ESTADO E BUROCRACIA NA GUERRA CIVIL ESPANHOLA
"On perdit la guerre car on ne voulut pas faire la Révolution"Carlos Semprum-Maura"Prendre le pouvoir n´est pas faire la Révolution »(A propósito da Comuna de Paris)Albert Ollivier"A burocracia detém a essência do Estado, a essência espiritual da sociedade; esta é a sua propriedade privada. Mas, no seio da burocracia, o espiritualismo transforma-se num crasso materialismo, o materialismo da obediência passiva, da fé na autoridade, de o mecanismo de uma actividade formal fixa, de princípios, de tradições fixas.Enquanto para o burocrata tomado singularmente, o objectivo do Estado se torna um objectivo privado, uma caça aos postos mais elevados, um fazer carreira.Na burocracia, a identidade entre o interesse estatal e o objectivo privado particular situa-se de tal modo que o interesse estatal se torna um objectivo privado particular perante os outros objectivos privados."MarxOs burocratas e ortodoxos do Partido Comunista não leram esta passagem de Marx ou então esqueceram muito depressa a Crítica da Filosofia do Direito de Hegel.IA realização deste estudo foi motivado pelo facto dos anarquistas terem entrado inicialmente no governo da Catalunha a 27 de Setembro de 1936 e posteriormente no governo central a 4 de Novembro do mesmo ano. A investigação levada a cabo mostrou que por detrás desse acontecimento paradoxal, algo mais importante se ocultava. Tratava-se somente da ponta do iceberg. O fenómeno desta adesão a algo que visceralmente os anarquistas sempre repudiaram tinha a ver com as transformações que a própria CNT-FAI, ao nível de alguns dos seus dirigentes, ia sofrendo. A burocratização do Estado renascente a partir de finais de 36 e da própria CNT-FAI, o aniquilamento das Milícias para a formação dum exército regular que se prende com uma certa bolchevização da CNT a partir de princípios de 37 e com a defesa do centralismo democrático por parte dos dirigentes cenetistas são factores que estão por detrás da burocratização e da estatização da CNT-FAI. A entrada de 4 anarquistas no governo central é por isso consequência quase que inevitável, tendo em conta o peso e a importância da CNT-FAI no conjunto da Espanha republicana.IIAo nível do processo histórico e da acção prática assim como no mundo imaginário dos libertários, os três anos de guerra civil espanhola ou como outros gostam mais de chamar, da Revolução e contra-Revolução em Espanha ou ainda como será mais correcto designar de guerra social espanhola, o papel da máquina do Estado foi capital quer nos primeiros tempos em que o seu protagonismo foi bastante secundarizado mas não totalmente esmagado, quer depois com o seu restauro devido, quer à insegurança e contradições da CNT-FAI, quer devido à acção dos comunistas espanhóis fortemente apoiados por Moscovo.Para os libertários e apesar das suas diferenças que cada vez mais me convenço de que são mais aparentes do que reais, há um conjunto de tópicos que me parecem básicos, que podemos designar comuns a todos e portanto funcionam como axiomas. Vejamos alguns deles:Onde quer que haja autoridade, há sacrifício e vice-versa. O chefe e o militante são o ponto onde a revolução se inverte e se torna o contrário da emancipação. Assim, tornar-se um chefe é deixar de ser humano para todos aqueles que têm a consciência que o estão a tratar como subordinado.O Estado é o regulador e a rede protectora da mercadoria. Esforça-se por ordenar politicamente o trabalho social em direitos e deveres do cidadão, por organizar os planos ideológicos e os mecanismos repressivos que transformam o indivíduo num servidor do sistema mercantil.Onde quer que haja Estado, há polícias. Onde quer que haja polícias, há Estado ou esboços. O polícia é o cão de guarda do sistema mercantil. Surge sempre coberto pela classe ou pela casta burocrática dominantes. Daí que seja legítimo concluir que qualquer hierarquia é policial. Do mesmo modo é falso crer que as reivindicações de salário podem por em perigo o capitalismo privado ou de Estado: o patronato não concede aos operários senão o aumento necessário aos sindicatos, para demonstrar que estes ainda servem para alguma coisa; e os sindicatos não exigem do patronato, que dispõe do aumento dos preços, senão somas que não coloquem em