Wednesday, January 31, 2007

PROUDHON E KANT - A ANTINOMIA PROUDHONIANA

Proudhon conheceu Kant em boa hora, e melhor que Hegel. Ele mantinha-se em correspondência sempre 1 com Tissot, que era então o especialista e o tradutor. Perto de 1839-1840, ele crê nas suas cartas a Bergmann e a Pérennès, lê “todos os dias 2”. Ele falará com respeito da “dialéctica fundada por Kant” e até ao início daquele será para si ”o venerável Kant 3”. Num artigo da Voz do Povo, de 5 Novembro de 1849, ele declara-o “também marcável mais para a sua profunda piedade do que pelo incomparável poder da sua reflexão 4”, e diz ainda na Justiça: “aquele que nenhum filósofo nunca igualara, o imortal Kant 5”.
Tal estima, mais suave do que aquela que ele tinha por Hegel, não o impede de falar para o criticar. Desde 3 Março de 1842, ele escrevia a Tissot: “Eu impaciento-me de vos ver tão obstinado, e ele faz com que eu vos arranco a Kant6. Ele começava então a preparar a sua primeira grande obra, com o sentimento que o seu pensamento chegava à maturidade e que ele vinha fazer enfim uma obra séria e positiva. Ele redigia nas disposições do espírito anti-kantiano. “ A minha metafísica está feita, escreve ele a Flenry a 3 de Abril de 1842; é qualquer coisa de curioso e de extraordinário, que vai colocar-me todos os Kantistas sobre os braços 7”. E pouco depois, a 23 Maio, a Ackermann: “Eu nego pura e simplesmente toda a psicologia e toda a metafísica de Kant8.” A Criação da Ordem aparecia em Setembro de 1843. Proudhon fala do “impasse onde a crítica de Kant tinha lançado os espíritos”, e ele marca, numa atenção prejorativa, que as categorias kantistas, “sistematizadas, eu diria quase cristalizadas num quadro imóvel, são independentes uma da outra, sem nenhuma ligação, sem génese9”.
Mas o que ele censura sobretudo em Kant, no fundo, será o não ser demasiado fiel a si mesmo. Isso será querer reconstruir depois de ter destruído, de ter tentado reintroduzir uma metafísica que a sua crítica tinha tornado impossível, e ter continuado a tentar o seu pensamento em direcção a um Absoluto que esta crítica teria eliminado sempre. “Fazendo profissão de livre pensamento”, Kant não retrocedeu menos “nos dados de experiência aos sonhos do absoluto”. Ele tinha, na Razão pura, “revolucionado a metafísica”: “De qual direito vem ele, na sua Razão prática, afirmar todo um mundo de absolutos, contra partida do mundo fenomenal, e postulado da consciência e da liberdade1?”.
Nós teremos de ver se não é precisamente isso mesmo, ou alguma coisa semelhante, que constitui a aventura intelectual de Proudhon. Constatemos somente pelo instante que estas aproximações confirmam à sua maneira a influência exercida sobre si pelo kantismo. Influência sobretudo negativa, e de ordem muito geral. Ele tinha uma aversão instintiva perante todo o sistema e de toda a ontologia. Num artigo do seu jornal o Povo, artigo redigido sob a forma de Carta aos cidadãos redactores do Popular, ele escreve, a 21 Março de 1849: “Do sistema, eu não sei; eu repugno formalmente a suposição. O sistema da humanidade só será reconhecido no fim da humanidade… O que me interessa, é reconhecer o seu caminho, e, se eu posso, assimilá-la 2”. E a 20 Agosto de 1852, abrindo-se a Boutville um projecto de revista no qual ele devia ser o director:
Apesar dos secretários, invejosos ao excesso do seu dogma e das suas fórmulas, não admitem, como os teólogos, que a verdade que eles fazem e nos termos que eles escolhessem, nós procuraremos as nossas ideias na expressão espontânea das instituições, das escolas e dos pensadores. Existe lá, parece-me, para uma revista revolucionária, uma oportunidade imensa de sucesso 3.
