 1994, estudantes liceais e universitários reclamaram que lhes fosse dado um lugar na sociedade adulta.
Uns e outro puderam verificar o preço do que pediam. Na China, passada a surpresa inicial, os gerontocratas responderam com carros de assalto e armas automáticas à intolerável ousadia da juventude. O que um sistema político ditatorial não conseguira, durante décadas, com o controlo dos nascimentos e com casamentos o mais tardios possível, as armas iam, desta vez, conseguir?
Em França, os estudantes, filhos dos homens e mulheres de Maio de 68, não reivindicavam, como haviam feito os seus pais, uma juventude diferente, autónoma, triunfante, pediam apenas um lugar. Foi-lhes respondido com um folheto, tirado a oito milhões de exemplares, onde lhes era sugerido: “Metam em prática as vossas ideias”…Nessa base, voltaram à rua, no Outono de 1995. De nada lhes valera pôr as ideias em prática. Isso fora apenas um pretexto. Exigiam, agora, pura e simplesmente não ser tratados como uma geração sacrificada.
X
Na sociedade adulta contemporânea, o principal papel da adolescência é funcionar como sintoma, como doença, como reflexo insuportável e como perigo uniforme, visível e designável. Reflexo de uma sociedade cada vez mais velha e fechada que, para se proteger, a designa como o seu diferente, o seu outro fundamental, é esse o papel estrutural da adolescência.
O facto mais saliente destes últimos anos é, sem dúvida, o fosso crescente entre o que preocupa os adultos e aquilo que realmente interessa os jovens. Quando os primeiros pensam adolescência, as palavras que lhes vêm ao espírito são bem diferentes - toxicomania, sida, violência, suicídio. Quando os segundos pensam em si próprios, pensam-se em termos de integração e de qualidade das relações afectivas.
Preâmbulo
Ainda antes desta formação ter começado já eu me interrogava sobre o sentido pleno do título desta acção: “O Adolescente na Escola de Hoje”. Iria o formador privilegiar o significado adolescente de modo a sobressair na escola de hoje? Em contrapartida, o conceito chave seria o de escola de modo que a acção pudesse fazer salientar a sua utilidade e os seus dilemas? Ou ainda, o que estaria verdadeiramente em causa seria a temporalidade referida pelo vocábulo hoje?
O Adolescente na Escola de Hoje ou A Escola de Hoje na Adolescência ou ainda Hoje, a Adolescência na Escola, qual o verdadeiro sentido, último, subjacente a esta acção de formação? Durante a primeira sessão as dúvidas começaram a ficar esclarecidas…Se bem que se tratava da escola de hoje, o que estava verdadeiramente em causa era a adolescência. Isso transportou-me de novo a uma reflexão que vem de longe mas que foi materializada por causa desta acção de formação. É um mérito que lhe pertence por inteiro. Não se fique a pensar que esta acção não tem outros aspectos positivos. Tem-os certamente. As chamadas de atenção e os conselhos do formador têm um mérito indubitável devido à sua experiência clínica e aos contactos desenvolvidos nas escolas. Mas quisemos, no entanto, ir mais longe e levar a efeito uma reflexão sobre o conceito de adolescência e o que ele representa ou o que se quer que ele representa e mais tarde o que ele tem representado. De modo que a questão inicial surgiu e foi sendo desenvolvida à medida que a investigação se ia desenvolvendo…
Até que ponto não serão os “adolescentes”, os jovens, forçados a representar um papel que vai variando de acordo com as orientações que recebem da família, das escolas, do Estado, da religião, da economia de mercado, da publicidade, etc. E se o conceito de adolescente fosse entendido como um conceito operativo mas mais ao nível ideológico?