perigo um sistema em que eles são os segundos a lucrar.A política é sempre a razão do Estado. Para acabar com ela é preciso acabar com o sistema espectacular mercantil e respectiva organização de protecção - o Estado.Não há parlamentarismo revolucionário, assim, como não há, nem nunca pode haverá um Estado revolucionário. Entre os regimes parlamentares e os regimes ditatoriais a diferença é a mesma que entre a força da mentira e a verdade do terror.Como qualquer ideologia, como qualquer actividade separada, a polícia recupera as reinvindicações radicais para as fragmentar, transformar no seu contrário. Por exemplo, o desejo de modificar a vida transforma-se, nas mãos dos partidos e dos sindicatos numa reivindicação de salário, um pedido de tempo livre e outros melhoramentos de sobrevivência, que mais não fazem do que aumentar o mal-estar, tornando-o mais ou menos confortável, momentaneamente.Os sindicatos são a burocracia para-estatal que completa e aperfeiçoa o poder que a classe burguesa exerce sobre o proletariado.O hábito de falar sem dizer nada, de se perder em falsos problemas, de dar atenção aos que falam de uma maneira e agem de outra, de se abandonar à fadiga dos disparates quotidianos e do repetitivo, é ainda uma maneira de impedir cada um de reconhecer nas suas paixões, nos seus desejos de vida autêntica, o inverso dos desejos de apropriação privada inventados pelo comércio, os seus verdadeiros interesses.A linguagem que não conduza à sua prática, depressa se transforma em ideologia, ou seja, em mentira, como tudo o que dizem os membros dos aparelhos burocráticos, (partidos, sindicatos, grupos especializados no melhoramento do rebanho operário).IIIEstamos agora em melhor altura para analisar a questão que nos impusemos tratar. Hoje é claro que, no campo da Frente Popular, os Estalinistas foram os mais encarniçados inimigos das colectivizações e da democracia operária. O POUM, pelo seu lado, ultrapassado pela iniciativa operária e subestimado as suas realizações, situou-se por vezes em momentos importantes do lado dos operários como por exemplo nas jornadas de Maio. O que não o impediu de condenar, sob a caneta de Juan Andrade(1) das realizações "espontâneas e sem plano de conjunto" da classe operária em geral e dos anarquistas em particular. Aqui também, a sua visão centralista - leninista levou-os a subestimar uma experiência rica e viva, em nome de dogmas que a queriam impossível, tendo em conta que a sua realização não era conduzida nem pelo Governo Operário e Camponês nem pela mão férrea do partido de vanguarda.O único poder que a Generalidad (2) teve durante os primeiros meses de revolução foi um poder financeiro. Desde cedo estabeleceu um controlo rigoroso sobre todas as operações bancárias. Obrigada a levar a bom termo a luta em Aragão, a ajudar militarmente o governo central, a procurar armas e munições, a acudir às necessidades duma população, dum país em que as exportações tinham caído a zero, o governo catalão, pensou que lhe era legítimo exigir do governo central a autorização de transferir 180 milhões de pesetas por conta do Banco de Espanha. Em vez de responder a esta reclamação, o Tesouro Nacional ordenou à Delegação das Finanças de Barcelona de lhe entregar 373 milhões de pesetas. A antiga contenda regionalista animava-se de novo em Agosto de 1936.Tendo em conta que o poder operário era ainda embricionário, a única autoridade capaz de resolver o conflito era naturalmente a Generalidad. Declara-se a penhora da sucursal catalã do Banco de Espanha, o que leva ao confisco, como represália, de 36.000 libras esterlinas que a Catalunha possuía em Paris. Mais tarde o governo central cede e declara legais as operações efectuadas pela Generalidad. Mas o acordo concluído entre os dois poderes prevê que era só válido para o governo da Generalidad. Esta última reserva é de grande importância, pois demonstra a desconfiança total que vai até à sabotagem, do governo central em relação ao Comité Central das Milícias e duma maneira mais geral contra os comités operários e as colectivizações. Sendo a única potência financeira da Catalunha, a Generalidade irá utilizar este meio para exercer o seu crescente controle sobre toda a vida económica de região.A questão do crédito, será o verdadeiro