A leitura de Kant tinha fornecido a Proudhon a justificação racional deste espírito espontâneo. Na Revolução social, ele dá uma expressão mais teórica, adoptando uma posição na qual poder-se-à marcar a semelhança, mas também a diferença com a das famosas Teses sobre Feuerbach que são como a carta do marxismo:
Depois do Novo Orgão e a Crítica da razão pura, não existe, não pode lá haver um sistema de filosofia. Se é um verdade que deve ser reputada adquirida, depois os esforços recentes de Fichte, de Schelling, de Hegel, dos eclécticos, dos neo cristãos, etc., estão lá. A verdadeira filosofia, é em saber como e porquê nós filosofamos, de várias formas e sobre que matérias nós podemos filosofar, a qual especulação filosófica recorrer. Do sistema, nada existe, e é uma prova de mediocridade filosófica, do que procurar hoje uma filosofia4.
Proudhon foi portanto marcado, profundamente marcado pela crítica kantiana, como a imensa maioria dos pensadores do seu século, sobretudo “graças a esta transmissão surda que se faz por mil canais diversos5, mas sem se tornar ele próprio kantiano6. O seu agnosticismo teórico é menos radical, pois até a Crítica da razão pura não o desejava. De resto, ele não está no meio do mundo um filósofo da escola. Também não foi difícil revelar as inferioridades técnicas. Ter-se-ia uma grande injustiça, contudo, de ter pretexto para tratar o seu pensamento com desdém. O seu procedimento fundamental ora todo concreto, todo indutivo. Era uma reflexão sobre os dados da experiência comum e da vida jornaleira, sem deixar de ser sustentada pela realidade social. Ele estimava que toda a filosofia, mesmo aquela que se cria dedutiva, não fez nunca, bem ou mal, “ao sintetizar a experiência 1 e que, por ter oportunidade de fazê-lo bem, ele quer dar conta. Ele não ia da teoria à prática, mas da prática à teoria, e a sua teoria permanecia mesmo prática. É isso que ele explica a um dos seus correspondentes, Huet, a 25 Dezembro de 1860:
Bordas, como Decartes, Leibnitz, mesmo Kant, parecia-me ter ido além da filosofia especulativa à filosofia prática: ele passa pela metafísica para ir à moral, e ele não duvida que esta marcha não seja seguida nos séculos seguintes. No cristianismo, a teologia dogmática precede também a teologia moral; a religião está inteiramente fundada neste dado. Eu, por outro lado, apanhei de imediato a ideia moral, a justiça, o facto de consciência (eu não tomo aqui significado no sentido puramente psicológico), e uma vez em possessão do direito, da ideia moral, eu sirvo-me como que de um critério para a metafísica. A minha filosofia prática antecede a minha filosofia especulativa, ou pelo menos serve-lhe de base e de garantia.
E Proudhon compara o seu método “ao de Jesus e ao de Sócrates”, que ele opõe ao “idealismo de Platão” e à “teologia do Santo Paulo 2”. Quaisquer que sejam as suas comparações, vê-se que este método, tão inimigo que ele foi com a abstracção metafísica, era o oposto de um empirismo. Ele era igualmente elogiado pelo positivismo de Auguste Comte e do materialismo histórico de Marx. Apesar de Proudhon detestar o significado, ele era também, de alguma forma, um “idealismo”. E não seria impossível de encontrar-lhe um parente com o moralismo de Kant3:
Para mim, diz ele, a moral existe por si mesma; ela não revela nenhum dogma, nenhuma teoria. A consciência está junto da faculdade principal do homem, o poder soberano, ao qual os outros servem de instrumentos e de serventes… Isso não é metafísica, nem poesia, nem outra teodicidade onde eu deduzo as regras da minha vida e da minha sensibilidade; é ao contrário do ditado da minha consciência que eu deduzirei sobretudo as leis do meu entendimento4.
Contudo, é certo que os históricos de Proudhon insistem no comum mesmo falando da sua dependência em favor do kantismo. Constatando que a dialéctica proudhoniana está fundada sobre a noção de antinomia, eles acreditam poder acrescentar que é Kant que lhe terá fornecido esta noção. Assim desde já Karl Marx, sobre Proudhon “primeira maneira”:
Nos capítulos que ele mesmo considerava como os melhores, ele imita o método antinómico de Kant, o único filósofo alemão que ele conhecia então pelas traduções, e ele deixa uma forte impressão que para si, como para Kant, as antinomias só se resolvem “para além” do entendimento humano, ou seja, que o seu entendimento é incapaz de os resolver1.
