Tuesday, January 09, 2007

PROUDHON, CLÍNICO DO SOCIAL

Na noite de 26 de Fevereiro de 1848, no momento em que a República é proclamada, quatro cidadãos armados apresentam-se no domicílio de Proudhon e exigem que lhes responda, por assim dizer, à pergunta: “Que fazer? Neste final de Fevereiro enquanto cada um se pergunta como será o dia seguinte e indo de encontro a alguns objectivos, concordam em agir, estes três homens exprimem o que a maioria dos cidadãos, envolvidos na causa revolucionária, esperam dele. Esperam de um escritor que se fez conhecer pelas suas críticas radicais à ordem estabelecida e pela sua tomada de posição pelas classes populares, que enuncie os princípios de acção, que designe as melhores soluções aos problemas sociais e políticos, o que apenas tinha feito até então, antes dos dias de Fevereiro. Estes cidadãos designam Proudhon como um reformador, ou, dizemos nós, um médico, a par da situação social, das contradições económicas, dos sofrimentos populares, do qual se pode esperar uma resposta positiva e eficaz aos problemas imediatos, mas também às questões mais gerais da organização social.Na obra de Proudhon, a experiência e os dramas da revolução de 1848, marcam um corte na reflexão e o início de uma procura mais assídua das soluções para os problemas sociais e políticos. Contudo, esta resposta não é senão parcial e quereríamos sublinhar também a continuidade de uma atitude que poderemos classificar de “clínica”, que se manifesta desde os escritos de 1840 e que se prolonga sem ruptura nos textos ulteriores a 1848. Dever-se-ia também revelar a permanência deste projecto caracterizado por duas preocupações complementares: aquela de um conhecimento também exacto que possibilita os males colectivos, por um lado, e, por outro, aquele da procura de soluções, de um estudo exploratório dos meios (de “soluções”) susceptíveis de resolver os males diagnosticados. É o sentido que já dava ao “sistema das contradições”, em 1846 pela sua epígrafe: destruam e edifiquem que traduzia por suas palavras n’A Ideia Geral da Revolução, transformando os dois verbos em presente: eu destruo e edifício (1). Esta visão que podemos classificar de “clínica” não é, certamente, original entre os reformadores dos anos de 1820-1848, e o próprio, ou somente Proudhon. Esta questão é, pelo contrário, comum, chegando mesmo a ser um tema constante, por exemplo, entre os sant- simonianos ou os “fouriéristes” que querem designar os males sociais para de seguida proporem “remédios”. Relemos, por exemplo, na integralidade, o título de Eugene Buret dá ao seu livro de 1840 sobre a miséria operária: “A miséria das classes trabalhadoras na Inglaterra e na França; a natureza da miséria, a sua existência, os seus efeitos, as suas causas, e a insuficiência das medidas que se opuseram até aqui, com os meios próprios para libertar as sociedades” (2). Não está, neste longo texto, a expressão resumida do projecto clínico dos reformadores: estudar depois propor; analisar falsas soluções ( os “paliativos” como diz Proudhon no Sistema das contradições económicas (3), e propor as respostas ou, no vocabulário metaforicamente médico, os “remédios” aos males.Mas se este duplo projecto é muito comum aos reformadores e opõe-se claramente aos teóricos da “não intervenção”, levanta inúmeros problemas tanto no que concerne ao diagnóstico, como aos remédios; é nesta problemática sobre os vastos contornos, que se aproximam e se diferenciam. Cada ponto, efectivamente, nesta situação, levanta problemas e dificuldades: quais são os males essenciais e como os explicar; que pode fazer a ciência? É possível ou mesmo necessária uma clínica? Quais são as situações realistas e qual a relação entre o passado a destruir e a sociedade a construir? Ou é condenada a oscilar entre a inacção e a utopia?Como terá Proudhon tomado esta atitude clínica e quais terão sido as grandes linhas da sua concepção sobre este tema? Recordamos em primeiro lugar que esta atitude não é de modo algum partilhada por todos os observadores