Desenvolvimento
Vivemos rodeados de afirmações que se tornaram dogmas; de símbolos transformados em verdades. Nada há de mais difícil e, ao mesmo tempo, de mais importante do que pôr em causa esses dogmas, essas verdades, ou mais exactamente essa afirmações, esses símbolos. A infância, a idade adulta, a velhice existem seguramente. Mas a adolescência? O que está em causa neste texto é uma contestação. A contestação do conceito de adolescência. À primeira vista, parece um empreendimento ousado, diríamos mesmo temerário. A posição da adolescência parece forte. Os escritores exaltaram a adolescência inquieta ou o adolescente. Os médicos afirmaram a originalidade da fisiologia, da patologia do adolescente. Em muitos países, existem inclusive numerosos serviços hospitalares especializados, reservados aos adolescentes.
Na realidade, o conceito de adolescência, enquanto período particular, distinto, da vida, situado entre a infância e a idade adulta, é um conceito recente. Recente na história dos seres vivos. As sociedades ignoram a adolescência. Pode obviamente objectar-se que, definindo-se o homem – na expressão de muitos – pela sua capacidade de aprendizagem, e a adolescência sendo, antes de mais, a idade em que se aprende, não é de admirar que as sociedades animais ignorem a fase da adolescência.
Mas o conceito de adolescente é igualmente recente na história dos homens. Não é só desconhecido das sociedades primitivas, é-o também de sociedades muito evoluídas, como a Grécia, Roma, as sociedades francesas da Idade Média e dos tempos modernos.
Em termos simbólicos falar da “adolescência” é forçosamente falar do alfa e do ómega, das relações entre crescimento e declínio, isto é, do nascimento, da reprodução e da morte. Sabemos bem como são todos esses movimentos – melhor dizendo, pulsões – que intervêm, no decurso de processos mais ou menos conscientes, na concepção e na feitura do que se considera uma “idade”, ou fase da vida. E tanto assim é que podemos imaginar que, num futuro próximo ou longínquo, poderão surgir, à imagem, aliás, do bébé que vemos tornar-se uma pessoa, e dos seus avós que vemos entrar na terceira e, depois, na quarta idade, outras tentativas, filhas de idênticas tentações, de criar novas idades intermédias, quais novas barreiras defensivas levantadas por uma sociedade fragilizada.
Parece-nos, no entanto, que a única maneira de nos prevenirmos contra tais excessos é aceitar o profundo incómodo, quantas vezes, doloroso questionamento, que qualquer idade pode trazer quer aos que se aprestam a vivê-la quer, sobretudo, aos que por ela já passaram...
Ora, relativamente a essa idade onde os indivíduos, ao transformar-se de crianças em púberes, põem globalmente em causa a sociedade em que vivem, não seria doravante mais sensato, tendo em conta que a puberdade é já peso bastante, dadas as profundas alterações que lhes causa., libertá-los do fardo de uma adolescência socialmente fabricada e gerida por outros, quando não por conta de outros, que não eles?
Aceitar ser “incomodada” por eles não será o único meio ao alcance de uma sociedade que se pretenda capaz de dominar os seus medos originais e de ultrapassar as suas frustrações.
O que era, para os latinos, um “adulescens”? O substantivo, feminino ou masculino, designa um indivíduo que vive uma dada fase da sua vida, que no mínimo, dura treze anos, podendo, portanto, durar mais, e que vai dos 17 aos 30 anos. Esse termo, no entanto, não se aplica às romanas.
Para os latinos, com efeito, o que determina, no caso dos rapazes, as fases da vida são as suas obrigações civis e militares, enquanto, no caso das raparigas, as fases da vida são determinadas pela obrigação de se casar e de ter filhos.
A diferenciação vocabular na designação das idades sucessivas revela bem as disparidades existentes entre os dois sexos. Assim é que quando um indivíduo do sexo masculino, se torna “adulescens”, um indivíduo do sexo feminino com a mesma idade não se torna “jovem, rapariga”, mas “uxor”, “esposa”. O seu estatuto na sociedade depende exclusivamente dos laços de dependência que a ligam ao seu marido e à maternidade. Assim se compreende que, enquanto o “jovem” passa a “homem novo”, a jovem ou “esposa” passe a “mãe de família”, o que acentua a função da mulher, enquanto reprodutora de futuros cidadãos.