estrangulamento das colectivizações, não foi regulada pelos pontos de vista dos revolucionários. É a sua crise que ameaça o funcionamento das empresas colectivizadas. O Conselho da Generalidad da Catalunha recusa a criação do Banco para a Indústria e o Crédito, pedido pela CNT e o POUM. Os bancos podem mesmo recusar os seus créditos às empresas privadas e levantar antecipadamente comissões exorbitantes sobre transferências de fundos ordenados pelo governo. Juan Peiró propõe a criação dum Banco Industrial, destinado a financiar a actividade das fábricas colectivizadas. Mas o ministro das Finanças Negrin opõe-se!... Desta maneira se encontrou limitado e a partir duma certa altura parado o movimento das colectivizações, pois o governo ficou senhor das empresas por intermédio dos bancos. Pouco a pouco, afirma a sua autoridade nas empresas colectivizadas e nas que estão sob controle operário pela escolha que faz dos controladores e dos directores. Com a preocupação da eficácia ou de ordem política o governo chega mesmo, em vários casos, a repor nos seus antigos lugares, com um outro título, antigos proprietários e quadros de direcção.A liquidação total das colectivizações só irá acontecer com a derrota da Frente Popular. Na Catalunha, nomeadamente contra ventos e marés, sectores importantes da indústria e serviços públicos, manter-se-ão nas mãos dos trabalhadores até ao fim da guerra embora com os reais problemas que foram anteriormente referidos. O governo central também se preocupou desde cedo em legislar no sentido de dissuadir o fortalecimento das colectivizações, como já vimos, e por outro com o passar do tempo de dissolvê-las, para ter um controlo efectivo e total sobre todo o país que ainda não tivesse sido conquistado pelas forças fascistas.Desta maneira, no mês de Maio após as jornadas das barricadas, o governo central anulou o decreto das colectivizações do 24 de Outubro de 1936 com o pretexto que a Generalidad não era competente na matéria: o artigo 44 da Constituição especifica que somente o Estado poderia expropriar e socializar, a Generalidad não poderia substituir o Estado espanhol.Um outro decreto, de 28 de Agosto de 1937, dava ao governo central o direito de intervenção e de controle absoluto sobre as minas e o conjunto das indústrias metalúrgicas. Em Outubro do mesmo ano Solidaridad Obrera (3) denuncia uma decisão dos serviços do Ministério da Defesa: este só concluiria contratos com as empresas que funcionassem "sob a direcção dos seus antigos proprietários ou sob o regime equivalente assegurado pelo controle do Ministério das Finanças e da Economia."Nem a sabotagem financeira nem todas as disposições legais e pressões políticas não conseguiram liquidar de vez as colectivizações.O que é essencial nesta batalha nas múltiplas frentes nunca foi escrito. Fala-se, bem ou mal, das colectivizações citando números, factos, etc. Falou-se do decreto do seu funcionamento, da organização sindical, das disposições legais - a favor e contra - Numa palavra houve a preocupação excessiva em estudar as instituições para as elogiar e as dar como exemplo ao mundo, ou para as criticar e tentar mostrar que a autogestão é um engodo e é-se levado a falar de tudo o que foi feito contra a autogestão. Mas verdadeiramente nunca se falou do estado de espírito dos trabalhadores e da sua relação com a autoridade. É este vazio de que é fundamental reflectir e que poderá servir para compreender muitas coisas na altura como actualmente.Este é um trabalho mais importante que a procura nostálgica das "boas instituições" permitindo um "melhor funcionamento da economia".Pelo estudo dos textos e dos testemunhos, muitas vezes de maneira imprecisa e volúvel, infelizmente, que não nos permitem entrar nos detalhes, aparece um comportamento que podemos designar de desobediência civil. Esta democracia selvagem, como as greves com o mesmo nome, afirma-se contra o Estado, os patrões e contra as burocracias "operárias" e não é institucionalista - nem certamente expressa em nenhum texto legal, nem em nenhum programa de nenhuma organização, nem em nenhuma análise de nenhum teórico. A simples razão disso acontecer é que reconhecê-la seria negá-la como "lei" como "vanguarda dirigente" e mesmo como "teoria". Foi o estado de espírito