políticos. Muito pelo contrário, ela diferencia claramente estes reformadores, de todos os outros, ultras, moderados ou liberais, que julgam perigoso e utópico todo este projecto remetendo fortemente à questão da ordem estabelecida. De Benjamin Constant a Alexis Tocqueville, um vasto leque de posições, faziam da atitude clínica uma utópica lamentável, eventualmente perigosa ou susceptível de inquietar lastimosamente os meios populares. Benjamin Constant tinha explicado, no final do Primeiro Império, que as paixões políticas tendiam necessariamente a se apagar num mundo devotado ao enriquecimento e à acumulação dos juros, tornar-se-ia o alvo comum e o objectivo pacificador (4). Menos optimista, Alexis Tocqueville não negava a persistência doa males ligados às desigualdades económicas e à avidez da riqueza, mas pensava que o regime democrático era conservado por um vasto movimento em direcção à igualdade de condições conduzindo necessariamente a uma atenuação da violência e do sofrimento social (5). A oposição entre estes liberais, partidários da “não intervenção” e os reformadores é completada sobre as premissas da clínica: a tese comum a E.Buret, Ch.Furriet, Et.Cabat e Proudhon, é que a ordem estabelecida, contrariamente à opinião dos defensores da ordem, é portadora dos males insuperáveis. Fourier, Louis Blanc, não menos que Villermé (6) ou de Gérando (7), estigmatizam a amplitude da missão ou do “pauperismo”. Sobre diferentes perspectivas, quer comparando as situações das diferentes nações europeias, quer descrevendo os lugares de grande pobreza, estes reformadores concordam em denunciar e diagnosticar os mesmos fenómenos de desigualdade e de miséria.Uma primeira originalidade de Proudhon neste diagnóstico repartido é a de se recusar a deduzir prematuramente desta constante um programa de reforma. Enquanto Louis Blanc, por exemplo, em 1840 (8), conta rapidamente o seu projecto de organização do trabalho do quadro dramático da grande miséria, Proudhon concentra a sua reflexão sobre as suas contradições. A observação clínica dos sintomas para estudar mais profundamente as relações sócio-económicas, segundo um movimento intelectual que se repetirá em Marx em A Capital. No Sistema das contradições económicas, a interrogação sobre as soluções aparece suspensa. Algumas notas dispersas anunciam em que espírito as soluções deverão ser produzidas, e, sobretudo em que vias não deverá ser (a comunidade, a utopia, …) mas nenhuma resposta positiva é desenvolvida e argumentada. A clínica, neste período, dever-se-à fundar sobre um conhecimento das estruturas e dos mecanismos sócio-económicos. O tempo do diagnóstico não se confunde com o tempo da terapia.A secunda originalidade de Proudhon entre estes reformadores é o facto de ter perseguido a investigação clínica, para além da crítica económica, orientando-se à análise das relações de dominação política e à análise dos sistemas simbólicos. Assim, a sua crítica diferencia-se sem ambiguidade das inúmeras dos seus contemporâneos. Nos seus escritos dos anos 1849-1853, Proudhon desenvolve uma observação sistemática da alienação política como tinha desenvolvido anteriormente uma observação dos males económicos. A noção de “crítica” que empregamos correntemente para designar o espírito desta empresa não justifica exactamente o seu projecto neste domínio. Na verdade, trata-se de uma crítica e de uma análise dos males engendrados pelos diversos regimes políticos, mas o seu projecto é mais ambicioso, não exprimindo este termo de “critica”. Ele procura, na Ideia geral da Revolução, construir uma geneologia do poder político e do Estado, constituir uma ciência do Estado em que este retomará os elementos do Principio federativo. Mesmo se, as injúrias não faltem, não se trata somente de denunciar a dominação, mas sim de demonstrar a existência da privação das vontades, de analisar os mecanismos da submissão, de elaborar um saber sistemático. E do mesmo modo que a miséria se tornou uma consequência do fenómeno mais geral das