O momento determinante de toda esta “formação” linguística é certamente o ano de 1850. É nessa data que o género masculino de “adolescente” perde a sua conotação satírica, o género feminino passa a ser corrente, ao mesmo tempo que os dicionários atribuem à “adolescência” uma fase específica da vida que, abarca globalmente as idades compreendidas entre os 14 e os 20 anos.
Quando comparamos a evolução da família de palavras a que pertence “adolescência” com a família a que pertence “puberdade”, deparamos com as incessantes flutuações a que aquela foi submetida, enquanto o que sempre caracterizou a segunda foi a sua notável estabilidade. A puberdade, quando analisada do ponto de vista da semântica histórica, apresenta-se sempre, de facto, como um período de transformação do organismo humano.
Tendo como pano de fundo este fenómeno, em si mesmo simples, as sociedades e as épocas construíram um outro período, de duração bastante variável, a adolescência, em que convergiram, em torno das manifestações biológicas, toda uma série de receios, de ambiguidades psicológicas e sociais, desencadeadas pelo aparecimento dos caracteres sexuais secundários...
Algumas teses defendem que a idade média do aparecimento das primeiras regras tem vindo a diminuir. Falam mesmo de uma precocidade secular. Com efeito, apoiando-se num certo número de inquéritos realizados em determinadas populações europeias, afirmam que, de há um século e meio a esta parte, a idade média do aparecimento das primeiras regras se tem vindo a reduzir, por década, entre dois a três meses. Não deixam, no entanto, de referir que, desde 1950, o movimento se teria estabilizado, situando-se, agora, a idade das primeiras regras entre os 12 anos e meio e os 13 anos e meio. É óbvio que estas teses se prestam às mais diversas amálgamas e não tem faltado quem queira confundir puberdade com a idade do aparecimento das primeiras regras. Convém, com efeito, estar atento às formulações propostas, sobretudo quando se trata de referências antigas. A puberdade é um processo de maturação e não pode ser reduzido a um marco, aliás, sem valor, para apreciar a possibilidade de procriação.
Dizer que um processo de maturação se acha terminado é uma afirmação que, enquanto tal, pertence incontestavelmente ao domínio opinativo, ao universo das apreciações flutuantes, tantas e diferentes são as variáveis a considerar. Não apenas morfológicas, mas igualmente neurológicas, fisiológicas, psicológicas, etc. Regra geral, considera-se que a puberdade finda quando está constituído o adulto fisiológico, ou seja, o indivíduo dotado de capacidades reprodutoras, cujo crescimento atingiu, pois, o seu termo. Mesmo a esse nível, a utilização de números médios é redutora. Basta pensar que no termo de um período pubertário que, regra geral, se prolonga por três a quatro anos, a rapariga atinge a sua estatura de adulto por volta dos 14-15 anos, e o rapaz por volta dos 17 anos... Nessas condições, é óbvio que a avaliação caso a caso do poder de procriação é particularmente delicada. E isto sem falarmos da maturação cerebral, maturação que não podemos deixar de considerar como um indicador particularmente significativo. O sistema nervoso dito central não é considerado, e com razão, o lugar superior de todos os comandos? Acontece, todavia que o electroencefalograma, cujos traçados registam a actividade eléctrica cerebral, raramente revela um padrão adulto antes dos 19 anos e não raro surgem, até aos 25 anos, traços imaturos nesse padrão adulto. Aliás, os dados que nos fornecem a anatomia, a biologia, a fisiologia... e a psicologia não nos permitem fixar com exactidão o momento em que se acha formado o cérebro adulto.