revolucionário e libertário dos trabalhadores que a tornou possível, este estado de espírito que os lançou contra os militares e os fascistas que os empurrou a tudo colectivizar - ou quase - e que alimentou a sua recusa da Autoridade. A grande questão que se coloca neste momento é como com este espírito rebelde e esta democracia selvagem imposta pelos trabalhadores, o Estado autoritário pode ser restaurado - mesmo se era mal obedecido -? Como é que o movimento das colectivizações foi limitado até ser quase liquidado? É justamente através duma maneira de viver a solidariedade de classe, uma fidelidade à organização, uma concepção do militantismo, que a Autoridade foi reintroduzida "na cabeça" dos militantes, mesmo os mais rebeldes, é esta fidelidade filial à organização (neste caso a CNT-FAI) que ao fim e ao cabo, limitou até certo ponto, a grande recusa dos anarquistas. E isto leva-nos naturalmente a falar do fenómeno burocrático no movimento das colectivizações.O estudo deste fenómeno está ausente dos textos que a favor ou contra analisam o tema das colectivizações. É importante falar da transformação burocrática da CNT-FAI no "calor" do poder.É na gestão sindical que o fenómeno burocrático toma sobretudo na Catalunha um relevo numa certa medida original. Se nos reportarmos a esta época veremos que contrariamente ao que se passava na CNT anterior à revolução, onde o único lugar remunerado, numa organização ultrapassando o milhão de aderentes era o de Secretário Geral e estes não ficavam nunca muito tempo em funções, uma organização, numa palavra, que tinha a fobia do burocratismo e lutava contra este fenómeno inerente a toda a organização, uma nova camada de funcionários sindicais fervilham em todos os organismos do Estado ou propriamente sindicais, ocupando ou querendo ocupar-se da gestão, coordenação, planificação, comercialização da produção das empresas colectivizadas. Esta nova fornada de responsáveis sindicais, separados do trabalho produtivo, tinham um real poder e um poder que era por sua vez económico, político, militar e mesmo policial. Nos concelhos municipais, na administração do Estado e mesmo no seio dos governos - nos organismos políticos de aliança anti-fascista ou propriamente anarquistas (CNT-FAI-FIJL), no seio das associações de colectividades agrícolas e industriais, no novo exército criado nas ruínas das milícias, na polícia, paralela ou não, em todo o lado onde se situa o novo poder, no topo da nova hierarquia, reencontramos o mesmo grupo de dirigentes, a camada de dirigentes sindicais estendidos nos poderes e cuja renovação por eleição é cada vez mais substituída pela agregação - a guerra obriga! Apesar da sua bandeira negra e vermelha e as conversas sobre a liberdade, trata-se bem de uma burocracia, quer dizer duma camada "separada" de dirigentes, cristalizando-se à volta de interesses específicos que resultam do exercício do poder, dum poder por sua vez económico e político, falando em nome do proletariado, quer dizer em vez de le, enquanto que o proletariado fala cada vez menos, antes de ser totalmente amordaçado!"A burocracia é aos nossos olhos - escreve Claude Leford - um grupo que tende a fazer prevalecer um certo modo de organização, que se desenvolve em determinadas condições, que se dilata em razão dum certo estado da economia e da técnica, mas que não é o que é, na sua essência em virtude duma actividade social. Toda a tentativa de apreender a burocracia, que não ponha em evidência um tipo de conduta específica, parece-nos à partida votada ao sucesso. A burocracia não existe para os burocratas, que pela intenção comum de constituir um meio à parte, à distância dos dominados, de participar a um poder socializado, de determinar uns em relação aos outros em função duma hierarquia que garanta a cada um quer um estatuto material, quer um estatuto de prestígio."Mas prossegue Claude Lefort, não podemos reduzir a burocracia a uma soma de comportamentos similares. O comportamento do indivíduo isolado é "ininteligível". "È somente substituído no quadro do grupo que tenha um sentido. A burocracia constitui-se com efeito numa socialização imediata das actividades e das condutas. O grupo não é, aqui, uma categoria de actividade ou de estatutos socio-económicos: é um meio