contradições económicas, a submissão do cidadão do Estado, e a sua demissão, tornaram-se consequências de um fenómeno mais geral que é o reforço do poder e da sua exteriorização (9) na sua relação com a colectividade. A clínica é, certamente, uma polémica, mas ambiciona, alcançar um diagnóstico do mal político que é a dominação.Sabe-se que a observação crítica não se fica por estes dois domínios fundamentais das contradições económicas e das relações políticas. Em Da Justiça, Proudhon prossegue o seu estudo pelo domínio das crenças colectivas sobre o exemplo das crenças religiosas. Ainda assim, a virulência da polémica não deve fazer esquecer a ambição do projecto que ultrapassa a simples crítica científica das crenças religiosas. Trata-se de construir uma teoria de alienação, de mostrar a oposição entre uma filosofia da transcendência e uma filosofia da imanência, de propor uma origem social da alienação espiritual e de mostrar as consequências. A intenção clínica liga-se sem ambiguidade ao enunciado dos efeitos das crenças transcendentes que Proudhon define por termos como “depravação”, “degradação”, “submissão”… É-se tentado a atribuir rapidamente estas opiniões moralizadoras à severidade da moral própria ao autor. Mas se se afeiçoar e seguir o seu raciocínio, verá que prosseguirá a mesma procura crítica sobre o conjunto do sistema social para alcançar um diagnóstico global. A denúncia reiterada da hipocrisia, por exemplo, inscreve-se nesta linha de pensamento: trata-se de exprimir menos uma indignação, que reatar as mentiras e a hipocrisia das máscaras das ideologias religiosas e políticas, e assim mostrar as relações de complementaridade. A hipocrisia tem as suas razões de ser, ela corresponde a interesses analisáveis; tem portanto, espaço para se explicar e não somente para se indignar. A ambição de criar uma ciência social implica o projecto de analisar as estruturas, as contradições sócio-económicas, o sistema de monopólio político da vontade social, os mecanismos ideológicos de espoliamento pela mitologias e religiões, de explicar como estas três alienações se consagram, se completam e se reforçam mutuamente. Segundo a fórmula sintética de 1849:“A ideia económica do capital, a ideia política do governo ou da autoridade, a ideia teológica da Igreja, são três ideias idênticas e reciprocamente convertíveis… o que o capital faz sobre o trabalho, e o Estado sobre a liberdade, a Igreja opera por sua vez sobre a inteligência. (10)”Por algumas palavras, Proudhon resume as suas análises críticas ou, pode-se dizer, a sua sociologia.Esta análise descritiva e explicativa não é, seguramente, o único objectivo de Proudhon e, como o recordamos, a intenção reformadora, revolucionária, está escrita desde as páginas de 1840. Desde estes primeiros textos, o projecto é, pode-se dizer, duplo: analisar também rigorosamente a possível apropriação operada pelo capital (e, nesse ponto, Proudhon pode levar à letra os desenvolvimentos dos economistas, Adam Smith e Ricardo), mas, simultaneamente, fazer compreender que uma solução das contradições é possível e deve ser procurada. Uma clínica supõe uma certa distinção entre os dois tempos de reflexão: analisar, depois tira destas conclusões as grandes linhas das soluções. Mas as duas preocupações têm uma ligação: porquê se indignar se não existe remédio, porquê empreender um estudo se não existe esperança de solução? O fundamento da indignação não reside somente na experiência do sofrimento, reside também na certeza que este sofrimento é remediável, curável até, e que é possível empreender algo em direcção a este fim.Coloca-se então a questão central do remédio: como deve ser encerada a relação entre o presente e o futuro, entre as contradições económicas e a sua resolução, entre a alienação política e uma sociedade que teria reconquistado a sua autonomia, entre a transcendência do símbolo e a imanência? Ou no vocabulário da clínica, como se passa da observação à proposição arrazoada dos remédios? Esta questão coloca-se a todos