O CAPITAL OU O VALOR DUMA CRÍTICA DA ECONOMIA POLITICA
TópicosHá relativamente pouco tempo começou a ser publicada em português aquela que é considerada a obra mais importante de Marx: O Capital. Se é verdade que já existiam outras traduções que são por ordem de aparição a edição Civilização Brasileira, a edição Centelha e a edição Delfos - a primeira no Brasil e as duas últimas em Portugal para além da edição popular nas edições 70, a verdade é que todas elas levantam problemas de diversa ordem o que faz com que a leitura de nenhuma delas fosse minimamente aconselhável. Sem me querer alongar demasiado nesta questão remeto o leitor interessado para a gigantesca obra de João Bernardo em três volumes Marx crítico de Marx, que apesar de datar de 1977 terá sido eventualmente a melhor e mais completa análise de O Capital em língua portuguesa. Por aquilo que já se disse conclui-se inequivocamente que esta tradução de que aqui se trata é efectivamente a melhor porque a mais correcta, tendo em conta a terminologia, as características específicas da língua alemã e os problemas que a tradução de qualquer obra levanta.O plano da presente tradução consta da edição dos três livros em oito tomos e a publicação alongar-se-à até 1994. Três tomos para o primeiro livro, dois tomos para o segundo livro e novamente três tomos para o terceiro e último livro. Fica uma questão: e o quarto livro de O Capital cuja edição foi não da responsabilidade de Marx (o que aconteceu com o primeiro) nem de Engels (ao contrário do segundo e do terceiro)? será por a responsabilidade da edição ter ficado a cargo do renegado Kautsky? Pergunta que por enquanto fica sem resposta.De qualquer das maneiras todas estas questões situam-se no mero campo académico e não são ainda realmente importantes para podermos destrinçar que posição ocupar na análise da obra marxista. Para podermos começar a concretizar parece-me importante considerar um excerto duma carta que Marx escreveu para Nova Yorque ao seu amigo Joseph Weydemeyer datada de 5 de março de 1852. Aí Marx diz o seguinte que é indiscutívelmente significativo: "No que me diz respeito, não me cabe o mérito de ter descoberto nem a existência das classes na sociedade moderna nem a sua luta entre si. Muito antes de mim, historiadores burgueses tinham exposto o desenvolvimento histórico desta luta das classes, e economistas burgueses a anatomia económica das mesmas. O que de novo eu fiz, foi: 1 demonstrar que a existência das classes está apenas ligada a determinadas fases de desenvolvimento histórico da produção: 2 que a luta das classes conduz necessariamente à ditadura do proletariado; 3 que esta mesma ditadura só constitui a transição para a superação de todas as classes e para uma sociedade sem classes."Este excerto representa possivelmente a melhor síntese do marxismo feita por Marx e mostra-nos aquilo que radicalmente o separa das diversas correntes anarquistas nomeadamente Proudhon e Bakunine que eram seus contemporâneos. Os dois pontos onde isso se verifica são o segundo e o terceiro. Os libertários sempre tiveram reticências em relação ao valor e à eficácia da ditadura do proletariado na construção duma sociedade tanto política como economicamente livre, assim como não consideram que esta mesma ditadura é um derivado da luta de classes, aspecto que se encontra na obra daquele que pela primeira vez se intitulou anarquista. Refiro-me obviamente a Proudhon. Sobra-nos o primeiro ponto. E aí, as diferenças são muito menos marcantes. Considerar que a existência das classes, as suas contradições e antagonismos estão relacionadas a momentos históricos do desenvolvimento da produção não contradiz nenhuma tese fundamental em relação àquilo que constitui a base comum das diversas perspectivas libertárias. E é aí que se insere O Capital . Como Marx diz no prefácio à primeira edição: "O que eu tenho de investigar nesta obra é o modo de produção capitalista e as relações de produção e de troca que lhe correspondem." (Pág.6 da presente edição)O Capital é a crítica da economia política. É verdade que Proudhon nomeadamente com a primeira memória sobre a propriedade o célebre O que é a Propriedade? dava dados importantes para a teoria da mais valia que Marx expõe e desenvolve aqui, obra essa que foi publicada 27 anos de O Capital. È verdade que Bakunine recebeu entusiasmado a edição de 67, prontificando-se a traduzi-la para russo, como aliás tinha feito com o Manifesto do Partido Comunista, apesar deste projecto não ter tido efectivação.Estes aspectos mostram que O Capital como crítica da economia política é uma obra importante para os Libertários apesar de todos os outros aspectos em que nos distanciamos de marxismo e em que a História tem episódios por demais eloquentes duma postura e duma prática radicalmente diferente.Finalmente há um outro aspecto a que quero fazer menção e que é esquecido, nomeadamente por economistas e por todos aqueles que não tem uma formação filosófica. Trata-se da base ontognosiológica da filosofia de Marx e que preside ao Capital. Aquilo a que ficou conhecido, por responsabilidade de Engels, de materialismo dialéctico.No prefácio à segunda edição (pp.21-22) Marx esclarece a questão a propósito duma crítica que lhe tinham feito justamente em relação a esta questão. Eis o excerto: "O meu método dialéctico é, pela base, não apenas diverso do de Hegel, mas o seu directo oposto. Para Hegel, o processo do pensamento - que ele transforma mesmo num sujeito autónomo sob o nome de Ideia - é o demiurgo do real, que forma apenas o seu fenómeno exterior. Para mim, inversamente, o ideal não é senão o material transposto e traduzido na cabeça do homem." Mais adiante (Pág.22) Marx não deixa de dizer que "A mistificação que a dialéctica sofre às mãos de Hegel de modo nenhum impede que tenha sido ele a expor, pela primeira vez, de um modo abrangente e consciente as suas formas de movimento universais. Nele, ela está de cabeça para baixo. Há que virá-la para descobrir o núcleo racional no invólucro místico."A análise detalhada destes dois excertos levar-nos-ia muito longe (não nos faltarão motivos para isso) mas na realidade este não é o momento mais oportuno. Não quero deixar de salientar aqui e agora que há uma profunda discordância de Proudhon em termos dialécticos quer com a posição hegeliana quer com a posição marxista que pelo conteúdo dos dois excertos ficou claro que se trata da mesma dialéctica mas com um nível de aplicação totalmente diverso. E é aqui que se encontra o núcleo central duma polémica que dura há mais de um século entre a perspectiva proudoniana, libertária, federalista, descentralizadora, desburocratizante e a perspectiva marxista, estadual, centralizadora, burocratizante. O âmago do problema situa-se numa problemática ontognosiológica, logo filosófica que extravasa para o campo político-ideológico social, económico, cultural... Esta é outra questão a que teremos que voltar, pela sua fundamentalidade.Por agora interessa é regozijar-mo-nos com o início da edição d' O Capital em lingua portuguesa apesar da cortina de silêncio que ostentivamente se faz sentir em toda a imprensa governamental e pró-governamental e nestes tempos em que o capitalismo selvagem reaparece em toda a sua pujança, e por todo o lado, nomeadamente nos países ditos "socialistas" apesar deste facto real contradizer a teoria marxista e estar, nomeadamente, consonante com a perspectiva proudhoniana. Mas esse, é ainda outro problema, também capital, mas que não cabe na análise da obra de Marx.
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