concreto onde cada um extrai a sua própria determinação. Mas esta observação faz por outro lado aparecer o vínculo da burocracia com a instituição de massa. É nesta última, ministério, sindicato, partido, empresa industrial, que ela encontra a sua forma adequada. Pois a unidade do quadro, a inter-conexão dos lugares, o número dos empregos, a proximidade dos homens, no interior de cada sector, a perspectiva oferecida dum desenvolvimento galopante da instituição, o volume dos capitais envolvidos, circunscrevem um campo social do poder. Daí ocorre que a identificação do burocrata com a imprensa à qual está ligado é uma mediação natural na consciência que o grupo adquire da sua própria identidade. Mas esta identificação não deve dissimular que em realidade a burocracia não encontra o seu destino estritamente imposto pela estrutura teórica da instituição de massa mas que lhe dá forma como os seus. Agente duma estruturação bem particular, multiplica os lugares e os serviços, estabelece divisões entre os diversos sectores de actividade, faz nascer antecipadamente as tarefas de controle e de coordenação, rejeita numa função de puros executantes uma massa sempre crescente de trabalhadores por lhes impor a todos os níveis uma função de autoridade procurando atingir a sua máxima amplitude pela criação dum sistema tanto diferenciado como possível de relações de dependência"(4)Claro que em plena guerra civil e na violência dos conflitos sociais, a burocracia não pode possuir na Catalunha os seus traços definitivos, no entanto trata-se dum rascunho ao qual a definição de Lefort convém perfeitamente. Esta burocratização "sindical" não era monolítica. Por vezes ligada ao aparelho de estado, confunde-se com ele e opõe-se ao mesmo tempo. Conflitos estalam entre funcionários sindicais, colocados pela situação política no aparelho económico do Estado, e funcionários que não tendo responsabilidades que as sindicais, mas exercendo todavia um poder gestionário. Sem ir mais longe, pode tomar-se o exemplo dos "Conselhos da Indústria" onde se encontram membros da CNT delegados pelo Governo catalão e outros membros da mesma CNT delegados pelo sindicato de indústria correspondente. Uns eram encarregados de defender a autoridade do Estado, os outros a autonomia dos sindicatos e as suas relações na economia. E nem sem sequer se está a falar das rivalidades, imensas penetrantes entre a CNT e a UGT neste domínio como noutros.Os responsáveis da CNT colocados em ramos diferentes da burocracia apelavam à "disciplina de organização", uns exigindo o respeito de autoridade do camarada ministro, os outros a do camarada secretário geral do sindicato correspondente. Trata-se "de algo bem mais importante que uma simples discussão de pessoas e de atribuições, algo bem mais substancial que a desordem e a papelada que derivam desta proliferação de comités e de comissões exercendo controlos de todo o tipo - por vezes estadista e outras sindicais, ou de partido sobrepondo-se e entrando em disputa uns com os outros. Trata-se da luta pela hegemonia entre duas tendências da burocracia. A primeira, que chamamos de "sindical" e que na Catalunha era quase exclusivamente representada pela CNT-FAI, e a segunda: a burocracia estadista onde todas as organizações políticas e sindicais anti-fascistas estão representadas - incluindo a CNT - mas com o passar dos dias a influência dos estalinistas vai aumentando.O problema da burocracia não é um problema secundário das sociedades contemporâneas em geral, nem da Catalunha revolucionária em particular. Não se trata de modo algum dum fenómeno marginal podendo ser reduzido por, sabe-se lá, um bom funcionamento das "instituições democráticas" ou pelo "direito de tendência". O problema da burocracia é um problema central do nosso tempo. Claro, que depois da revolução espanhola, a soma das experiências burocráticas enriqueceu-se consideravelmente com a vitória das burocracias totalitárias em numerosos e vastos países assim como pela burocratização do capitalismo moderno. E deveria ser perfeitamente claro hoje em dia para todo o mundo que as diferenças que podem existir entre os dois sistemas o "socialista" e o "capitalista" não podem mais mascarar o tronco comum, feito de exploração e de mentira.Pois a gestão