A puberdade, nesta perspectiva fica reduzida a um puro sintoma. Sintoma doloroso, é certo, porque feito de lutas, de batalhas inscritas no que alguns designam por crise da adolescência, ou seja, a luta contra a investida das pulsões e dos fantasmas infantis; ou, ainda, a luta de cada indivíduo para se identificar com os ideais do seu sexo.
Se a psicologia e a psicologia clínica procuraram definir uma puberdade psicológica, Jean Piaget, por seu lado, procurou definir uma puberdade intelectual. Piaget esforçou-se por descrever o funcionamento cognitivo da criança e a sua evolução, quer por observação directa quer criando situações experimentais.
Há, no entanto, outros psicólogos que defendem que, mesmo depois da fase do raciocínio formal, o conhecimento continua a evoluir, sendo provável que essa evolução acompanhe todo o ciclo da vida humana.
Se assim for, onde situar a maturidade? E porquê querer à viva força fazê-la coincidir com a puberdade?
Em 1905, em Viena, Freud publica o seu célebre livro “Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade”, primeiro escrito da literatura psicanalítica a debruçar-se sobre as mutações psicológicas que acompanham a puberdade.
Nesse seu livro, no capítulo que dedica às “transformações da puberdade”, Freud não escreve uma só vez a palavra adolescência. No momento em que os seus contemporâneos se deixam cair na armadilha de uma “adolescência” criada de fresco, Freud, também ele interessado nas profundezas do comportamento humano, entende não ter razões para dar qualquer crédito a esse conceito artificial. Refere, sim, “período da puberdade”, fala em “idade da puberdade”, e é tudo.”Com o começo da puberdade, aparecem as transformações que vão dar à vida sexual infantil a sua forma definitiva e normal”, assim rezam as primeiras linhas do seu texto. Na sua concepção, não existe a adolescência como classe de idade, nem como período particular do desenvolvimento humano. Para Freud, a criança existe. Existe igualmente o adulto, trazendo em si, na sua história, a criança que foi. Entre a criança e o adulto, existe a puberdade. Esta é apenas uma continuação da pequena infância e, de modo muito particular, da sua problemática sexual e relacional, uma e outra intimamente relacionadas. Para Freud, a sexualidade infantil sendo a sexualidade de base, as formas que a sexualidade reveste na puberdade, período terminal das transformações corporais e psíquicas, têm a seus olhos um interesse manifestamente reduzido. Em seu entender, essas transformações são no essencial uma reactualização dos desejos e de precoces impossibilidades.
Dora, a célebre paciente de Freud que, se fosse hoje, seria considerada uma adolescente, não só pelos seus 18 anos como pelo tipo de crises de que sofria, nunca é tratada desse modo pelo mestre vienense.
Só mais tarde a partir dos anos 20 psicanalistas abrem caminho à aceitação como válida de uma noção algo precária criada pelos seus contemporâneos transformando em pressuposto o que poderia ter sido apenas um artifício cómodo. Pouco interessados em desenvolver o pensamento de Freud, que se limitara a falar de puberdade, não hesitam, em resposta a uma pressão social, em sintonizar-se com um certo ar do tempo…A psicanálise passa, então, a interessar-se por tudo o que inquieta e incomoda, nomeadamente o problema dos jovens delinquentes.
Na segunda metade do século XIX, assistimos a um crescendo inegável dos receios relativos à juventude. O adolescente, pois tal é doravante o nome que se lhe dá, torna-se objecto de um número crescente de estudos. A esse título, igualmente, é apontado a dedo como a causa de muitos males de que sofre a sociedade de então.
Durkheim, sociólogo da integração, estigmatiza-o enquanto factor de desintegração da sociedade. Chega a afirmar, na sua obra intitulada O Suicídio, que “se os jovens se suicidam mais facilmente, é porque justamente estão mal integrados na sociedade. Por outro lado (…) os seus apetites sexuais arrastam-no para a prática da violência, da brutalidade, quando não do sadismo. Gosta de sangue; adora violar”.