Negligenciamos a ironia final. Permanece a afirmação inicial, em seguida retomada, e que tinha desde logo formulado Saint-René Taillandier em 1848: “Proudhon serve-se de instrumento de Kant, a antinomia2.” Proudhon parece ter dito primeiro. Ele não escrevia a Tissot, a 13 Dezembro de 1839: “Ao ler as antinomias de Kant, eu tinha visto não a prova da fraqueza da minha razão, nem um exemplo de subtil dialéctica, mas uma verdadeira lei da natureza e do pensamento 3?”
Todavia, há que olhar de perto, que este texto contém outra coisa para além de confissão que se crê ler nele. Ele prova que desde 1839, ano vivido sob o signo de Kant, Proudhon compreendia-o, ou interpretava-o livremente, à sua maneira, que não era nada kantiano. Ele poderá bem escrever a 2 Julho de 1846, a Ackermann: “Eu faço o sistema das antinomias da Sociedade, um pouco como Kant tinha feito a crítica das antinomias da razão 4”; ele poderá ainda, respondendo a Renouvier na Justiça, dizer que esta filosofia teria de se ter dado para “analisar este fenómeno do entendimento que desde Kant é apelidado de antinomia e sobre o qual, eu o confesso, tudo ainda não parece ter sido dito5: não é menos verdade - e estes dois textos têm um testemunho - que a sua antinomia não é certamente a de Kant, e que ele tem perfeita consciência. Ele não tem junto a si, em resumo, que o emprego de um significado kantiano, para designar um fenómeno mais vasto do que aquele que Kant aplicava, e desde logo mais ou menos conhecida antes dele. A sua referência é, por outro lado, a invocação de um patronato, a indicação de uma insuficiência, a qual se propõe remediar. Não é por rudeza de escrever que, na sua carta a Ackermann, ele fala uma vez crítica e outra sistema, e confessará que as “antinomias da sociedade” na qual Proudhon quer fazer o sistema, não são a mesma coisa que as “antinomias da razão”, na qual Kant faz a crítica.
De uns para outros, a carta a Tissot tinha desde já colocado em relevo as diferenças essenciais, que são duas. As antinomias kantianas são, não no ser, mas na razão; as de Proudhon estão na razão e no ser. As antinomias kantianas aparecem como um esforço de pensamento, elas marcam um resultado negativo, um insucesso, elas são uma espécie de muro no qual finalmente a razão se choca; para Proudhon, as antinomias são as leis do pensamento em marcha, elas acompanham-no em todo o seu percurso, modelam-na, e fornecem-lhe um método.
Sabe-se que Kant fala de antinomias na Crítica da razão pura, na secção da “Dialéctica transcendental”, que trata da cosmologia racional. No seu esforço em vias de construir esta cosmologia, o entendimento chega a quatro antinomias, ou seja, a quatro pares de teses contraditórias: parece-lhe igualmente exigido, segundo o ponto de vista sobre o qual ele se coloca, que o mundo seja finito e infinito; que tudo no universo seja composto de pares simples e que nenhum elemento seja simples; que o mundo dependa de uma causa livre e que não haja tal causa; enfim, ele coloca invencível um ser necessário que, não menos invencível, o repugna. Estas antinomias são o signo que o entendimento funciona fora do seu domínio e, não criticando sobre o real, não opera somente nas demarcações “dialécticas”, ou seja, ilusórias. Tal é uma das veias por onde se encontra condenada a metafísica como ciência, e fundado o agnosticismo em relação ao mundo transcendente.