os reformadores, em que assumem lucidamente a ruptura utópica ou a recusa. Fourier explica sem ambiguidade que a passagem da ordem presente à comunidade do Phalanstério não se poderá fazer senão pela rejeição radical dos regulamentos sociais e económicos, por um “desvio absoluto” entre o que é e o que deveria ser. A “civilização” atingiu um tal ponto de absurdo e de horror que não existe solução a não ser2 uma rejeição radical e a fundação de um novo mundo que obedeça a todos os outros princípios. Nesse ponto o reformador é menos um clínico que um inventor e um profeta: pode-se contentar em evocar, em traços gerais, os vícios da civilização, mas o seu contributo essencial na sua invenção do novo mundo em que a evidente sedução se imporá a todo o espírito informado. O reformador é mais um inventor que um clínico mesmo que ambicione assumir esse papel.Sabe-se a resposta de Marx e ela instruiu a originalidade da resposta de proudhoniana. A questão da clínica não se coloca menos para Marx, mas enquadra-se mais no quadro histórico que na arte dos reformadores. E, em primeiro lugar, do aprofundamento das contradições económicas e da extensão das lutas de classes que nascerá a ruptura da sociedade capitalista e a libertação dos homens no comunismo. Certamente, o clínico desempenhou um papel nesta clínica objectiva da história: a teoria revolucionária que elabora, participa no movimento revolucionário, acelera-o ou evita hábitos, mas é um adjuvante num processo que tem a sua própria dinâmica. Quanto à observação das contradições e dos conflitos, tende a mostrar como as contradições se aprofundam e não a livrar-se dos princípios económicos que se encontrariam, sobre uma forma modificada, numa sociedade futura.O que se encontra reformulado, por esta imagem da clínica, é portanto a teoria da revolução social. A clínica evoca, com efeito, os dois momentos do exame e da designação dos remédios: fazendo isto, permite centrar a reflexão sobre a questão da articulação entre estes dois tempos: qual é exactamente a natureza das transformações que marcam o advento da revolução social, tal como Proudhon a concebe? A revolução marca, seguramente, uma ruptura entre a antiga ordem e a sociedade emancipada, mas haverá uma certa continuidade e sobre que pontos, ou dever-se-à considerar um corte total e sobre todos os pontos? E se há uma ruptura radical, não somos nós que reconduzimos à utopia que opõe absolutamente o mundo de amanhã com o mundo de ontem? Proudhon coloca a questão nestes termos desde 1846 no Sistema das contradições económicas: ele trata de analisar o conjunto das contradições sócio-económicas, e, ao menos brevemente, esboçar soluções que se impõem ao saber destas contradições. Mas, se se limitar apenas a este texto, as respostas a este problema da passagem do presente ao futuro, está longe de ser simples, e o pensamento de Proudhon parece hesitar entre múltiplas possibilidades. Tomemos dois exemplos, um mais económico sobre a fixação dos valores, e o culto político.No capítulo II do Sistema das contradições, em seguida, de novo, no 3º Estudo A Justiça, Proudhon coloca o problema da fixação dos valores de troca. Recusa vigorosamente nestas passagens as manipulações financeiras e as violências políticas que acabaram por se impor na fixação arbitrária dos preços. Parecia-lhe que a multiplicação das trocas, a concorrência, as informações das transacções, têm como consequência regular os preços das mercadorias e poderiam conduzir, se os obstáculos artificiais fossem levantados, à constituição do valor e à fixação do preço justo. Se se prosseguir o pensamento de Proudhon nesta direcção, deve-se pensar que os regulamentos económicos estão já á ordem dos regimes capitalistas, projectando as grandes linhas de regulamentos futuros. O acento será posto sobre a existência de leis económicas, e Proudhon pode-se encontrar parcialmente, de acordo com os economistas liberais, hostis aos regulamentos e às intervenções estáticas, confiantes na sabedoria e na eficácia do mercado.Mas, nesta