burocrática baseia-se do mesmo modo - e por vezes mais - que a gestão capitalista sobre a exploração e a alienação dos trabalhadores. Era bom, no entanto, acabar de vez com os velhos mitos poeirentos que querem que a gestão burocrática, intitulada "propriedade socialista dos meios de produção" constituía um grande passo avante na boa sociedade, visto que ela suprimiu a propriedade privada dos meios de produção. A prova está mais do que feita nestes últimos tempos, e com que evidência, pela experiência de todos os campos de trabalhos que se baptizaram, num grande arrebatamento paranóico, "países socialistas" - que a propriedade privada dos meios de produção não é nem o "travão ao desenvolvimento das forças produtivas" segundo a tese marxista, nem a única forma moderna de exploração.Mas em 1936-37, a única referência, o único modelo existente de sociedade burocrática era, bem entendido, a URSS. É em direcção a este modelo de "socialismo" que queriam ir os estalinistas espanhóis, pelas vias indirectas da legalidade republicana. Mas é também em direcção da sociedade soviética - com alguns retoques - que guiavam os membros do POUM e numerosos socialistas de esquerda. Poucos na altura viam o perigo, não tinham uma clara consciência da luta em curso na Catalunha, nem da natureza verdadeira da sociedade soviética. Mesmo os sectores anarquistas que ficaram fiéis às suas ideias e desconfiavam, instintivamente poderíamos dizer, do aspecto ditatorial do regime soviético e dos partidos comunistas, não tinham analisado a importância do fenómeno burocrático, e não tinham senão uma ideia vaga, superficial - embora verdadeira, da natureza de classe da União Soviética.Não tem nada de original afirmar que o nó gládio da exploração situa-se nas relações de produção. Estas relações de produção são dominadas pelo antagonismo dirigentes-executantes. O que quer dizer que o trabalhador no processo de produção no papel de simples executante, se vê desapossado de toda a intervenção, simples maquinismo duma actividade decidida e organizada por outros - os dirigentes - que se apropriam dos frutos e decidem soberanamente da sua utilização. É bem evidente que, a este nível, as relações de produção são idênticas que a fábrica faça parte dum monopólio capitalista - com os seus valores cotados na Bolsa - ou de um monopólio estatal. As diferenças que podem existir entre os dois sistemas - bem mais transparentes na época que estamos a estudar, mas que desde aí tendem a esbater-se pela burocratização acelerada do capitalismo - não mudam nada de essencial à exploração e à alienação do trabalhador assalariado nas sociedades modernas. Se insisto sobre a exploração e a alienação do operário, é porque é um dos temas favoritos da mentira da sociedade, o conjunto das actividades humanas e a vida quotidiana no seu conjunto que têm a sofrer a lutar contra a exploração, a alienação e a divisão hierárquica dirigentes-executantes. Pois não é evidentemente na qualidade de cidadão que o operário desapossado, nem os outros, poderá intervir eficazmente, participar realmente nas decisões dos Estados sobre a utilização dos frutos do seu trabalho, nem mesmo sobre a sua própria vida. Aqui, a comparação é mais claramente desfavorável aos regimes totalitários ("socialistas" ou não). Todos os pequenos curas "revolucionários" bem podem troçar das liberdades democráticas - ditas burguesas - quando se suprimem, é ainda pior.O que vem de ser dito parece-me esclarecer o conteúdo da luta de classes na Catalunha. Por detrás da propaganda dos partidos de esquerda e os seus profetas mais ou menos moderados (conservando importantes sectores de capitalismo privado, por motivos políticos), ou mais ou menos "revolucionários" (aceleração da nacionalização da economia), transparece a luta entre a autogestão dos trabalhadores e a gestão burocrática - com a sua versão numa certa medida original filtrada pelos círculos dirigentes da CNT - a dominação do estado da economia - e da vida social em geral - parece-me inscrita na evolução política social da República espanhola durante a guerra civil.O triunfo franquista também representou, à sua maneira, uma estatização da sociedade e da economia, com o seu corolário burocrático, aproximando-se hoje em dia do que certos sociólogos