Em 1909, é publicada pela Alcan La Criminalité dans l`Adolescence. Causes, Remèdes d`Un Mal Social Actuel. Nesta sua obra, Duprat prolonga e aprofunda a perspectiva de Durkheim. Afirma ele: “ O adolescente é um vagabundo nato”. Apaixonado por viagens, por mudanças de toda a ordem, é um ser profundamente instável. “Foge como fogem os histéricos e os epilépticos.” “O adolescente é potencialmente um doente”…
É evidente que, enquanto alguns se mostram interessados em julgar e em condenar, outros houve, nomeadamente Freud, que vão procurar compreender as motivações que presidem às aparentes desordens que se observam.
O primeiro motivo de preocupação é, sem dúvida alguma, a emergência da sexualidade na adolescência. Não motiva apenas o interesse, causa igualmente receios em pais, médicos e educadores. “O sexo dos estudantes liceais preocupa efectivamente, nomeadamente as amizades particulares, a prática da masturbação e a homossexualidade nos colégios internos. Com a preocupação, surge o controlo: vai ser necessário gerir, controlar e vigiar. Por exemplo, Lombroso, criminologista dos finais do século XIX, afirma explicitamente: “ Quando dois jovens estão juntos, é preciso desconfiar. É bem provável que estejam a fazer algo de mal.” Num seu romance póstumo, Le Lieutenant-Colonel de Maumort, Roger Martin du Gard evoca a homossexualidade nos grandes colégios internos dos anos 80 do século XIX.
Os anos subsequentes do pós guerra (1945) vão revelar uma juventude que, decididamente, gosta de gozar a vida, de se exprimir, de levantar problemas novos, exactamente como faria, não um ser em expectativa de vir a ser, mas alguém que assume plenamente a sua personalidade. A aquisição, por parte da adolescência, de uma maturidade nunca antes alcançada coloca toda uma série de problemas que, por sua vez, vão exigir a intervenção teórica e prática dos diversos tipos de profissionais do funcionamento humano.
No âmbito de uma sociedade que não pára de descobrir a juventude que vive no seu seio, na sequência aliás, de uma série de “pioneiros” que contribuíram para a invenção dos contornos psicanalíticos desse novo jovem, o pós guerra vai revelar-se fértil em contribuições nomeadamente de além Atlântico.
À força de estudar e de falar sobre a dita adolescência, essas teorias acabarão por pensar que o objecto dos seus estudos existe realmente. Como se isso não bastasse, farão com que a própria sociedade acredite que existe algo de evidente, de natural e de atemporal que dá pelo nome de adolescência.
Assiste-se, então, ao aparecimento de uma profusão de conceitos, os recentes indo mais longe do que os precedentes na busca de um “verdadeiro” objecto imaginário. Ouve-se, então, falar em adolescência como fase de transição, de pós-adolescência, etc. Anna Freud é uma figura de proa desse movimento. Diz ela:” Nunca estávamos satisfeitos com os conhecimentos que íamos adquirindo sobre a questão. Os pais (como, aliás, nós próprios) não tinham a menor confiança nos nossos talentos de psicanalistas no tratamento da adolescência. Apareceu, por essa altura, uma série de publicações para demonstrar o contrário. O facto é que a adolescência continuava a ser o que sempre fora, um parente pobre e afastado da teoria psicanalítica”. Logicamente, Anna Freud deveria ter baixado os braços…Continuou, no entanto, a insistir na inadequação dos métodos de diagnóstico e de análise ao fenómeno da adolescência.