A antinomia segundo Proudhon é outra coisa. Ela é sobretudo no espírito, porque ela é primeiramente sobretudo no ser, sobretudo na natureza, sobretudo no mundo físico e no mundo social. Porque as leis do mundo, e “a moral humana é parte integrante da ordem universal[1]”: um tal marxismo toma o seu mais estóico ou mais tomista que kantista. “O homem e as coisas, diz ainda Proudhon, a civilização e o universo, e reino moral e o reino da natureza” formam, provavelmente, “um todo homogéneo, solidário”, e “mais cedo ou mais tarde” deve aparecer como consequência ”a identidade das duas razões, a minha e a do mundo2”. Compreende-se também que o significado de antinomia, que não pertence a Kant como uma parte da teoria do conhecimento, resume junto de Proudhon toda uma visão do universo, visão à qual ele faz constantemente alusão nas suas obras, e onde ele mantém a fé exprimida e defendida com tanto calor como de clareza:
Nada subsiste, diziam os antigos sábios, tudo muda, tudo flui, tudo se forma. Por conseguinte, tudo se tem e se encadeia; ainda por conseguinte, tudo é oposição, balança, equilíbrio no universo. Não existe nada, nem ao redor, nem dentro desta dança eterna; e o ritmo que a comanda, forma pura das existências, ideia suprema à qual nenhuma realidade não saberia responder, é a concepção mais alta que possa atender a razão1.
A esta concepção da realidade das coisas responde uma lógica que lhe está acordada. Segundo esta lógica, bem diferente daquela que se aprende nas classes, “o dilema, reputado como o mais forte dos argumentos”, não tem mais valor que aquele que lhe é dado. Ele não deve ser mais olhado “como uma arma de má fé, o punhal do brigadeiro que vos ataca no ombro”, tanto que ele não foi “rectificado pela teoria da antinomia, forma mais elementar e composição mais simples do movimento 2”. Efectivamente, não existe de um lado a verdade e de outro, o erro, pelo menos nesta forma de dizer muito inadequada:
O que é o erro? Uma mutilação da verdade. O mal? Uma inversão do bem. A injustiça? A negação da equivalência entre pessoas, serviços e produtos. Qual a proporção particular na filosofia da natureza e da humanidade talvez chamada verdade? Nenhuma; a oposição, o antagonismo, a antinomia manifestam, sobretudo. A verdadeira verdade é: 1º no equilíbrio, coisa que a nossa razão concede maravilhosamente, e que constitui a mais elevada e a mais fundamental das suas categorias, mas que não é nenhum beneficio; 2º no conjunto, que nós não saberíamos nunca abraçar3.
Prevê-se ainda todo o sentido do título que Proudhon dá a uma das suas obras: Sistema das contradições económicas. Estas não são aos seus olhos um caso particular, o caso próprio ao Mundo da economia, um fenómeno que se reencontra em todas as partes do ser e em todos os domínios da ciência. Eles verificam uma lei universal. Será preciso associar, escreve ele mesmo a Charpentier, “as contradições da filosofia, da política, da religião e do direito4.” De resto, acrescenta, “este significado de contradição não deve tomar-se no sentido vulgar de um homem que se diz e se deduz. Ele agita-se ao contrário de uma oposição inerente a todos os elementos, a todas as forças que constituem a sociedade, e que faz com que estes elementos e estas forças se combatam e se destruam se o homem, por sua razão, não encontra o meio de os compreender, de os governar e de os manter em equilíbrio…”
Será portanto em vão censurar Proudhon, como o fez por exemplo Arthur Desjardins, as suas perpétuas contradicções5. Como todos os que reflectiram ao longo de um período bastante longo, é-lhe chegado, em alguns assuntos, de mudar de notícia, ou pelo menos do ponto de vista, e de deslocar o acento que ele colocava sobre as coisas. Ele próprio é uma espécie de acusado, ou justificado, à noite da sua existência, respondendo a Clerc, um oficial retratado dos seus discípulos, que era o comovente da sua obra sobre a Guerra e a Paz. Ele esforça-se para fazer notar ao seu correspondente “esta mobilidade perpétua da verdade, que os meios filósofos tomam por um engano, seja da natureza ou da Providência, seja do nosso próprio entendimento, e que não é outro senão a incessante revelação e polimorfo da mesma verdade”. Apesar de admirável, desde logo, esta nossa verdade seja o preço de um longo trabalho e que ela exige ensaios em diferentes sentidos? “Ela tem diversas faces, seguidamente ela parece contradizer-se; é porque nós somos muito mais expostos ao deformar querendo colocar-vos sempre de