Thursday, February 22, 2007

A PSICANÁLISE NO QUADRO GERAL DAS CIÊNCIAS DO HOMEM

A Psicanálise tem por objecto os efeitos subversivos da linguagem sobre a relação existente entre o sujeito e o seu corpo; mas desconhece o carácter determinante da excentração social da essência humana neste processo.

O problema do lugar ocupado pela psicanálise no quadro geral das ciências do homem não tem nada de problema teórico que apenas a especialização nestas matérias permitiria detectar; é pelo contrário, um problema cuja evidência é enorme, e sobre o qual ninguém pode deixar de se interrogar perante a torrente de uma literatura, de todos os níveis, em que a psicanálise é apresentada, ou se apresenta, como a maior autoridade ou como a explicação mais profunda e geral da maior parte dos fenómenos humanos, senão de todos.
Terapêutica e teoria das neuroses, a psicanálise propõe-nos uma concepção do aparelho psíquico humano e, a partir dela, de toda a vida política nas suas estruturas e processos de base. Mais ainda, intervém para abordar a moral, a magia e a religião, a mitologia e a arte - o conjunto da vida social: as relações familiares, pedagógicas, jurídicas e políticas, revolução e luta de classes, guerra e antagonismos entre os povos, violência e ódios raciais.
Em todos estes domínios entra em conflito com uma perspectiva dialéctica e social de que contesta, de uma forma mais ou menos radical, a validade explicativa e em relação ao qual, na maioria dos casos, tem a tendência natural de tomar o respectivo lugar, como sistema de referência fundamental. Damos um simples exemplo: não se pede evidentemente defender por um lado que a religião é no fundo, uma neurose obsessiva, isto é, apercebemo-nos dela em termos de ilusão psíquica que remete para as relações da criança com o pai e , ao mesmo tempo, que ela consiste, em última análise, num protesto mistificado pelos homens contra a sua miséria real, ou seja, analisá-la em termos de ideologia social que remeta para relações de produção. E, se com Freud, se defende a primeira tese, como se pode deixar de contestar a dimensão essencial da segunda? Nos debates de ideias contemporâneas, o problema que abordamos põe-se, portanto, na maior parte das vezes como francamente fraudulentas, servem apenas para complicar, sem motivo, um problema no fundo bastante claro, que temos de resolver: Qual é exactamente a relação entre a ciência de inconsciente que a psicanálise pretende fundar e a ciência das relações sociais? E qual a sua posição respectiva no quadro geral das ciências humanas?
Mas antes de iniciarmos tal investigação, afastemos uma objecção prévia, não só possível mas mesmo frequente: a vastidão das ambições explicativas da psicanálise e, consequentemente, a convicção de ocupar o lugar central no campo das ciências do homem, é-lhe de facto inerente? Tem o apoio de Freud? Ou não passará de uma elaboração secundária, um duvidoso e inútil acréscimo que deveríamos discutir rigorosamente, mas que não põe em causa a base da psicanálise, considerada na sua verdadeira autenticidade? Para todos aqueles que pensam poder distinguir entre "uma extenção razoável" e uma "generalização excessiva" da psicanálise e, por conseguinte, dispensar-se de procurar atentamente quais as relações existentes entre a doutrina freudiana e a "psicanálise para todo o serviço", importa lembrar que, embora Freud não seja, de modo algum, responsável pelos inúmeros disparates pseudo-freudianos que foram escritos em seu nome, pronunciou-se no entanto várias vezes e claramente a favor de uma concepção vasta e ambiciosa do alcance das suas ideias, e não o fez por uma inclinação pessoal para o dogmatismo ou para o imperialismo - podemos encontrar na sua obra, pelo contrário, vários testemunhos de modéstia e prudência científica - mas por convicção.
Desde 1912, em Totem et Tabou que afirma que a psicanálise "descobriu o determinismo mais remoto e mais profundo dos actos e formações psíquicas". Acrescenta no entanto que "não se deve temer que ela seja tentada a atribuir a uma única fonte um fenómeno tão complexo como o religioso" e que "só uma síntese dos resultados fornecidos por diferentes ramos de investigação poderá mostrar qual a importância relativa que se deve atribuir ao mecanismo (psicanalítico) na génese das religiões". Mas não deixa de concluir, nas últimas páginas do livro, que "se reencontra no complexo de Édipo, ao mesmo tempo, o começo da religião, da moral, da sociedade e da arte" e expressa claramente o seu pensamento na seguinte nota:
"A fim de evitar mal-entendidos, creio não ser inútil relembrar expressamente que, ao estabelecer estas relações , não esqueço de modo nenhum a natureza complexa dos fenómenos que investigamos e que a minha única intenção é juntar às causas conhecidas ou ainda não reconhecidas da religião, da moral e da sociedade, um novo facto que se destaca das investigações psicanalíticas. Devo deixar para outros o cuidado de efectuar a síntese de todos estes factores. Mas a natureza do novo factor que assinalamos é tal que ele deverá forçosamente desempenhar o papel principal na futura síntese, mesmo que, para se lhe atribuir esse papel, seja necessário vencer fortes resistências afectivas."
Nesta afirmação vemos atribuir inequivocamente à psicanálise o papel explicativo "principal" no que respeita à "sociedade" em geral, e que visa até desqualificar teoricamente "a priori" qualquer argumentação em contrário, desde já apresentada como manifestação de uma "resistência afectiva" Freud nunca alterou a sua posição sobre esta tese. Para que conste, encontramos a mesma perspectiva quinze anos mais tarde na obra Psychanalyse et Médecine.