mesma obra de 1846, Proudhon esboça uma curta linha de reflexão quando evoca e deseja a submissão de todo o edifício político aos funcionamentos sócio-económicos. Uma tal hipótese sugere uma transformação completa da ordem estabelecida, a subordinação, a “liquidação” do político. Anuncia-se então, uma outra perspectiva que surgirá na época da revolução de 1848, e, em particular, nos artigos compostos, na época da polémica com Pierre Leroux. Estes dois exemplos ilustram duas figuras possíveis do clínico. No primeiro caso, a sua tarefa é de analisar as contradições sócio-económicas, examinando daí todas as consequências sociais, mas também de observar as estruturas e as evoluções necessárias. Ele deve mostrar quais os dinamismos estão em acção no quadro do regime proprietário e como eles prosseguirão na sociedade futura, contanto que os obstáculos arcaicos sejam apagados. O clínico encontra, neste sentido, uma tarefa importante, aquela de dissipar as ilusões daqueles que imaginam ingenuamente que poderão criar um outro mundo fundado sobre os princípios provenientes dos sonhos do profeta. A argumentação contra os utópicos funda-se sobre este facto que os funcionamentos económicos não são nulamente absurdos como imaginam e projectem as necessidades essenciais à vida produtiva e às relações comerciais. O clínico observa, distingue o normal do patológico, adverte a ilusão que terá de ignorar a realidade, e projecta o futuro tendo em conta o que o passado tem de permanente.No segundo exemplo, a tarefa do clínico não é menos delicada mas mais radical, ele não pode tirar completamente das suas observações os elementos de reflexão para sustentar a sua representação do futuro. Face às contradições insuperáveis, deve indicar as principais linhas de um outro sistema social destinado a reorganizar a totalidade social. O clínico não abandona a sua tarefa de analista e observador, mas torna-se mais critico, mais veemente. Torna-se também mais inventivo e mais audacioso visto que traça as grandes linhas de um mundo que está por construir (…construirei/aedificabo). Poder-se-à ilustrar esta posição pelos capítulos de A Ideia Geral da Revolução, nos quais expõe os princípios da “liquidação social” e “a dissolução do Governo na organização económica”. Sublinhamos que esta orientação não se encontra em total contradição com a anterior: a nova “organização das forças económicas” continua fundado no estado anterior da organização económica, mesmo a rectificando.Entre estas duas posições reformadoras, uma que se pode caracterizar pelo seu relativo moderantismo, e outra pela sua radicalidade, Proudhon escolheu claramente? Mas terá mesmo escolhido? Na leitura da obra de 1846, Marx afirma que Proudhon não fez mais que hesitar e finalmente inclinar para o moderantismo do “pequeno burguês”. Pelo contrário, os eleitores maioritários de 1848, como os juízes de Napoleão-Bonaparte, consideraram sem hesitação que Proudhon se colocava entre os perigosos destruidores da ordem estabelecida e propunha uma total destruição do regime. Para responder à questão afastando as respostas polémicas, convém talvez meter entre parêntesis as soluções que Proudhon formulou na urgência do período revolucionário. Os textos escritos em 1848, (Soluções ao problema social; Resumo da questão social; Banco de troca) inscrevem-se, certamente, na problemática clínica tal como nós a caracterizamos; mas face à crise social e económica, o clínico é convidado a dizer a “solução” de todos os problemas, a inverter fórmulas concebidas antecipadamente que permitam, esperava ele, a retomada das trocas e a circulação do crédito. Tais iniciativas são tomadas num período muito particular da mobilização social onde o clínico pode crer que a instituição de uma nova regulação financeira (a Banca do povo) poderia, devagar, constituir o fermento de uma reorganização social geral. Proudhon pode crer neste período excepcional, que uma reforma económica seria suficiente para engrenar uma revolução social, aproximando-se assim