Paradoxalmente, ou talvez não, é bem possível que o fracasso verificado tenha sido providencial. O facto de os modelos teóricos psicanalíticos (e subsequente prática) destinados à elucidação dos mecanismos humanos mais íntimos, ou seja, os mecanismos mais subjacentes e mais específicos de cada pessoa, não se adequarem a essa idade da vida, mostra que são capazes de abarcar o conjunto dos factores sociais, culturais, económicos, demográficos, que não só pesam sobre os púberes como contribuem para modelar o seu tipo humano, provisório e não analisável. No entanto, esse fracasso relativo, em vez de levar a uma reavaliação do fenómeno “adolescência”, do carácter volátil da sua formação e, por conseguinte, da sua natureza eminentemente artificial, incitou, pelo contrário, um certo número de terapeutas a criar centros e instituições para o seu respectivo tratamento. Ou seja, em vez de tentar compreender a natureza de um movimento complexo que fluía, fugia das terapêuticas e pretendia alcançar patamares estáveis de autonomia, essas respostas tinham por único objectivo controlá-lo.
“Nessas condições, não será de admirar que, além da terapia analítica, se recorra a toda uma panóplia de meios de tratamento, alterações provocadas no meio ambiente, tratamento institucional, criação de comunidades terapêuticas, etc.” São palavras de Anna Freud que, a seguir, acrescenta:”De um ponto de vista prático, e seja qual for o seu valor, não se pode esperar dessas tentativas experimentais um qualquer enriquecimento directo do nosso insight teórico quanto ao conteúdo inconsciente do espírito adolescente.”
Cansada de esperar hipotéticos resultados teóricos e terapêuticos, a sociedade, logo a seguir à guerra, vai procurar resolver por sua conta e risco os problemas criados pela parte menos disciplinada da juventude. Aliás, os jovens, pelo seu lado, actuam exactamente do mesmo modo. Com efeito, o crescimento das grandes metrópoles e das suas periferias satélites, o desenvolvimento de uma economia de grande consumo, o êxodo rural e o seu cortejo de rupturas familiares e culturais levam, de certo modo, os jovens a agrupar-se em bandos. Ou seja, em cada geração, cada grupo de idade vai, pouco a pouco, aprender a organizar-se por si próprio e a defender os seus próprios interesses. A delinquência juvenil que, no período anterior à guerra, era “tratada” em casas de correcção deixa de ser um problema exclusivamente penal, ou de polícia, para se transformar numa questão sociojurídica. Em 1945, na base de noções como reeducação e educação vigiada, são definidas várias medidas de tipo educacional, geridas por um juiz de menores. A partir desse momento, a ideia de que o jovem “com problemas” deve ser tratado num meio social aberto vai-se aos poucos difundindo, vindo posteriormente a evoluir no sentido de prevenir os comportamentos delinquentes, em particular as recaídas. Essa evolução encontrou num decreto de 1958 em França a sua tradução legal. Concomitantemente, desenvolve-se uma reflexão sistemática sobre os danos e perturbações causados pela juventude, na perspectiva de definir medidas jurídicas e socioeducativas tanto quanto possível adaptadas aos comportamentos verificados no terreno. Todo esse processo culminará com a Declaração dos Direitos da Criança proclamada pela ONU, em 1959.
Na prática, pretende-se que as crianças e os jovens que eventualmente se encontrem em certas situações ou revelem comportamentos anómalos, passem a depender de instâncias ou de circuitos institucionais especificamente concebidos para a protecção, o apoio ou a reeducação integrativa de que, conforme os casos, precisem.
Todos esses esforços e todas essas medidas não impedirão, contudo, que a marginalização da juventude se amplifique, ou mais exactamente, que os problemas que levanta deixem de pertencer ao domínio socioeducativo e passem a pertencer ao do médico-psicológico. Sempre que tal acontece, e tais ocorrências tendem, de facto, a aumentar, a crise pubertária passa a ser encarada como um fenómeno patológico.