acordo, do que dizendo bem, cada dia e sobre cada coisa, o que nós pensamos e o que nós queremos.” Também Proudhon confessa que não quer nunca “um autor sujeito a contradizer-se, dotado para o fazer de boa fé e não por disparate”, e no que lhe diz respeito, pessoalmente, ele inquieta-se pouco com as contradições, aparentes ou mais, que podem reencontrar-se nas diversas publicações1. Este razoado é de boa psicologia. É suficiente para nos assegurar que Proudhon não nos remete à escola dos sofistas, “que apoiavam, no geral, o pró e o contra com uma benevolência igual2.” Mas, por outro lado e mais que psicologia, ele agita-se aqui na metafísica. Novo Heraclito, Proudhon professa uma concepção agnóstica do universo e da sociedade, na qual crê que um pensamento muito preocupado de coerência não seja suficiente a dar uma ideia falsa. “Ele poderia muito bem fazer com que a sociedade fosse governada por regras todas diferentes daquelas indicadas e chamá-la como de costume de sentido comum3.” Toda a coisa tem uma “dupla face”, e é necessário desconfiar das razões muito simples, que arriscam sempre esclarecer uma em detrimento de outra. Se não se tomar consciência, “mais um homem tem precisão nas ideias e rectidão no coração, ele corre risco de ser simplório e absurdo”. Os intelectuais estão todos lá, mais ou menos, como o povo; ora “o povo ama as ideias simples, e ele a razão: infelizmente esta simplicidade que ele procura só se reencontra nas coisas elementares, e o mundo, a sociedade, o homem são compostos de elementos irredutíveis, de princípios antitéticos e de forças antagónicas 4”. Com efeito, “todos os nossos mal-entendidos políticos, religiosos, económicos, etc”, não vêem eles “da contradição inerente às coisas 5”?
Contradição real, ou ainda “antinomia natural 6”, que ele não confunde com a contradição lógica pura e simples. Esta é estéril como um nada, o outro é fecundo como a vida. A primeira é análoga, em resumo, á identidade morna de toda a verdade pluralidade. “O mundo moral como o mundo físico descansa sobre uma pluralidade de elementos irredutíveis e antagónicos, e é da contradição destes elementos que resultam a vida e o movimento do universo 1”. Esta frase da Teoria da propriedade é uma daquelas que definem melhor o pensamento de Proudhon. Pode-se comentá-la numa página da Justiça:
Ele agita-se para saber se todas as espontaneidades nas quais se compõe a criação, acordam entre si ou se combatem; se, seja pela lei da sua constituição, seja por ordem superior, elas formam uma ronda de perfeito amor ou se elas se entregam a uma batalha imensa; se a ordem, quem sabe, e se descobre nesta mistura, proveniente do concerto de instrumentos acordados como os tubos de um orgão, ou se não é acima de tudo um efeito de equilíbrio entre forças antagónicas. Quanto a mim, minha opinião não seria duvidosa: o que torna a criação possível, a oposição dos poderes. É ter uma ideia muito falsa da ordem do mundo e da vida universal do que fazer uma ópera. Eu vejo sobretudo as forças em luta; eu não descubro nenhuma parte, eu não posso compreender esta melodia do grande Todo, que acreditava entender Pitágoras[2].
Tal era bem a ideia na qual as Contradições económicas proponham uma primeira e desde logo uma vasta aplicação. Tal será ainda ideia da última grande obra da maturidade, a Guerra e a Paz. Ela resume-se no significado de Escritura citado em exergo: “O Eterno é um guerreiro”. Para o instante nós não a julgaremos, nós somente constataremos a permanência e a força através da obra de Proudhon. Acima de tudo, afirma-se a mesma ideia de luta universal. A Guerra e a Paz desenvolve-a ex professo, como o sujeito a trazia:
O jogo das forças não se assemelha à dança das musas… É preciso que elas se entrechoquem, que elas se entre devorem, nesta condição somente elas produzem… A guerra tem raízes profundas, a pena ainda entrevista, o sentimento religioso, jurídico, estético e moral dos povos. Poder-se-à mesmo dizer que ela tem a sua fórmula abstracta na dialéctica. A guerra, é a nossa história, nossa vida, vossa alma por inteiro. Ainda uma vez mais, é tudo. Falam-nos em abolir a guerra, como se ela agitasse concessões e as alfândegas. E não se vê que se faz abstracção da guerra e das ideias que lá se associam, nada permanece, absolutamente nada, do passado da humanidade, e nem um átomo para a construção do seu futuro… A guerra abolida, como vós concebeis a sociedade?... No que é que se torna, a sua cesta eterna, o género humano[3]?