das ilusões utópicas que tinha denunciado antes de 1848. O insucesso das suas tentativas recordar-lhe-à a complexidade da tarefa do clínico revolucionário. É, parece-lhe, nos escritos ulteriores que deve procurar as respostas às questões colocadas.Muitos reconhecem que, tornado à letra, e de algum modo palavra por palavra, as respostas não são formalmente constantes. Proudhon mantém-se fiel ao projecto clínico de observar as realidades, sociais e políticas, de se apoiar na observação para delinear os contornos de uma sociedade revolucionada. Mas folga em evidenciar as hesitações, excepto as contradições sobre o ponto da articulação entre o dado e os objectivos. Por exemplo, as teses finais expostas n’A Capacidade Política das Classes Operárias não são ao todo idênticas às teses esboçadas em A Justiça sobre a reorganização social.Mas tem-se razão em procurar respostas simples e repetitivas enquanto Proudhon não parou de advertir para a complexidade das realidades humanas? Não será necessário dissociar os problemas e procurar se Proudhon não foi levado, a partir da sua experiência e dos seus conhecimentos, a dissociar as respostas sobre os três planos diferentes da economia, do sócio-político e do símbolo? Certamente, as numerosas indicações recordam que estes três níveis não são totalmente dissociáveis, e é mais um objecto de reflexão do que de procurar alguns bens (de casualidade?; de determinação?; de concordância?) é preciso assinalar entre estes níveis. Contudo , se se considerar os trabalhos ulteriores a 1850, pode-se distinguir três conjuntos de textos distintamente concernantes a cada um dos três níveis. As reformas económicas são sobretudo desenvolvidas no 5º e 6º estudo de A Ideia geral da Revolução do século XIX, retomados, no que concerne à propriedade na Teoria da propriedade, sintetizadas em A Capacidade política das classes operárias. As reformas sócio-políticas são precisamente tratadas em, As Confissões de um revolucionário, A Guerra e a paz, e em todos os artigos que desenvolvem as teses do Princípio federativo. Quanto às questões ideológicas, elas estão, sem dúvida, constantemente presentes no pensamento de Proudhon, contudo não são sistematicamente desenvolvidas, senão em A Justiça. Pode-se perguntar se as relações dos dados do passado e a sociedade de amanhã não são, numa certa medida, diferentes, conforme se considere a economia, o sócio-político e a ideologia. Se fosse assim, dever-se-ia admitir que a tarefa do clínico não será idêntica segundo os domínios considerados. É a hipótese que gostaria de sugerir aqui sublinhando, simultaneamente, que Proudhon vai, sobre estas três frentes, defrontar adversários diferentes.Pode-se admitir que é no domínio económico que Proudhon encontrou a certa continuidade relativa entre a desordem existente e os dinamismos próprios à sociedade futura. Sem pretender desenvolver estas concepções em todas as suas consequências, sublinhamos somente a importância maior da ideia de equilíbrio nestes textos. Tal como são desenvolvidos então, as noções de equilíbrio, de balanço, e também de contrato, transformam, certamente, as condições de produção e da circulação, mas retomam contudo os elementos da vida económica existente e as antinomias que tinham sido analisadas em 1846. As teses desenvolvidas na Teoria da propriedade (terminado em 1862) são exemplares deste nível: a reforma proposta visa, não a subverter a propriedade, mas de a colocar na dinâmica dos dialécticos sociais para que possa ter um papel de contra-peso, de”fortaleza inexpugnável” contra o poder (1). Se assim é, a tarefa do divino é, mais propriamente, de analisar as tendências fortes da história económica, de demonstrar que os dados antigos têm uma necessidade apesar dos erros e das injustiças, às quais ela deu lugar. E, neste primeiro domínio, o clínico deve contar em lutar de cada vez contra os conservadores, obstinados a não modificar nada, e contra os utópicos e os sonhadores impacientes.Esta não é a mesma tarefa que cabe ao clínico sobre o