O facto é que o ponto de vista se altera. Se, numa primeira fase, é uma paciência contida que impera face às perturbações induzidas pela puberdade, numa segunda fase, assiste-se à emergência de uma vontade decidida a eliminar totalmente essa perturbação induzida. Dir-se-ia que a juventude se transformou, de repente, numa nova doença misteriosa, cujo tratamento reclamasse cuidados de natureza sociomédico-psicológica. Esse novo olhar, que via na puberdade uma doença, olhará, mais tarde, e do mesmo modo, a gravidez e a velhice. Será necessário esperar por Winnicott, pediatra e psicanalista inglês, para que toda essa gente fosse chamada à pedra, a crise pubertária não tem nada de patológico, é um fenómeno absolutamente salutar; pelo contrário, o que é patológico é a ausência de crise.
Em 1900 em França há cento e trinta mil alunos no secundário; Em 1950 – um milhão; actualmente – mais de cinco milhões. Para se ocupar desta juventude, um exército de um milhão e duzentas mil pessoas, entre as quais seiscentos mil professores e professoras. Como já alguém se lembrou trata-se da maior empresa do mundo, sem contar com o Exército Vermelho. Mais de 10 por cento das despesas do Estado. Um Estado professor que pouco faz falar de si. Aos pais foram sendo progressivamente retiradas a maior parte das suas funções tradicionais, em termos educativos. Desejariam eles, aliás, que as coisas se tivessem passado diferentemente? Seja como for, é um facto, a família foi desresponsabilizada. A experiência deixou de ser uma matéria pessoalmente transmissível. Apenas o saber é transmissível, porque essa transmissão é funcional. Num mundo que vive em permanência da novidade, a palavra de ordem é “tornai-vos independentes”… dependendo cada vez mais de nós.
Entretanto, a multiplicação dos actos de violência perpetrados pelos jovens não se verifica apenas nas cidades e suas periferias, atinge directamente os estabelecimentos escolares.
Paradoxalmente, a escola, lugar de saber, é um fracasso devido à sua ignorância em psicologia da educação. A violência na escola é também um reflexo da violência da escola, porque ignorar as necessidades escolares específicas da criança é uma violência que lhe está a ser feita em permanência. Em nome da igualdade de oportunidades, procedeu-se a uma uniformização dos ritmos escolares e das idades norma de aprendizagem, criaram-se pontos obrigatórios de passagem, institui-se um sistema de orientação e introduziram-se critérios de avaliação que são, de facto uma selecção que não diz o nome que tem.
Como escreveu E. Todd em 1983: “ A estrutura antropológica, ao contrário do sistema ideológico, perpetua-se automaticamente. A família é, por definição, um mecanismo reprodutor dos homens e dos valores.” Nessa célula elementar que é a família de procriação, prossegue E. Todd, “cada geração, cujos valores de base são forjados no cadinho familiar, tem a possibilidade de reinventar, a partir da adolescência, a ideologia dominante do seu universo social”.
Podemos interrogar-nos se esse povo adolescente, que há muito se transformou numa pós-adolescência interminável de múltiplas dependências, é um fenómeno integralmente negativo, ou seja, se comporta apenas inconvenientes. Os profissionais da saúde, especializados nos problemas da juventude, não terão qualquer dificuldade em responder pela afirmativa. Constata-se, no entanto, que não é essa a resposta que dão os financeiros e os fabricantes de bens de consumo. Basta passar os olhos pelos desdobráveis publicitários que editam para vermos que assim é. Ao lê-los, uma conclusão se impõe – a função económica da adolescência é inversamente proporcional ao lugar que lhe reserva a sociedade. Os adolescentes, esse povo extraordinário!” eis o que eles proclamam. E não admira que lhes saiam da boca exclamações dessas! Basta atentar nos seguintes factos; Os 15 – 24 anos em França representam um poder de compra avaliado em duzentos e dezoito biliões de francos; os 18 – 24 anos gastam em média, e por mês, dois mil setecentos e doze francos em divertimentos e outros prazeres diversos; 84 por cento daqueles com 15 – 24 têm conta bancária própria…Este último indicador é apenas a ponta do icebergue do processo de bancarização em curso da juventude.