A simples aproximação destas últimas passagens sofrerá sem dúvida em mostrar o quanto artificial é a oposição que alguns intérpretes estabeleceram entre a Justiça e a Guerra e a Paz. De um lado e de outro, e pelo mesmo facto como “uma das categorias da razão 1”. Desde já, prevê-se por isso que, não só a dialéctica transcendental de Kant, a dialéctica proudhoniana não saberia assemelhar-se à dialéctica de Hegel ou de Marx. Disse-mo muito bem: “Ler Proudhon, é viver com ele na angústia da contradição2.” Se existe aqui uma semelhança, ela é, num contexto também mais diferente que possível, com Kierkegaard. Em relação às ambições do pensamento hegeliano, o pensamento do místico dinamarquês e daquele do socialismo francês têm uma significação paralela.
Contudo, a angústia da contradição não é nenhum desespero ou uma demissão sem apelo. Nem tão pouco o que Kierkegaard, Proudhon dizem aqui no seu último significado.



NOTAS


1 Sem verdadeiro valor de amizade: a Ackermann, 9 Setembro 39, e a Pérennès, 16 Dezembro (t. 1, p. 150 a 164).
2 A Pérennès, 16 Dezembro 39: “As minhas jornadas passam-se entre Reid e Kant” (t. 1, p. 163).
3 Justiça, t. 3, p. 231.
4 Reproduz como prefácio à 3ª Edição das Confissões de um revolucionário.
5 Justiça.
6 T.2 , p.22 . Desde de já, a 16 de Dezembro de 39, ele confia a Pérennès um projecto de uma “ incrível audácia” ; o “nunca colocar na reforma “, e resume assim a moral Kantiana : “ Eu sou obrigado porque sou obrigado, o que não é nada bem demonstrativo”(t.1, p.163).
7 T. 2, p. 26.
8 T. 2, p. 46.
9 Criação da ordem, p. 262 e 269.
1 Justiça, t. 3, p. 231.
2 Misturas (Euvres, t. 17).
3 T. 4, p. 340.
4 Revolução Social, p. 141-142.
5 Renouvier, As escolas contemporaneas da moral em França, na Crítica filosófica, t. 1 (1873-74), p. 41.
6 Numa nota da Justiça, ele resume, por outro lado desajustadamente, a capacidade da obra de Kant, dizendo: Kant tem “dado às gerações modernas “ uma “iniciação anti-absolutista, anti-religiosa” (t. 6, p. 52).
1 Filosofia popular, 4: “A metafísica do ideal não aprendeu nada com Fichte, Schelling, Hegel: quando estes homens, nos quais a filosofia se honra com bom direito, imaginam-se deduzir à priori, não fazem, por seu desconhecimento, sintetizar a experiência” (Justiça, t. 1, p. 198).
2 T. 10, p. 257.
3 Também assim, numa certa medida, com a moral tradicional no cristianismo. Cf. Yves de Montchevil, Deus e a vida moral, em Construir, VI, nomeadamente p. 42-46.
4 Justiça, t. 4, p. 492 e 493: “…A noção do justo estando toda na fé, nos meus olhos, ideia e sentimento, e sendo o sentimento a primeira manifestação e a força principal da minha alma, o lar da minha liberdade, em redor da qual eu não encontro vergonha e miséria, parece-me lógico derrubar o ensino que eu tinha recebido desde a infância, e, em vez de fazer depender o meu dever e o meu direito de estado mais ou menos precário da minha razão, de subornar pelo contrário a minha razão, as minhas opiniões, no sentimento que eu tive do meu dever e do meu direito.”