nomeiam as "sociedades industriais".Os trabalhadores que haviam realizado e defendido durante longos meses a autogestão de numerosos sectores industriais e agrícolas (mas também de cultura, da educação, etc) tinham por inimigos não somente os militares e fascistas representando as classes dominantes da burguesia e dos latifundiários, mas também "objectivamente" as novas camadas burocráticas que colocadas sob as mesmas bandeiras que elas, se preparavam - tinham já começado - a restabelecer, sob formas por vezes novas, a velha exploração do trabalho assalariado e a hierarquização totalitária da vida social.Devemos pois constatar, uma vez mais, a subtil colocação, na sociedade, de mecanismos que agem sempre - o que não quer dizer sempre de maneira idêntica - para restabelecer ao nível da produção - e da sociedade no seu conjunto - a divisão dirigentes-executantes. O papel aqui jogado pelas organizações políticas e sindicais "da classe operária" neste processo, é de tal modo evidente que perguntamos que novas provas seria necessário mostrar, para demonstrar que partidos e sindicatos fazem parte - desde há muito tempo - dos instrumentos específicos da coerção generalizada das sociedades modernas. (5)Como em todos os movimentos revolucionários contemporâneos, os homens em luta contra a hierarquia opressiva os privilégios e injustiças de classe estabelecem conexão, não, de tal modo que esta tarefa lhes pareça (e é) imensa, serem levados a agruparem-se para serem mais fortes e mais eficazes, mas querem agrupar-se em organizações que reproduzem no seu seio a hierarquia existente na sociedade que eles querem mudar e por conseguinte como um duplo invertido, todo o sistema de valores da sociedade: disciplina, espírito de sacrifício, rentabilidade-eficácia, organização-produção, repressão-exclusão, fé e fanatismo, culto dos chefes, sem falar de todos os valores e hábitos do mundo burguês, não invertidos, dos quais se encontram ainda impregnados. Aqui, como sempre logo que se pode realmente falar de movimento revolucionário e logo e que este é à partida vitorioso é a acção espontânea das massas que desencadeia o movimento e o leva mais longe. Em seguida as organizações chegam para refrear, desviar - esmagar por vezes - o resultado desta acção espontânea. Não nos podemos restringir a afirmar que os partidos tomam "o controle da situação", visto que este controle é quase sempre querido pelas próprias massas. Os partidos hierarquizados reconstroem a pirâmide social opressiva e novos privilégios e injustiças - vários com relações com os antigos - são instituídos, glorificados, ideologizados enquanto resultado vitorioso da revolução (ver URSS e todos os outros países "socialistas"). A originalidade da revolução na Catalunha, aparte o facto dela se desenrolar no seio de uma guerra civil contra o fascismo e que será esmagada pelas próprias "forças republicanas" antes da derrota militar é que a CNT-FAI organização maioritária na Catalunha e muito forte no resto da Espanha - que era sem dúvida a organização menos burocrática e centralizada do movimento operário europeu, tornar-se-à a um ritmo extremamente rápido burocratizante. E isto não se deve ao facto dos dirigentes serem "maus" - mesmo se é verdade que o poder corrompe - mas ao mesmo tempo devido à complexidade da própria situação, as exigências da guerra e da revolução que não se soube transformar em guerra revolucionária, e às taras da CNT - culto dos leaders e sacralização da organização, entre outras -. Seja como for, podemos legitimamente afirmar que toda a organização operária está condenada à burocratização, duma ou doutra maneira. Isto coloca algumas pequenas questões teóricas que não se encontram em condições de serem ultrapassadas, o mito da organização revolucionária ou de vanguarda (de tipo novo!?) continuando a fazer os estragos que sabemos.Notas:(1) Intelectual influente trotskista.(2) Nome pelo qual era designado o governo da Catalunha.(3) Orgão da CNT(4) Claude Lefort, Élements d'une Critique de la Bureaucratie, Éd.Droz, Genève-Paris, pp.306-307.(5) Bibliografia fundamental: Carlos Semprun-Maura - Révolution et Contre-Révolution en Catalogne, Barcelona, 1974.César M. Lorenzo - Les Anarchistes Espagnols et le Pouvoir 1868-1969, Paris, 1969.
<< Home