Pelo seu lado, a publicidade e os meios de comunicação exploram não só a influência que as crianças exercem sobre o consumo dos seus pais, influência tanto maior quanto é verdade que tendem a viver juntos mais tempo sob o mesmo tecto, como a auto sugestão que os pais exercem sobre si próprios e que os leva a imaginar que um dado produto é mais conforme do que aqueloutro às aspirações dos filhos.
Na realidade, a publicidade explora a fundo um paradoxo comportamental entre desejos e necessidades que se tomam por originais quando, de facto, e porque correspondem a necessidades naturais, são próprias de uma dada idade e a sua satisfação, sinal de um evidente conformismo. Assim, para serem originais, os jovens escolhem e compram artigos pensando obviamente que estão a fazer prova de um gosto pessoal, quando, na realidade, esses artigos foram lançados por agentes comerciais que se servem do seu conformismo natural para aumentar as suas próprias vendas. O mesmo se passa com a promoção das vedetas da canção, de modas ao nível da roupa, etc…
Em suma, numa visão a médio prazo, parece estar a formar-se uma enorme estirpe de consumidores submissos. A pergunta que podemos fazer sobre os efeitos que teria sobre os jovens a sua situação de espera prolongada às portas da idade adulta tem aqui a sua resposta. Não é bom para os jovens, é certo, mas é muito útil para os agentes económicos.
Tal não deve conduzir a sociedade a renunciar aos seus códigos e valores, mas não a dispensa do dever de prestar atenção às aspirações daqueles que ainda não têm responsabilidades, e de aceitar ser abalada por essas aspirações emergentes.
Abalos esses que recentes acontecimentos, geograficamente próximos ou longínquos, nos vieram lembrar, independentemente das formas que tomaram, o seus carácter universal.
Não só na China, em Maio e Junho de 1989, onde os estudantes da praça Tien Na Men pediram mais democracia e liberdade a gerontocratas, mas igualmente em França, onde, em Novembro e Dezembro de 1986, no Outono de 1990, em Março de 1994, estudantes liceais e universitários reclamaram que lhes fosse dado um lugar na sociedade adulta.
Uns e outro puderam verificar o preço do que pediam. Na China, passada a surpresa inicial, os gerontocratas responderam com carros de assalto e armas automáticas à intolerável ousadia da juventude. O que um sistema político ditatorial não conseguira, durante décadas, com o controlo dos nascimentos e com casamentos o mais tardios possível, as armas iam, desta vez, conseguir?
Em França, os estudantes, filhos dos homens e mulheres de Maio de 68, não reivindicavam, como haviam feito os seus pais, uma juventude diferente, autónoma, triunfante, pediam apenas um lugar. Foi-lhes respondido com um folheto, tirado a oito milhões de exemplares, onde lhes era sugerido: “Metam em prática as vossas ideias”…Nessa base, voltaram à rua, no Outono de 1995. De nada lhes valera pôr as ideias em prática. Isso fora apenas um pretexto. Exigiam, agora, pura e simplesmente não ser tratados como uma geração sacrificada.
Breve Conclusão
Na sociedade adulta contemporânea, o principal papel da adolescência é funcionar como sintoma, como doença, como reflexo insuportável e como perigo uniforme, visível e designável. Reflexo de uma sociedade cada vez mais velha e fechada que, para se proteger, a designa como o seu diferente, o seu outro fundamental, é esse o papel estrutural da adolescência.
O facto mais saliente destes últimos anos é, sem dúvida, o fosso crescente entre o que preocupa os adultos e aquilo que realmente interessa os jovens. Quando os primeiros pensam adolescência, as palavras que lhes vêm ao espírito são bem diferentes - toxicomania, sida, violência, suicídio. Quando os segundos pensam em si próprios, pensam-se em termos de integração e de qualidade das relações afectivas.
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