1 No Social-Democrata; Janeiro de 1865 (Miséria da filosofia, nova ed., p. 247).
2 Loc. cit., p. 302.
3 T. 2, p. 232.
4 T. 2, p. 207.
5 Justiça, t. 3, p. 452.
[1] Justiça, t. 2, p. 389. “Espécie que, apesar algumas dissonâncias, mais aparentes que reais, que a ciência deve aprender a conciliar, as leis de uma são as leis de outra.”
2 Justiça, t. 4, p. 431-32: “Então, a ideia de uma harmonia universal na minha alma: eu digo-me (a mim próprio) que entre o mundo da natureza e o mundo da justiça, lei, força, substância, tudo é idêntico; assim, como a ordem é perfeita entre as esferas que percorrem o espaço, a proporção imutável entre os elementos nos quais se compõe toda a criatura, ele deve estar mesmo entre os homens. E o facto vem de imediato confirmar a hipótese. A economia, a política, a organização do atelier, a Razão pública, resolvem um sistema de ponderações ou de balanços: nesta analogia de legislação entre o Cosmos e o Anthrôpos aparece a identidade do espírito que os acima, latente no primeiro, livre no segundo.”

1 Filosofia do progresso, prefácio (obras, t. 20, 1868, p. 14). Pode-se comparar esta ideia do ritmo universal à ideia bergsoniana do movimento puro; A percepção da mudança, no Pensamento e no Pensamento, p. 185: “Existem mudanças, mas não existem, sob a mudança, coisas que mudam, etc.”
2 Filosofia do progresso, primeira carta (ibid., p. 31-32).
3 Teoria do imposto (Obras, t. 15, 1868, p. 226-227).
4 24 Agosto 56 (t. 7, p. 116-117).
5 Op. cit., t. 1, p. 53: “Até ao seu último fôlego, ele não deixará de contradizer-se.” Mesmo M. René Gonnard, História das doutrinas económicas, p. 491: “Proudhon está perto de uma contradicção.”
1 A M. Clerc, 4 Março 63 (t.12, p. 338-39 e 342).
2 Desjardins, t. 1, p. 82.
3 Teoria da propriedade (1866), p. 207. A Villiaumé, 24 Janeiro 56: “Tudo na sociedade é primeiro um paradoxo.” (t. 7, p. 13).
4 Teoria do imposto, p. 234.
5 Miséria, t. 2, p. 397. Cf. p. 258: “É estranho, porque eu passo a minha vida a demonstrar esta contradicção da nossa natureza, quer seja eu acusado de contradicção!”
6 Cf. França e Reno (nova edição, 1868), p. 124: “É uma contradicção pura. Se fosse uma antinomia natural, teria lugar uma balança: mas não, não existe nada.”
1 Teoria da propriedade, p. 213; cf. p. 229. Teoria do imposto, p. 234: “Quem diz o organismo, diz complicação; quem diz pluralidade, diz contrariedade, oposição, independência. O sistema centralizador é muito bom em grandeza, simplicidade e desenvolvimento; só lhe falta uma coisa; é que o homem não se tem mais, não se sente, não vive, não existe.” Confissões, p. 316: “Qualquer transformação que eles tenham que subir, os elementos (governo, propriedade, etc) subsistirão sempre, pelo menos na sua virtualidade; afim de imprimir sem parar o mundo, pela sua contradicção essencial, o movimento.” Cf. Miséria, t. 2, p. 323: “Como conceber um bem que a dor não irrita, não estimula?”
[1] Justiça, t. 3, p. 212.
[1] Guerra e Paz, p. 71-72, etc.; cf. p. 55.
1 Op. cit., p. 33; e p. 38: “A guerra, como o tempo e o espaço, como o bom, o justo e o útil, é uma forma da nossa razão, uma lei da nossa alma, uma condição da nossa existência.”
2 Augé-Laribé, no “que é a propriedade?” p. 118. Cf. Torsten Bohlin, Kierkegaard, p. 87: “Kierkegaard acentua muito e sem parar o carácter combativo da vida e da personalidade. A tese de Héraclito sobre a discórdia engendava todas as coisas passadas na concepção kierkegardiana do dever e das condições vitais da personalidade.”