plano político. Proudhon não propõe menos que uma reorganização total e a dissolução do Estado centralizador. Reside aí o plano da grande confusão e das mais vivas paixões, como Proudhon pôde experimentar n’A Assembleia em 1848-1849. Ele assume neste nível duas tarefas diferentes: uma de tribuno e de reformador, face aos diferentes públicos. N’A Assembleia, ele adere às discussões políticas na condição de representante dos artesãos e operários: a tarefa à qual se propõe é de apresentar as reivindicações populares face a uma Assembleia hostil. Proudhon não tem sucesso quando tenta convencer os deputados que representam os diversos interesses dos privilegiados, mas pode, merecidamente, pensar que ele, encarna então a causa proletária. A segunda tarefa política é de outra ordem porque, exaltando o federalismo, defendendo as estruturas sócio-políticas chamadas, em particular, a conjurar as guerras internacionais, Proudhon situa-se ao nível de uma revolução internacional que muito poucos estão prontos a aceitar e a compreender. O clínico que, em Julho de 1848, encarnava o proletariado, ajusta, a partir de 1862, as reticências populares e a opinião largamente dominante. É necessário então, uma audácia determinado e um esforço persistente para resistir aos invectivas generalizadas.O terceiro nível, o da ideológica, do mesmo modo poderá ser distinguido dos dois precedentes, coloca o clínico numa situação ambígua. Na medida onde as suas análises evocam um longo movimento de desinteresse dos espíritos relativamente às crenças religiosas, Proudhon encontra-se, nesta época, em conformidade com um vasto movimento intelectual largamente desenvolvido no século XVIII e que continuam nos diversos movimentos, positivistas, ateus, franco-maçons. Proudhon tem então como primeiro inimigo o poder político do Segundo Império, aliado à religião estabelecida, que interdita a difusão do trabalho. Mas não provoca um interesse considerável da parte dos meios populares cujas preocupações eminentes não vão nesta direcção.O último livro, A capacidade política das classes operárias, é, pode-se dizer, uma última resposta clínica e escapa, em grande parte, às distinções que acabámos de traçar. No plano económico, Proudhon não abandona as suas teses anteriores, mas integra-os mais rigorosamente numa síntese social (o “sistema mutualista”) cujas origens populares e artesanais são fortemente sublinhadas. Sobre o plano político, a obra sintetiza a crítica de imediato (as eleições de 1863, a obrigação do juramento) e a defesa do federalismo, programa político susceptível de ser entendido por um movimento social. As posições pessoais sobre os costumes encontram-se aqui presentes em proveito de uma teoria geral de emancipação. Respondendo directamente “a alguns operários de Paris e de Rouen que tinham consultado sobre as eleições” (1). O clínico encontra um poder único de pensamento como eco de um movimento social em fase de organização. A obra situa-se no ponto de encontro entre uma procura clínica e a procura própria do movimento social.(1) Pierre-Joseph Proudhon, As Confissões de um revolucionário, (1849), Paris, M.Rivière, 1929, p. 19.(2) Eugène Buret, 1840, Paris, Paulin, 2 vol.(3) Sistema das contradições económicas, (1846), Paris, M.Rivière, T.I, p. 147.(4)Benjamin Constant, O espírito da conquista, (1849), Paris, Gallimard, Pléiade, 1957, p. 1.046.(5)Alexis de Tocqueville, (1835-40), A Democracia na América, Paris, Gallimard, Ed.Folio, 1966, T.I, p. 37.(6) Louis-René Villermé, (1840), Quadro físico e moral dos trabalhadores empregados nas manufacturas de algodão, de lã e de seda, Paris, Renouard, 2 vol.(5) Joseph-Marie de Gérando, (1839), Da beneficência pública, Paris, Renouard, 4 vol.(6) Louis Blanc, (1840), A organização do trabalho, Paris, Prévot.(7) Ideia geral…, op.cit., p. 369.(8) Confissões de um revolucionário, op.cit., p. 282.(9) Teoria da propriedade, (póstumo, 1866), Paris, A.Lacroix, Verboeckoven, p.228.(10) A capacidade das classes operárias, (1865), Paris, M.Rivière, p. 47.