Vejamos então o preço que é pago pela psicologização inicial da realidade social e, na ocorrência do facto religioso: ela leva a admitir que a história, processo essencialmente aberto, seja assimilada à curva, por definição fechada, de uma biografia individual; que a "infância da humanidade" foi, propriamente falando, uma infância no sentido edipiano do termo, cujos vestígios se teriam conservado na generalidade dos indivíduos por meio da hereditariedade psicológica, embora esta noção seja condenada por tudo aquilo que se sabe, quer em genética, quer em psicologia; que a criança, o primitivo e o neurótico constituíram, em definitivo, independentemente das suas diferenças, três manifestações de um processo psíquico fundamentalmente um cuja solução nos seria dada pela análise da neurose, enquanto todo o moderno movimento das ciências humanas tem argumentado contra estas analogias falaciosas; a para coroar tudo isto, leva-nos a fazer depender a compreensão dos factos humanos no seu todo de um dos dogmas mais ultrapassados do último século: a aplicação do princípio biológico de reprodução das fases fundamentais da filogénese nas da ontogénese à psicologia e à história mediante uma assimilação prévia de "filogénese social" a uma "ontogénese psíquica". Destaquemos ainda mais o aspecto essencial: a psicologização da sociedade, quer dizer a ignorância das suas bases materiais específicas, conduz inevitalmente qualquer teórico convencido de que a ciência ou é materialista ou não é ciência, que era o caso de Freud, a procurar um substituto desta materialidade histórico-social na via de uma biologização radical dos factos humanos no seu conjunto.
A reflexão de Freud sobre a religião, e de um modo mais geral sobre a sociedade, é prova esclarecedora disso: não consegue defender a assimilação do social ao psíquico, a não ser assimilando simultaneamente em profundidade o psíquico ao biológico. "O processo cultural da humanidade tal como o desenvolvimento do indivíduo, escreve em Malaise dans la Civilization, não processos vitais e devem portanto participar no carácter mais geral dos fenómenos da vida", e é por este motivo que seriam, no fim de contas, "de natureza muito semelhante, se não forem mesmo processos idênticos aplicados a diferentes objectos".
Nos últimos anos de vida em Moisé et le Monothéisme, é ainda mais afirmativo: "Este postulado (da hereditariedade política) leva-nos ainda mais longe: adoptando-o, diminuímos o abismo que o orgulho humano criou entre o homem e o animal. Se aquilo a que chamamos o instinto dos animais, aquele instinto que lhes permite comportarem-se face a uma nova situação como se ela já lhes fosse familiar, pode ser explicado, sê-lo-á da seguinte forma: os animais aproveitam-se da experiência adquirida pela sua espécie para enfrentarem a nova experiência, quer dizer que têm em si a recordação do que foi vivido pelos seus antepassados. No animal humano as coisas passam-se sem dúvida da mesma maneira. A sua hereditariedade arcaica, embora diferente pela sua amplitude e carácter, corresponde aos instintos dos animais."
Perante um texto destes é difícil não concordar que, por muito importante que possa ser uma releitura contemporânea de Freud com vista à descoberta do "núcleo estrutural" da capa biologizante, a distinção entre a noção de pulsão - cuja fixação a um objecto estaria assegurada ao longo da história do sujeito - e o instinto - onde esta fixação seria hereditária - não o é menos todo o procedimento de Freud quando procura atribuir à psicanálise o principal papel explicativo no campo das ciências humanas, o que implica "instintualisar" o psiquismo individual, biologizar os factos humanos, aparecendo a hereditariedade psíquica como o único meio de dar ao social uma base individual, ao individual uma dimensão social.
Mas, por uma recorrência final, a inevitável biologização dos factos humanos implica por sua vez a negação do seu carácter fundamentalmente histórico, isto é, a crença numa natureza humana no fundo imutável: psicologização do social, biologização do psíquico, naturalização do humano, são assim os três postulados máximos em que assenta a colocação da psicanálise no centro das ciências do homem.
Por isto não têm futuro científico as tentativas para "desbiologizar" a obra freudiana, caso apenas consistam em procurar, por exemplo na linguística, explicações substitutivas destes estados biológicos decadentes para desse modo salvaguardar a economia de conjunto, e em particular a psicologização última dos factos humanos, Como se pretendeu mostrar, o biologismo não é, em Freud, um erro local grosseiro, contingente; é um elo necessário a uma forma de pensamento que começa por tomar como forma - padrão dos factos humanos a sua forma psíquica individual, pois não reconhece a materialidade da essência humana na dialéctica das forças e das relações de produção social. Não podemos, portanto, escapar ao dilema: desbiologização sem significado real, ou abandono completo da própria psicologização. Mas neste segundo caso acaba-se com qualquer pretenção de psicanálise ao papel explicativo "principal" dos factos humanos no seu conjunto.
É necessário dizê-lo: se em certo número de aspectos a obra de Freud nos dá a forte impressão de estarmos perante um pensamento científico profundamente original e fecundo, os aspectos que temos vindo a citar refletem a mais medíocre ideologia.
No entanto, o mérito histórico de Freud reside em ter sido o primeiro a considerar a sexualidade como objecto de ciência, para lá dos tabus sociais e dos preconceitos ideológicos, e em ter começado o seu estudo revelando uma série de factos apreendidos por uma prática fecunda: mas simultaneamente, este grande pioneiro permaneceu prisioneiro das ideologias dominantes da sua época no que respeita às mais essenciais concepções acerca do individuo, da sociedade e sua relações; estas ideologias marcaram profundamente uma prática psicanalítica enraizada, de resto, nas relações sociais burguesas, que falsearam até ao âmago as suas construções teóricas, fizeram abortar em parte a tentativa científica e relegaram a psicanálise para a categoria das ideologias retrógradas. Neste sentido toda a fundamentação teórica da psicanálise deve ser refeita.